O umbigocentrismo político é a perdição eleitoral dos superprogressistas

O umbigocentrismo político é a perdição eleitoral dos superprogressistas

 

Junho de 2013 foi importante em muitos sentidos, mas talvez o mais relevante deles é que se iniciou ali um expressivo aumento de pessoas interessadas em política. Interessadas não apenas em acompanhar e discutir política, mas, sobretudo, em se envolver de algum modo com ela e em dela participar. A partir dali o envolvimento político e a politização de todos os assuntos da conversa social deixam de ser considerados chatos e de mau gosto e passam a ser tratados como uma coisa legal, quase uma obrigação social. Cada sujeito passou a se considerar um titã da vida pública, um Atlas cujos ombros suportam o mundo e o seu destino, um Asterix a defender a última vila gaulesa contra os conquistadores romanos, o menino com o dedo no dique que salva o seu país da inundação, “la pasionaria” da Guerra Civil espanhola e o seu ¡No pasarán!, dentre outros heróis fabulosos fundamentais nas horas decisivas da humanidade.

A militância autocentrada

Até hoje há um fluxo que continua a despejar na política um volume considerável de novos atores, ávidos por engajamento e participação na esfera pública política, desejosos de ter a sua voz ouvida e a sua causa considerada, em intensa busca por grupos de afinidade ideológica com as quais se envolve com impressionante entrega, e, acima de tudo, dispostos a se dedicar com enorme fervor à defesa de suas agendas e causas nos novos espaços de discussão ao alcance de todos, os ambientes digitais.

Já mencionei muitas vezes, nos últimos anos, como os novos militantes e as novas formas de militâncias trouxeram consigo elementos positivos e negativos. Positivamente, dá-se o fato básico de que, em democracia, quanto mais gente estiver acompanhando atentamente os assuntos públicos e os atores institucionais da política e do Estado, quanto mais pessoas estiverem dispostas a se envolver na discussão pública, em movimentos sociais e nos episódios eleitorais, sempre será melhor. A política perde altura e aura, os espaços de decisão política são mais vigiados pelo olhar público, impõem-se mais transparência e maior responsabilização a quem detém o poder político, dentre outras coisas.

O lado negativo do processo também é muito visível, principalmente porque os militantes que repentinamente desembarcaram em grande volume no sistema político não necessariamente passaram por algum estágio de formação e educação políticas – que em outros tempos eram oferecidos por sindicatos e outras formas organizadas da sociedade civil – nem de treinamento nas habilidades democráticas para divergência produtiva e com civilidade.

Além disso, falta-lhes a compreensão da própria política institucional, dos seus meios e modos de funcionar e das regras sob as quais é jogada nas democracias liberais. Principalmente interessado na política que se faz por meio de coletivos e movimentos, o militante tende a desprezar a política institucional que, no fim das contas, é o que decide o jogo, leva adiante o Estado, garante as políticas públicas e os avanços ou retrocessos legislativos que realmente importam.

Circunscrito à convivência com seu círculo de referência política, composto de pessoas que pensam de forma semelhante sobre as questões que o militante considera pertinentes para o seu engajamento, ele facilmente se considera um guerreiro da Justiça, lutando pela única causa digna, justa e respeitável, que só não prevalece, como seria do seu destino, porque “os outros” são movidos por ignorância ou maldade.

Como o seu universo é o das virtudes, o neomilitante tem dificuldade de reconhecer o mérito do jogo político real, travado entre forças políticas antagônicas, mas igualmente legítimas uma vez que representam interesses legitimamente inscritos na sociedade. Como a sua referência mental são as causas que ele defende e os valores que as sustentam, o militante sofre para reconhecer que méritos inerentes às causas pouco importam se as estratégias para a sua promoção não levarem em consideração os interesses e os valores antagônicos em disputa, as circunstâncias da luta e o fato de que na democracia governa a maioria, gostemos dela ou não.

Em suma, a típica miopia do militante lhe impede de reconhecer:

  1. que há méritos e virtudes em posições antagônicas às suas;
  2. que a democracia é um sistema de mediação de reivindicações e vontades divergentes que, por isso mesmo, não tem preferência por pontos de vistas e valores desde que estes se dobrem aos acordos fundamentais do próprio regime democrático;
  3. que a disputa política é travada com todos os participantes do jogo e não apenas com aqueles de que gostamos.

Há muitos exemplos de como essa mentalidade autocentrada não é capaz de distinguir entre estratégia de promoção de uma casa e o mérito do seu valor moral.

Crianças trans na parada do Brasil conservador

Esta semana, discutiu-se a conveniência estratégica de um estandarte no qual se lia “crianças trans existem”, levado por crianças, durante a Parada LGBTQIA+ em São Paulo. Tratava-se, naturalmente, de um posicionamento político planejado, com metas claras e um uso estratégico dos meios para alcançá-las. Em um evento sobre a visibilidade LGBT, pareceu adequado a alguém dar justamente visibilidade ao fato de haver crianças que não se identificam com o gênero correspondente a seu sexo biológico. É um raciocínio coerente com o evento e que lida com fatos reais, não há dúvida.

Mas há outros fatos a serem considerados:

1. O Brasil que emergiu das urnas em 2023, do ponto de vista da política institucional e das disposições eleitorais majoritárias da população, é provavelmente o mais conservador das últimas décadas.

2. O mote da proteção das criancinhas e da sua inocência contra as intenções degeneradas dos progressistas e esquerdistas que querem, segundo as versões correntes e por ordem inversa de aparição, a sua “sexualização precoce”, inculcar-lhes a “ideologia de gênero”, induzi-las à homossexualidade (por meio de políticas públicas como o “kit gay”) ou levá-las a “normalizar” a depravação sexual representada pela homoafetividade foi certamente um dos mais poderosos e eficazes recursos dos conservadores para derrotar eleitoralmente, várias vezes, os partidos de esquerdas e fazer enormes bancadas nas casas legislativas desde 2016.

3. Milhões de brasileiros ainda estão aprendendo sobre a questão trans – que lhes é relativamente nova na discussão pública, ao contrário da pauta homossexual –, de modo que estão nervosos, cheios de medos e fantasias e, portanto, extremamente susceptíveis às tentativas de suscitar pânico moral por parte dos conservadores. Que incessantemente insistem, em sua propagada permanente, na existência de um laboratório de perversões progressistas com crianças que incluiria até mesmo a mudança do sexo biológico de quem ainda não tem maturidade para fazer escolhas e se defender.

Dadas essas premissas, parece igualmente razoável imaginar que dar de bandeja aos conservadores as fotos de que precisam, com crianças e agenda trans em uma Parada LGBTQIA+, representa uma ajuda e tanto para eleger mais conservadores e reacionários na próxima Legislatura, que, por sua vez, irão trabalhar sem descanso contra a pauta dos direitos das pessoas trans.

Mas o militante típico deste momento é incapaz de compreender um argumento sobre estratégias e de distingui-lo de um argumento sobre méritos, princípios ou valores. Você diz “esta estratégia pode ser contraproducente” e ele entenderá “estou dizendo que a sua causa não presta e é imoral”. Pois, afinal, a única estratégia aceitável para ele é promover a causa, sem pensar em qualquer outra consequência a não ser que ela vai prevalecer porque é justa. E que causas justas precisam ser promovidas em público e não escondidas ou dissimuladas, e que fazer isso é uma questão de caráter e coerência.

Que se dane que eleições foram perdidas por conta de um “kit gay” que nem existiu (ou não existiu como disseram na propaganda do bolsonarismo), que Bolsonaro tenha emergido eleitoralmente como presidenciável quando se atribuiu o papel de grande defensor das criancinhas contra a corrupção moral da infância pela esquerda, que a bancada da Bíblia nesta Legislatura é capaz de ser maior que toda a base de apoio ao governo. “Se uma causa é boa, qualquer maneira de apresentá-la ou defendê-la vale a pena”, acreditam, contra os fatos.

Outro comportamento típico do militante superprogressista é a negação de uma relação de causalidade, ainda que apoiada por montanhas de evidência, entre uma má estratégia e um resultado negativo na opinião pública ou em eleições. Quem defendia que Lula precisava ter a coragem de falar na campanha que era a favor do aborto, pois o justo tem que ser defendido não importa a consequência, por que veria problema na foto de meninos segurando o estandarte do “Crianças Trans Existem”? Quem não gostou só pode fazê-lo porque não entende que é preciso jogar a verdade na cara da sociedade conservadora. Afinal, para o militante, política institucional, essa que se dá por convencimento da opinião pública e por conquista de mandatos, não importa, são importantes a verdade e a virtude.

E se você disser que a tese de que “as criancinhas precisam ser protegidas da corrupção moral da esquerda” fez com que uma pessoa com tão poucas qualidades, como Damares Alves, obtivesse 44,98% dos votos válidos do civilizadíssimo Distrito Federal para o Senado da República, a resposta é que “seria assim de todo jeito”. Como “seria assim de todo jeito” é a reposta quando se objeta que dar à direita uma foto de crianças no meio do movimento trans servirá como comprovação, disseminada para sempre nas suas redes de fake news, da sua tese da manipulação da infância pela perversão dos progressistas.

Para o militante de bolhas, os votos populares brotam no mundo já com as cores dos seus destinatários, o dono só passa lá e recolhe. Não entra na sua cabeça que os votos de Damares foram trabalhados, capturados, atraídos, conquistados, como é natural na política, só que no caso específico usando-se o pânico moral como estratégia fundamental.

Sim, o umbigocentrismo político é a perdição eleitoral dos superprogressistas. Mas não desprezem o valor da intolerância à menor contrariedade, que transformará este artigo, por exemplo, numa demonstração cabal da transfobia do autor. Querem apostar quanto?

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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