Notas sobre as travessias da população trans na história

Notas sobre as travessias da população trans na história
We'wha (1849-96), o mais famoso "berdache" ou "two-spirit" entre os Zuni, nativos norte-americanos do sudoeste dos EUA (Foto: Reprodução)

 

O poder de nomear

Os nomes surgem como algo que nos dão, que a nós atribuem. Contudo, esses mesmos nomes são transformados, com a construção que cada pessoa faz de si a partir de quem se considera ser, naquilo que acatamos como nosso ou que mudamos para o que melhor entendemos nos representar. Assim se dá com os indivíduos e os grupos sociais. Em geral, as crianças são chamadas carinhosamente por nomes que lhes conferem dons, proteções ou benefícios. Isso porque tendem a ser vistas como parte relevante de quem lhes dá o nome. O mesmo já não ocorre com povos e grupos sociais, principalmente quando estes são vistos como “os outros”. Isso é ainda pior quando existe uma relação de poder desigual.

Um exemplo é a atribuição do genérico nome “negros”, surgido no século 10, às centenas de povos africanos explorados durante o tráfico transatlântico, no período da escravidão moderna que fundou as Américas sob a dominação europeia.

O termo, para além de se referir apenas às pessoas de pele escura, recebeu no século 15 uma carga negativa, contraposta a uma suposta superioridade dos chamados “brancos”. Também as pessoas trans – aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído socialmente, ou seja, travestis, transexuais e demais pessoas transgêneras – têm uma história mais antiga do que é comum pensar.

Ser trans na história

Anteriormente ao termo “transexual” havia “travesti” e, antes desta denominação, havia o “trans”, do latim “além de”. Ao juntarem o trans ao “vestire”, os latinos criaram o “transvestire”, referindo-se a quem exagerava na roupa que usava. Os italianos do século 16 popularizaram o termo, atribuindo-lhe um sentido adicional, a partir de expressões como “Lui è travestito” (Ele está disfarçado).

A palavra “travestito”, com tal significado, foi logo adotada pelos franceses, que relacionaram o “disfarce” a um comportamento, tido como ridículo ou falso, de homem que se veste como mulher. Posteriormente incluída na língua inglesa, virou “travesty”. Com os usos, o adjetivo passou a ser utilizado, pejorativamente, para identificar uma população: a trans.

Entre os povos nativos norte-americanos, pessoas que hoje identificaríamos como trans eram chamadas de “berdaches”, atualmente mais conhecidas como two-spirit (dois espíritos), referindo-se à ideia de que vivem papéis de dois gêneros ou que são de um terceiro gênero.

O uso do termo “berdache” é criticado por ser antiquado e ofensivo, tendo em vista que não era utilizado pelos indivíduos aos quais se referia: ele foi imposto por antropólogos que se basearam na palavra francesa para homem que se prostitui (garoto de programa, “michê”), “bardache”, a qual, por sua vez, derivou-se do árabe “bardaj”, que significa “cativo, prisioneiro”.

Para os Mohave, que habitam a região do rio Colorado, no deserto de Mojave, pessoas que identificaríamos como mulheres transexuais eram chamadas de Alyha. Tratadas com nomes femininos, elas precisavam assumir hábitos considerados femininos, como costurar. Já os homens tidos por nós como transexuais eram chamados de Hwame. Tratados como homens, seguiam, casados, os tabus requeridos dos maridos quando as esposas menstruavam.

Nos relacionamentos afetivos, tanto Hwame quanto Alyha eram referidos pelos companheiros, respectivamente, como “marido” ou “esposa”. Inclusive, as Alyha usavam a palavra mohave para clitóris a fim de se referirem aos seus órgãos genitais, tal qual o termo “grandes lábios” para seus testículos e “vagina” para se referir ao seu ânus, o que também é uma prática comum entre mulheres transexuais e travestis brasileiras contemporâneas, que eventualmente aplicam a palavra “grelo” ou “grelho” para o seu pênis.

Entre o fascínio e a abjeção

Em algumas culturas, as pessoas trans foram historicamente estigmatizadas, marginalizadas e perseguidas devido à crença na sua anormalidade. Isso porque o estereótipo do que seria “natural” é que o gênero atribuído no nascimento seja aquele com o qual as pessoas se identificam por toda a vida e, portanto, espera-se que elas se comportem de acordo com o que se considera ser o “adequado” para esse ou aquele gênero. No Brasil, ocorriam bailes de “travestis” no século 19, quando marinheiros eram recepcionados no Rio de Janeiro, dada a falta de mulheres com as quais dançar em momentos de lazer, por homens vestidos de mulher.

O fascínio misturado com abjeção tem sido praxe na relação da sociedade brasileira com as travestis e as mulheres transexuais. A sociedade que sempre excluiu as travestis ainda não reconhece a plena humanidade de pessoas trans, reagindo com histeria quando da visita ao Rio de Janeiro, em 1962, de Coccinelle, artista e cantora francesa conhecida mundialmente como estrela da trupe oficial da casa noturna Carrousel de Paris. Ela havia se submetido, em 1958, a uma cirurgia de redesignação genital (antigamente chamada, de forma inadequada, de “cirurgia de mudança de sexo”) e foi a primeira mulher transexual a ter o seu casamento, com o jornalista esportivo Francis Bonnet, reconhecido, em 1960, pela Igreja Católica. Foi preciso chamar o corpo de bombeiros para tirá-la a salvo de uma loja, na qual ela fazia compras e era assediada por uma multidão de pessoas curiosas que queriam admirá-la de perto e causaram enorme tumulto.

Nesse período, artistas transformistas (termo brasileiro para os artistas performáticos atualmente conhecidos como “drag queens” e “drag kings”), igualmente referidos como praticantes do travestismo, apresentavam-se nos palcos, como o Teatro Rival, até mesmo após 1964, com permissão da ditadura militar, não podendo, porém, confundirem-se com as mulheres cisgêneras fora de seus espaços cênicos. Mas sempre há frestas. A cantora e performer Divina Aloma, negra, musa do pintor Di Cavalcanti, chegou a se apresentar no Canecão e em outros espaços que dividia com mulheres cis.

Nomes ainda hoje lembrados, como os de Rogéria, Jane Di Castro, Brigitte de Búzios, Cláudia Celeste, Camille K. entre outras divas, surgiram nesse tempo em que as travestis vislumbravam a possibilidade de encontrar trabalho não apenas na prostituição, mas também no campo artístico.

Atualmente, testemunhamos um rico movimento de artistas trans em busca de sua representatividade e contra a prática histórica de se colocar atores cis para representar personagens trans, em detrimento da existência de atores trans, que lutam pela empregabilidade mais básica.

Discursos médicos e judiciais sobre a transexualidade

O sexólogo alemão Magnus Hirschfeld, no começo do século 20, utilizou a palavra “transvestite” para quem habitualmente se veste com roupas atribuídas a pessoas do gênero oposto, geralmente por interesse de cunho sexual.

Radicado nos Estados Unidos, o sexólogo alemão Harry Benjamim cunhou o termo “transexual” em 1966, e criou procedimentos clínicos para identificação e atendimento a pessoas transexuais, chamados de “padrões de cuidado”. Compreendiam-se esses indivíduos como incluídos no denominado “travestismo fetichista”, entendido na época, especialmente por psicanalistas, como uma patologia, um tipo de psicose, de acordo com a visão de que o gênero identificado pela pessoa “normal” estaria submetido ao seu sexo biológico. Essa concepção reduz a transexualidade a uma patologia e as pessoas transexuais a pessoas para as quais procedimentos cirúrgicos trariam uma “cura”.

Exemplifico como o conceito de transexual foi inicialmente recepcionado no Brasil por meio do martírio impingido ao médico Roberto Farina, primeiro cirurgião a fazer uma cirurgia de redesignação genital no Brasil, em 1971, em Waldirene Nogueira. Em 1978, Farina foi processado pelo Conselho Federal de Medicina – CFM – sob a acusação de lesões corporais graves. Foi condenado em primeira instância e somente absolvido em uma instância superior porque uma junta médica do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde ocorrera o procedimento, havia dado um parecer favorável à intervenção, fazendo uso do conceito de Benjamim quanto ao procedimento como solução terapêutica.

Algumas afirmações do juiz que condenou Roberto Farina são significativas da visão do sexo biológico como destino e persistem até os dias atuais. São elas: 1. A “vítima” de Farina não poderia jamais ser uma mulher, porque não tinha os órgãos genitais internos femininos; 2. A cirurgia poderia criar condições para uniões matrimoniais “espúrias”; e 3. O tratamento da “transexual, uma doente mental”, deveria ser psicanalítico, e não cirúrgico, pois a cirurgia impediria a sua recuperação.

Como parte desse clima de intensa descriminação, a acusação chegou a afirmar que Farina queria que “bichinhas” maiores de idade conseguissem ser operados.

Curiosamente, pouco tempo depois, já nos anos 1980, a modelo e atriz Roberta Close se tornou a principal referência imagética para mulheres transexuais brasileiras. Nascida em uma família de classe média que a apoiava, em 1984 ganhou o título de vedete do Carnaval Carioca e ficou nacionalmente conhecida quando saiu na capa da edição de maio daquele mesmo ano da Playboy. A manchete da revista revelava o estranhamento da mídia, condizente com o pensamento social vigente ante a uma mulher tão atraente: “A mulher mais bonita do Brasil é um homem”. Isso apesar de a retratada sempre ter se identificado como mulher, independentemente da sua anatomia genital. Em outro trecho da matéria, evidencia-se uma visão da pessoa trans como falsa, mulher que não seria “de verdade”, no linguajar coloquial: “Incrível. As fotos revelam por que Roberta Close confunde tanta gente”.

As convenções sociais sobre masculinidade e feminilidade então vigentes dificultavam o entendimento de que o gênero daquela mulher independia de características genitais: muito ao contrário do afirmado, ela não queria confundir, mas queria se revelar.

A organização política das pessoas trans

Em termos de organização política, em 15 de maio de 1992, foi fundada a Associação das Travestis e Liberados do Rio de Janeiro (Astral). A data é comemorada pelo movimento trans fluminense como o Dia do Orgulho de Ser Trans e Travesti. Entidades que surgem em seguida são a Associação das Travestis de Salvador (Atras) e o Grupo Filadélfia de Santos, em 1995; o Grupo Igualdade, em Porto Alegre, e a Associação das Travestis na Luta pela Cidadania (Unidas), de Aracaju, em 1999.

O começo do século 21 testemunhou o surgimento de entidades nacionais como a Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Antra), a Rede Trans e o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades. As travestis brasileiras construíram, ao longo de mais de um século, uma Cultura do Corpo única, fundamentada na linguagem falada, constituindo-se como uma “oralitura”. O impedimento do acesso pleno ao ensino formal é um dos fatores envolvidos nessa realidade, que obrigou a comunidade a se proteger e transmitir seus conhecimentos fora dos métodos disponibilizados a grupos sociais privilegiados.

Esse conjunto de saberes e fazeres tem sido historicamente invisibilizado ou apropriado por outros grupos sociais e movimentos, devido à transfobia (preconceito contra pessoas trans) e o cissexismo (crença na superioridade das pessoas cisgêneras) entremeados na sociedade brasileira. O Brasil registra o maior número de assassinatos de pessoas trans por crimes de ódio no mundo.

Com a introdução dos conceitos de “transexualidade” e de “transgeneridade” no contexto brasileiro e a popularização das teorias queer, durante as últimas décadas do século 20, vai-se consolidando um modelo de militância focado em uma agenda de promoção de iniciativas institucionais inclusivas, representada pela política do nome social e na ideia de visibilidade. A emergência do transfeminismo, na segunda década do século 21, tem estimulado a discussão de temas como a autonomia do movimento trans diante de outros movimentos sociais, a luta internacional pela despatologização, a diversidade sexual e de gênero das identidades trans, os privilégios da cisgeneridade, o reconhecimento da infância e adolescência trans, a reparação dos déficits educacionais, a inserção no mercado de trabalho formal e a representatividade nas artes e na política partidária, questões essas que vão formatando pautas políticas amplas, no complexo cenário dos novíssimos movimentos sociais.


JAQUELINE GOMES DE JESUS é doutora em Psicologia Social pela UnB e professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro


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