Uma vida orientada ao futuro

Uma vida orientada ao futuro
(Trígonos Produções Culturais)

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Ao final da sessão de leitura (eu prefiro chamá-la de espetáculo mesmo) de textos da filósofa feminista francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), a atriz Fernanda Montenegro avisou gentilmente à plateia lotada do Sesc 14 Bis, em São Paulo, no último domingo, que não receberia os amigos e amigas no camarim porque “afinal, 95 anos de idade pesam”.

Neste momento, a identificação da grande dama do teatro brasileiro com Beauvoir tornou-se mais clara para mim que durante a leitura propriamente dita do excelente compilado de textos da filósofa que Montenegro organizou. Ao reconhecer o peso da velhice, a atriz me remeteu ao conflito expresso por Beauvoir em A força das coisas, quando esta admite não reconhecer a Simone de Beauvoir de quem falam – e que sente ser ela – naquela que vê no espelho e em cuja cara teria se “instalado uma varíola” da qual jamais se curaria.

Beauvoir parece implacável consigo mesma assim como dona Fernanda Montenegro. E as vidas públicas de ambas – sempre orientadas ao futuro – insistem em contradizê-las. Se as duas intelectuais esperavam, cada uma em sua época, que a maturidade tardia lhes traria a mesma invisibilidade imposta à ampla maioria das mulheres, pelo “patrirracialcapacitismo” (para usar a expressão de outra filósofa, a brasileira Marcia Tiburi), enganaram-se. Beauvoir tornou-se famosa no mundo inteiro, assim como seu companheiro Jean-Paul Sartre, quando mais velha. E as sessões de leitura dos textos da filósofa tocadas no Sesc por Fernanda Montenegro estão com bilheteria esgotada até 21 de julho.

No compilado de textos de Beauvoir lido com maestria e vigor pela atriz (e, ao qual, esta acrescentou uma emocionante dramaturgia), Beauvoir nos conta que nunca deixou de lado o ativismo político, e juntou-se às manifestações das novas gerações de feministas que, ao contrário dela no passado, não queriam mais esperar pelas “grandes revoluções salvadoras” para depois cobrar pela equidade de gênero e pelo direito aos seus corpos. Ao ouvirmos este relato na voz de Fernanda Montenegro, é impossível não nos lembrarmos de sua coragem e disposição para enfrentar publicamente os fascistas que venceram as eleições no Brasil em 2018 e conduziram um governo autoritário e inimigo da Cultura até 2022. Mais um elemento de identificação profunda entre elas.

Se, para muitos na plateia, os pontos mais incômodos da leitura foram os relatos sobre a liberdade sexual do casal Beauvoir e Sartre, que chegou a organizar orgias às quais chamava de “Fiestas” e a responder judicialmente a denúncias por libertinagem numa França tomada literalmente por nazistas; a mim o que mais me tocou foi a recusa da filósofa a resignar-se e esquecer-se – sob a desculpa de unir uma sociedade polarizada pelo fascismo e pela guerra – dos assassinos e colaboracionistas da França de Vichy.

Como se esquecer do assassinato de Marielle Franco, do ódio generalizado contra a esquerda e da violência política nos corredores do Congresso Nacional e nas ruas do Brasil polarizado pelas mentiras da extrema-direita e por uma imprensa hegemônica irresponsável em relação à democracia quando se trata de garantir os privilégios da alta burguesia? Como se esquecer do exílio? Beauvoir e Montenegro nos ensinam que não devemos nos esquecer pelo bem do próprio futuro.

Ainda que tenha, ao longo de sua existência, desejado viver – e tenha, de fato, vivido – “sem tempos mortos”, Beauvoir reconhece o peso do passado em sua vida e na vida de cada um de nós.

Há contradições tensas ou tensões contraditórias no texto de Beauvoir: uma vida orientada ao futuro e o reconhecimento mais ou menos explícito do peso dos tempos mortos sobre nós; a afirmação da liberdade individual, da possibilidade e do direito de se tomar o destino nas mãos e lhe dar o sentido que se quer, e a admissão de que identificações coletivas alheias à nossa vontade e anteriores a nós – como, por exemplos, a classe social em que nascemos e/ou a religião em que fomos educados – também produzem nossas subjetividades e moldam nossos corpos. Estas contradições tensas ou tensões contraditórias estão muito bem expressas em sua frase mais citada por feministas de diferentes gerações depois da dela, inclusive por trans-feministas : “Não se nasce mulher; torna-se mulher”.  Beauvoir acaba por concluir que também “não se nasce homem; torna-se homem”. E, a partir da leitura também de sua filosofia, concluí e posso afirmar que não se nasce homossexual, torna-se homossexual. Nesse sentido, as mulheres e LGBTs são o grande outro construído pela dominação masculina ou pelo patriarcado e seus dispositivos de sujeição, a começar pela própria Língua em que nos comunicamos, carregada ela mesma de valores e preconceitos que introjetamos desde a mais tenra idade e que nos impõe um lugar de subalternidade do qual só o cuidado de si e o orgulho de si podem nos tirar.

Beauvoir confessa que só escreveu O segundo sexo depois que Sartre a provocou com a questão do que é se ser mulher num “mundo que pertenceu sempre aos homens”. Até aí, segundo ela, gozava da mesma liberdade que os homens de sua classe social com os quais convivia e era tratada com radical equidade de gênero pelo seu companheiro, Sartre.

A “questão gay” me foi colocada aos seis anos de idade, quando ouvi o primeiro insulto homofóbico. Ali, eu já notei que era uma différance neste mundo dominado por heteros e cisgêneros, embora eu só viesse a conhecer este neologismo filosófico de Jacques Derrida já adulto. Pouco antes desta descoberta, li, aos 20 anos, O segundo sexo, de Simone de Beauvoir. A mesma idade em que Fernanda Montenegro a conheceu.

Mesmo tendo crescido em movimentos de esquerda inspirados pelos marxismos, fui bastante influenciado pelo existencialismo de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, rechaçados e criticados por intelectuais marxistas e freudiano-marxistas (ainda que estes últimos fossem, por sua vez, rechaçados pelos marxistas ortodoxos). Aliás, para o ignorantes e/ou sem memória que acham que é nova a tensão, no interior das esquerdas, entre os que acham e os que não acham que existe hierarquia entre justiça social e liberdades civis, o espetáculo de Fernanda Montenegro será uma aula. Para Beauvoir, para a atriz e para mim não há essa hierarquia. As revoluções salvadoras não precedem a luta pelo orgulho de ser o que é e ter direitos iguais.

Boa parte do compilado feito por dona Fernanda Montenegro é extraído do livro A cerimônia do adeus, em que Beauvoir relata seus últimos momentos ao lado de um Sartre consumido pela velhice e pela doença. Trata-se de uma emocionante declaração de amor por parte de alguém que tinha a férrea convicção de que a morte do filósofo o separaria dela e a de que sua própria morte não os uniria depois, ateus convictos que eram ambos.

Ao fim da leitura e ao som estrondoso dos aplausos esfuziantes à admirável atriz produtiva aos seus 95 anos de idade, veio-me à cabeça o discurso de despedida de Sócrates referido por Platão em Apologia a Sócrates: “Chegou a hora de partir, eu para a morte, vocês para a vida. Qual dos destinos é melhor, só os deuses sabem”.

Contudo, Sartre, Beauvoir e Fernanda Montenegro ensinaram-me e me ensinam que enquanto vivos, ainda que sobre nossos corpos pesem o passado e o coletivo, o melhor é viver sem tempos mortos; orientar a vida ao futuro.

Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Mestre em Letras é Linguística e doutorando em Ciência Política, é autor de Tempo bom, tempo ruim (2015), O que será (2019) e O que não se pode dizer (2022).


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