Uma questão para o futuro

Uma questão para o futuro

 

Trezentos anos atrás, um grupo formado por centenas de japoneses decidiu abandonar o Japão, insatisfeito com o regime político vigente na era pós-samurai. O local escolhido foi um país do Sudeste Asiático. Tailândia? Filipinas? Indonésia? Não se sabe. Da mesma forma que não há registro confiável de qual país foi o escolhido, não sobrou vestígio da passagem desse grupo por algum recanto daquele continente. Por quê? Certamente porque não houve a preocupação do grupo em implantar no local uma cultura japonesa.

O Brasil, pelo contrário, recebeu há quase cem anos (96 anos, para ser mais exato) uma leva de 781 imigrantes japoneses que, em 1808, desembarcou do navio Kasato-Maru, no porto de Santos. Depois dessa, chegaram outras levas, formaram-se casais que tiveram muitos filhos, as famílias foram se multiplicando. Hoje, os japoneses e seus descendentes no Brasil somam algo em torno de 1,4 milhão, na pesquisa do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros de São Paulo. Essa forte presença nipônica justifica a introdução e a disseminação da cultura japonesa pelo país. Mas a preservação dessa cultura poderá ser perpetuada pelas próximas gerações?

“Sim, é possível”, responde com convicção um dos mais respeitados representantes da colônia japonesa, Kazuo Watanabe. Bacharel em Direito pelo Largo São Francisco (USP), em 1959, e o primeiro nissei a chegar ao posto de desembargador, tendo se aposentado em 1986 do Tribunal de Justiça de São Paulo, Watanabe é membro do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa – conhecida por Bunka Kiokai ou, simplesmente Bunkyo – e aceitou de bom grado coordenar a Comissão Provisória dos Estudos de Renovação. Composta de 18 pessoas, a comissão teve por objetivo fazer sugestões para a revitalização da entidade que, no próximo ano, completa meio século de existência.

Em seu relatório final, concluído no ano passado, a comissão chama a atenção para necessidades de mudanças. Por exemplo: o critério que prevalecia no passado, de identificar os membros da chamada comunidade nipo-brasileira apenas pelo vínculo de sangue, vai se tornando cada vez mais inadequado, na medida em que ocorre o incremento da mestiçagem de raças. Dentre os 1,4 milhão de japoneses e descendentes que moram no Brasil, o casamento de nisseis com um homem ou uma mulher de etnia diferente representa de 6% a 7%. Entre os sanseis, os de terceira geração, o percentual de casamentos interétnicos já sobe para 40% e entre os yonseis, de quarta geração, atinge 60%. Com isso, os nikkeis mestiços já representam quase 30% da população nipo-brasileira, totalizando cerca de 400 mil, segundo estimativa dos estudiosos.

O próprio Kazuo Watanabe, que nasceu há 68 anos em Bastos, no interior de São Paulo, é casado com uma nissei mas, tem dois filhos casados com mulheres de outras etnias.
O primeiro neto do casal tem sangue japonês, pelo lado do pai, e, pelo lado da mãe, sangue austríaco e baiano. “Se é essa a realidade, nós devemos ter Bunkyo que acolha as pessoas de outras etnias”, afirma o desembargador, que defende a substituição do antigo critério do vínculo sanguíneo pelo critério cultural e o conceito de “colônia japonesa” pelo de “comunidade nipo-brasileira”.

Com a tendência natural de crescer a mestiçagem entre os descendentes de japoneses, dentro de cem anos, imagina Watanabe, irá restar muito pouco em termos de traço fisionômico e sangue japonês. “O que sobrará, efetivamente, será a cultura japonesa”, diz. E é com esse argumento que ele, como coordenador da Comissão Provisória dos Estudos de Renovação, sugere, entre exatas vinte medidas, que o Bunkyo amplie o quadro de sócios, incentivando o ingresso de jovens, mulheres e brasileiros de outras origens e se transforme em um centro de referência em informações sobre a cultura japonesa e a imigração japonesa no Brasil.

“É uma plataforma para dez anos”, comenta Watanabe, certo de que conta com a mesma opinião do atual presidente do Bunkyo, Kokei Uehara, primeiro presidente nissei a assumir o cargo, que tomou a iniciativa de criar a comissão e está disposto a dar novos ares a até então fechada e sisuda sociedade. Um dos passos para marcar a modernização da entidade já foi dado: é a criação da Rede Bunkyo, a cargo do diretor de Comunicação Akio Ogawa, que agilizará a troca de informações, pela internet, entre os diversos bunkyos existentes no país.

A sofisticação da programação da Fundação Japão

Enquanto a Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa se empenha em livrar-se das amarras do passado, a Fundação Japão (FJ) comemora a conquista do status de independência. Instalada desde 1975 na capital paulista, pelo Ministério das Relações Exteriores do Japão, como órgão semigovernamental encarregado de divulgar a cultura japonesa, a FJ passou a ser considerada instituição de caráter autônomo no ano passado. Foi beneficiada com a reestruturação feita no governo pelo primeiro-ministro Junichiro Koizumi.

A comemoração é dupla, porque a verba do governo japonês foi mantida, garantindo a manutenção de sofisticados programas culturais. A FJ de São Paulo é a única representação em toda a América Latina. Outras 15 estão instaladas na Europa (França, Inglaterra, Alemanha e Itália), nos Estados Unidos (Nova York e Los Angeles), na Ásia (China e Coréia), em países emergentes da antiga União Soviética, no México e na Austrália. Ainda no Brasil, a FJ criou uma filmoteca que há 15 anos funciona no Centro Cultural do Consulado do Japão, no Rio de Janeiro. Atualmente com cerca de 70 títulos, lá são promovidas mostras de filmes premiados. A cada ano, de cinco a sete novos títulos são adquiridos das distribuidoras.

Em plena Avenida Paulista, a FJ ocupa um andar inteiro de um prédio, onde está instalada uma biblioteca para dar suporte às pesquisas na área de cultura e língua japonesa. Entre publicações raras, últimos lançamentos de livros e revistas, podem ser encontrados em suas prateleiras clássicos da literatura brasileira, como Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Iracema, de José de Alencar, em japonês, publicados pela editora Sairyusha. Um exemplar de Furacão Elis, da jornalista Regina Echeverria, vertido para o japonês por Mana Kuniyasu e editado pela Tokyo Shoseki, também consta do acervo.

“A preocupação maior da Fundação Japão, no entanto, é divulgar a cultura japonesa para os brasileiros e para quem mais se interessar por ela”, diz o arquiteto Jo Takahashi, diretor de projetos culturais da FJ. Ele trabalha na fundação há 21 anos e ocupa o cargo há sete. Foi ele quem configurou o escritório da FJ, que é comandado por um diretor-geral enviado pelo governo japonês, em média, a cada três anos. O atual diretor-geral é Hiroshi Yoshii.

Divulgada por mala-direta para um público que oscila entre três e quatro mil pessoas e pelo Aquarela, um boletim trimestral on-line, acessado pela internet, a atividade cultural da Fundação Japão é intensa. O público, heterogêneo, muitas vezes surpreende. Em meados de fevereiro, por exemplo, a FJ promoveu, em seu Espaço Cultural, uma mostra de filmes japoneses denominada Na Trilha dos Samurais. Foram exibidos três filmes da série Os sonolentos olhos da morte, dirigida na década de 50 pelo cineasta japonês Misumi Kenji e estrelado pelo ator Raizo Ichikawa, considerado o Rodolfo Valentino japonês da época.

Numa sala para cem lugares do auditório que fica em outro andar, metade era ocupada por idosos japoneses, que certamente conhe-ciam ator e diretor, e outra metade por brasileiros, na faixa dos 17, 18 anos. “Fiquei intrigado e decidi perguntar para os jovens o que os havia atraído no programa”, conta Takahashi. “Eles tinham assistido ao Último samurai, do Tom Cruise, e procuravam emoções semelhantes”, conclui, divertido.

Este público poderia ter prestigiado também a palestra sobre animê (desenho animado japonês) dada em fevereiro por Yoshiyuki Tomino, autor, diretor e roteirista da série Guadam, estrelada por mechas (robôs). Mas a programação é muito mais variada, podendo-se destacar o recital com “Cem anos de Música Japonesa para Piano”; o workshop sobre “O Teatro Nô e sua Música”; outra amostra de cinema, desta vez sobre A Imagem da Mulher no Cinema Japonês; e uma exposição itinerante – Arquitetura Contemporânea Japonesa: 1985 – 1996 –, que exibiu uma centena de painéis fotográficos com projetos de arquitetos renomados como Tadao Ando, Fumihiko Maki, Arata Isozaki, Shigeru Ban e Kengo Kuma que percorreu São Paulo, Brasília, Rio, Curitiba, Porto Alegre, Belém e Manaus.

Ao avaliar a programação da Fundação Japão, Jo Takahashi considera que, em termos de teatros clássicos, a missão foi cumprida. Já foram apresentados espetáculos de Nô, Kabuki e Bunraku (de bonecos). Em artes cênicas contemporâneas, foram exibidos Butô (dança japonesa pós-guerra) e experiências mais recentes. Na literatura, ele considera que houve um boom de lançamentos de autores japoneses graças às iniciativas de editoras como Companhia das Letras, Estação Liberdade, Globo e Record. Mas, se podemos ler em português a rica produção de Junichiro Tanizaki (Naomi, A chave, Voragem) ou o intrigante Caçando carneiros, de Haruki Murakami, Takahashi lamenta que não tenham sido lançados ainda no Brasil obras das mulheres japonesas, escritoras contemporâneas, com boa safra de literatura urbana. Ele sente falta também da edição de mais livros do consagrado Kenzaburo Oe, Prêmio Nobel de Literatura em 1994. Um dos poucos (se não o único, por enquanto) acesso dos brasileiros a seus trabalhos é “Uma Questão Pessoal”, publicado originalmente em 1964, sob o título “Kojinteki na Taiken”. Traduzido do japonês por Shintaro Hayashi, foi editado no ano passado pela Companhia das Letras, por indicação de Jean-Claude Bernardet, conforme ressalta a publicação.

Em termos de cinema, Jo Takahashi lembra as décadas de 1950 e 1960, quando só em São Paulo havia seis cinemas, cada uma representando uma distribuidora e cada distribuidora, por sua vez, explorava um gênero de filme. “Toda semana estreava um filme novo e a cada ano, cada um dos seis cinemas trazia de 40 a 50 títulos, de forma que tínhamos 300 filmes inéditos por ano”, recorda. Hoje, a exibição de cada filme japonês no mercado brasileiro é negociado com as distribuidoras e praticamente a escolha é feita pela fama do diretor. Takeshi Kitano, Yasujiro Ozu, Nagisa Oshima são alguns deles. “Infelizmente, no Brasil, a preferência da maioria recai sobre os filmes americanos, exibidos em prateleiras da Blockbuster”, lamenta Takahashi.

Nair Keiko Suzuki
editora-chefe adjunta do jornal Gazeta Mercantil

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