Romance inédito de Simone de Beauvoir é publicado após 67 anos

Romance inédito de Simone de Beauvoir é publicado após 67 anos
Em romance inédito, Beauvoir mostra a gênese experiências que fundamentaram parte da sua obra (Foto: Bettmann Archive)

 

Cinco anos depois da publicação de O segundo sexo, em 1954, Simone de Beauvoir escreveu um romance sobre a curta, porém intensa história de amizade com Élisabeth Lacoin. Inédita por 67 anos, a obra chega aos leitores brasileiros nesta semana pela editora Record.

Na autobiografia ficcionalizada As inseparáveis, Lacoin é Andrée Gallard, a Zaza, e Simone de Beauvoir é Sylvie Lepage. Elas se conhecem aos 9 anos de idade no colégio Desir, em Paris, durante a Primeira Guerra Mundial, e Sylvie é imediatamente atraída pela garota que, apesar de divertida e audaciosa, precisa lidar com um ambiente familiar rígido e opressor.

Juntas, elas tentam escapar das convenções e tradições alienantes da época. Mas o foco da narradora, Sylvie (Simone), é menos em si mesma e mais em Andrée (Élisabeth) e suas tentativas de emancipação em um meio que busca esmagar a sua singularidade.

“Ora, não há escândalo pior para Simone de Beauvoir, e é isso que a novela quer mostrar, um escândalo que pode ser qualificado de filosófico, pois atenta contra a condição humana”, escreve Sylvie Le Bon de Beauvoir, filha adotiva da autora, no prefácio do livro.

Este escândalo, afirma Le Bon, é inclusive um dos fatores que levaram à morte precoce de Andrée, um mês antes de completar 22 anos, por encefalite viral: “Zaza morreu porque tentou ser ela mesma e foi convencida de que essa pretensão era um mal”, escreve.

A personagem não é totalmente desconhecida para os leitores de Beauvoir – ela aparece como Elisabeth Mabille em Memórias de uma moça bem-comportada (1958). Le Bon lembra que cada uma das quatro partes do livro termina com as palavras “Zaza”, “eu contaria”, “a morte” e “sua morte”.

Mas é em As inseparáveis que o tema da amizade e do amor juvenil entre elas é tematizado pela primeira vez. “Uma daquelas amizades misteriosas como o amor, que levou Montaigne a escrever sobre La Boétie e sobre si mesmo: ‘Porque era ele, porque era eu'”, escreve Le Bon.

Por meio dessa história, Beauvoir mostra a gênese de algumas experiências que fundamentaram parte da sua obra, como o tema da emancipação e do antagonismo entre intelectuais e conservadores.

A edição, publicada por iniciativa da própria Le Bon, depositária da obra de Beauvoir, traz ainda fotos pessoais e cartas trocadas entre as duas amigas. Ela encontrou os manuscritos logo depois da morte da mãe, aos 78 anos, em em 1986. A Cult adianta um trecho abaixo.

Élisabeth ‘Zaza’ (esquerda) e Simone de Beauvoir em Gagnepan (França) em 1928.ASOCIACIÓN ELISABETH LACOIN
Élisabeth (esquerda) e Beauvoir em Gagnepan, França, 1928 (Foto: Divulgação)

A maioria das alunas do colégio saiu de Paris em meados de junho por causa das bombas e da Grande Bertha.

Os Gallards partiram para Lourdes; todos os anos participavam de uma grande peregrinação; os filhos eram padioleiros, as filhas mais velhas lavavam a louça com a mãe nas cozinhas de um asilo; eu me admirava por confiarem a Andrée essas tarefas de adulto e a respeitava ainda mais por isso. No entanto, tinha orgulho da heroica obstinação dos meus pais: ficando em Paris, mostrávamos a nossos valentes soldados que os civis “aguentavam firme”. Fiquei sozinha na classe com uma grandalhona idiota de 12 anos e me senti importante. Certa manhã, quando cheguei ao colégio, professoras e alunas estavam refugiados no porão: em casa rimos muito tempo disso. Durante os alertas, não descíamos para o porão; os locatários dos andares superiores vinham se abrigar em nossa casa, dormiam em sofás na antecâmara. Toda aquela agitação me agradava.

Parti para Sadernac no fim de julho com mamãe e minhas irmãs. Meu avô, que se lembrava do cerco de 1871, imaginava que em Paris comíamos ratos: durante dois meses nos empanturrou de frango e clafoutis. Eu passava dias felizes. No salão havia uma estante cheia de livros velhos com folhas manchadas de ferrugem; as obras proibidas estavam separadas bem no alto; eu tinha permissão de folhear livremente as das prateleiras inferiores. Lia, brincava com minhas irmãs, passeava. Passeei muito naquele verão. Andava pelos castanhais, ferindo os dedos nas samambaias, ao longo das trilhas, colhia ramalhetes de madressilvas e evônimos, saboreava amoras, medronhos, cornisos, bagas ácidas de uvas-espim, respirava o odor tumultuoso dos trigos-mouriscos em flor, colava-me à terra para surpreender o odor íntimo das urzes. Depois me aventurava no grande prado, ao pé dos choupos-brancos, e abria um romance de Fenimore Cooper. Quando o vento soprava, os choupos murmuravam. O vento me exaltava. Parecia que de uma extremidade da terra à outra as árvores falavam entre si e falavam a Deus; era uma música e uma prece que atravessavam meu coração antes de subirem ao céu.

Meus prazeres eram inúmeros, mas é difícil relatá-los; a Andrée eu enviava apenas breves cartões-postais; ela também não escrevia muito; estava em Landes, com a avó materna, andava a cavalo, divertia-se muito; só voltaria a Paris em meados de outubro. Eu não pensava nela com frequência. Durante as férias, quase nunca pensava em minha vida de Paris.

Derramei algumas lágrimas ao dizer adeus aos choupos: eu estava envelhecendo, tornando-me sentimental. Mas no trem me lembrei de como gostava da volta às aulas. Papai nos esperava na plataforma da estação com sua farda azul-horizonte; dizia que a guerra logo ia acabar. Os livros da escola pareciam ainda mais novos que nos outros anos: eram mais grossos, mais bonitos, estalavam sob os dedos, tinham cheiro bom; nos Jardins de Luxemburgo havia um comovente cheiro de folhas mortas e relva queimada; as mulheres da escola me beijaram com efusão, e meus deveres de férias me valeram enormes elogios; por que me sentia tão infeliz? À noite, depois do jantar, eu ia para a antecâmara, lia ou escrevia histórias num caderno; minhas irmãs dormiam, no fundo do corredor papai lia para mamãe: era um dos melhores momentos do dia. Eu ficava deitada no tapete vermelho sem fazer nada, alheada. Olhava para o armário normando e para o relógio de madeira, esculpido, que encerrava em seu ventre duas pinhas de cobre e as trevas do tempo; na parede abria-se a boca do calorífero: através de sua grade dourada, sentia-se a tepidez de um sopro nauseabundo que subia dos abismos. Toda aquela escuridão e aquelas coisas mudas em torno de mim de repente me deram medo. Eu ouvia a voz de papai; conhecia o título do livro: Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, do conde de Gobineau; no ano anterior era As origens da França contemporânea, de Taine. No ano seguinte, ele começaria um novo livro, e eu estaria lá outra vez, entre o armário e o relógio. Quantos anos? Quantas noites? Viver era só aquilo, matar um dia após o outro? Eu ia me entediar assim até a morte? Concluí que estava com saudade de Sadernac; antes de pegar no sono, dediquei mais algumas lágrimas aos choupos.

Dois dias depois, percebi a verdade num lampejo. Entrei na sala Saint-Catherine e Andrée sorriu para mim; sorri também e lhe estendi a mão.

— Quando voltou?

— Ontem à noite.

Andrée me olhou com um pouco de malícia.

— Você estava aqui desde o primeiro dia, é claro.

— Estava — eu disse. — Teve boas férias?

— Ótimas, e você?

— Ótimas.

Dizíamos banalidades, como adultas; mas eu compreendia de súbito, com estupor e alegria, que o vazio de meu coração e o sabor tristonho de meus dias só tinham uma causa: a ausência de Andrée. Viver sem ela já não era viver. A senhorita de Villeneuve sentou-se em sua cátedra, e eu repetia para mim mesma: “Sem Andrée já não vivo.” Minha alegria transformou-se em angústia: mas então o que seria de mim se ela morresse?, perguntava-me. Eu estaria sentada naquele banco, a diretora entraria e diria com voz grave: “Vamos rezar, minhas filhas, sua coleguinha Andrée Gallard foi chamada para perto de Deus ontem à noite.” Pois bem! É simples, decidi, eu escorregaria do banco e cairia morta também. Essa ideia não me amedrontava porque logo nos encontraríamos nas portas do céu.

simone de beauvoir as inseparaveis

As inseparáveis, Simone de Beauvoir, Record, 399 páginas, R$ 39,90. Tradução de Ivone Benedetti.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você.

Deixe o seu comentário

TV Cult