Um morto contra a morte
Lacan é como o Cristo que fala por parábolas, para que, nesse caso, tendo ouvidos para ouvir, não ouçam aqueles que não merecem.
Jacques Lacan (1901 – 1981) – assim o imagino com admiração, mas jamais poderei estar inteiramente seguro – pretendia denunciar a repetição monótona das interpretações correntes. Do pensamento de Freud, os seguidores retiraram alguns truques que permitem fazer funcionar às cegas uma máquina de interpretar. Um deles consiste, por exemplo, em postular para cada frase o sentido contrário, levando ao absurdo as idéias de repressão e negação. Se meu paciente diz algo, é porque, inconscientemente, quer dizer o oposto. O homem será então simples jogo de ocultamento e tão carente de imaginação que a todo conteúdo manifesto corresponde um conteúdo latente invertido. Ou, o truque da anterioridade: sob cada forma que se exprime, oculta-se um motor mais primitivo, que é sua verdade obliterada. São truques simples, aprende-se depressa a não pensar. Lacan talvez tivesse querido soprar para longe toda essa mesmice, inventou fórmulas desafiadoras e uma prática feita de cortes e de rupturas. Como é possível que seus desafios se tenham convertido em matéria de repetição interminável ou que se imitem infinitamente suas denúncias da imitação? Resposta: é perfeitamente possível – tanto que acontece –, pois, de mãos dadas, adesão e recusa levantam o estandarte da irreconciliação. A irreconciliação com o pensamento odeia o humor e, como Sócrates, Lacan foi um ironista: os inimigos irreconciliáveis fazem-se de sérios e o acusam de pilhéria inconseqüente, os amigos irreconciliáveis contam cem vezes a mesma piada, para ver quem mata melhor.
Diz Mallarmé que a pesada estátua mortuária de Poe servia para impedir que o poeta saísse da tumba. Desse nó cego ao humor de Lacan, dessas lápides justapostas por amigos e inimigos, haverá escapatória? Embora não tenha a menor idéia sobre sua intenção real, chego a imaginar que Lacan talvez desconfiasse de que qualquer sentença positiva ou definição conceitual suas já teriam por destino tal morte anunciada: oposição e adesão. Em sua pele, presumivelmente pensaria assim. Poderia então ter ele decidido dizer sem dizer, sacrificar a clareza em prol do efeito psicanalítico da teoria. Teria deixado, portanto, em lugar de peças de ourivesaria teórica, o enigmático mapa da mina, esperando que, na busca, ocorresse pensamento vivo ao interessado.
Daí os Escritos, uma espécie de Finnegans Wake conceitual, um criptograma teórico (no sentido em que Adorno se refere aos “criptogramas épicos” de Joyce), textos, para mim, tão saborosos como ininteligíveis. Daí seu tom de mestre Zen, ou, ainda melhor, do Cristo que fala por parábolas, para que, nesse caso, tendo ouvidos para ouvir, não ouçam aqueles que não merecem. Pessoalmente, não defendo em absoluto sua opção, mas posso compreendê-la. Fórmulas, matemas e algoritmos são recursos matreiros. Ao axiomatizar um domínio da ciência e formalizar o resultado, procura-se despir o enunciado de seu “sentido intuitivo”, como assinala Blanché,1 evitando a ilusão aprisionadora do modelo concreto. No entanto, se a formalização incide sobre uma área de sentidos não axiomatizáveis e eminentemente escorregadios, como a psicanálise, o produto será inefável. Vale dizer que se cria um falso rigor, uma impressão de que nos evadimos da ilusão, quando, na verdade, apenas alimentamos a ilusão de não ilusão. Afinal de contas, um algoritmo tem de mostrar sua utilidade, resolvendo qualquer problema de certo tipo e em quaisquer mãos. O algoritmo de Euclides determina o máximo divisor de dois inteiros, mesmo se o operador for um psicanalista kleiniano.
Nas atividades de saber que operam metaforicamente, definindo um plano de articulações de sentido que se vai desdobrando por analogia e se espelhando em estratos diferentes do concreto – como é o caso da psicanálise, do marxismo, um tanto também da economia e mesmo da filosofia –, nunca se pode estar seguro se a interpretação elucida eficazmente ou se só constrói uma alegoria de valor estético. Então, a obscuridade do cânon interpretativo propicia, inelutavelmente, o efeito magistral: na incerteza, faz-se mister um intérprete autorizado, já que a evidência se escondeu. Como nas religiões, o sentido vago favorece a proliferação de mestres e discípulos. Talvez haja, ao fim e ao cabo, uma espécie de convergência entre discurso alegórico e formalização, de um lado, e a sessão curta, de outro. Não, todavia, a cega impugnação que os opositores promulgam. Já que um analista poderia analisar dez ou vinte postulantes ao mesmo tempo – sob o mandato da pressa, que rege o problema dos três prisioneiros, no Tempo lógico –, reforça-se a concentração pessoal das linhagens psicanalíticas, aumentando o efeito de presença do mestre de origem, garantia final da ortodoxia da interpretação quando o texto é ambíguo. Encolher as sessões em minutos, para se defender dos inimigos irreconciliáveis, acelerando o tempo de reprodução analítica; encolher as palavras em fórmulas, para se defender dos amigos irreconciliáveis, dilatando o tempo de consideração das idéias.
Verdade é que nem mesmo esse artifício deu certo; se é difícil imitar o discurso enigmático, pode-se sempre copiar sua in-com-pre-en-si-bi-li-dade. Porta o imitador nesse caso, porém, um perigoso vírus de ironia em seu DNA mental, já que ninguém pode ser nó tão cego que não desconfie de que quebra-cabeças só se armam uma vez e que interpretações são irrepetíveis. Ou pode? Se minha tese ficcional tem alguma centelha de verdade, Lacan estaria lutando contra a morte, desesperadamente, autoritariamente, ainda quando bem vivo, mas também depois de morto, tentando infundir um estilo de pensar, que se esquiva de fixar-se em conteúdos, gerando uma prole mais genética que somática.
Conheço e desconheço Lacan em igual medida. Não se trata de indiferença, sou um desconhecedor profundo de suas fórmulas, seria incapaz de explicar qualquer delas em termos simples. Mas, nunca desprezei a forma de seu pensamento. Leio e desentendo com pleno gosto e neutra paixão psicanalítica.
Só o vi uma vez, quando já estava no fim da vida. Estive num seminário aberto, onde havia centenas de pessoas numa sala absurdamente estreita e funda. Um tanto trôpego e dramaticamente apoiado numa senhora, Lacan entrou, sentou-se e quedou cabisbaixo por mais de cinco minutos. Depois, levantou-se com esforço, traçou três círculos enlaçados num quadro-negro e pôs-se a indicar os pontos de corte, hesitando, corrigindo-se. Anunciou que falaria do nó borromeano, aquele dia. Fixou longamente o público, mudou a posição de um dos cortes, deteve-se em pé por outros insuportavelmente longos minutos e declarou encerrada a aula. Quanto de doença e quanto de intenção dramática combinavam-se no gesto não saberia dizer. Parecia haver algum segundo sentido. No dia seguinte ou no outro, os jornais anunciavam a dissolução da Escola.
Há aí matéria para sonhos. Dos Borromei, só conheço o que se pode avistar de Stresa, às margens do Lago Maggiore. Isola Bella é encantadora, com seu castelo embandeirado. Do nó borromeano, consta que, desligado um elo, se soltam os outros dois. Teria Lacan destacado alguns dos círculos naquele fatídico quadro-negro? Qual teria sido, nessa hipótese? Pela lógica, o registro simbólico, o justo operador. Contudo, disseram-me certa vez ter ele afirmado que o que mantinha unidos os três registros conceituais – simbólico, real e imaginário – era na verdade seu nome próprio, Jacques Lacan. Não é fácil suprimir um nome e, muito menos, o uso imaginário que dele se pode fazer. Lacan fechou a Escola, mas não resolveu o equívoco que identifica pensamento e pessoa, que é como dizer produção e repetição. A psicanálise tem-se apoiado mais no nome de Freud que no método; Lacan propôs seu próprio nome como adjetivação do de Freud. Hoje há lacanianos, como há kleinianos, bionianos, winnicottianos e até freudianos de vários matizes, dentro e fora da IPA (Asso-ciação Psicanalítica Internacional). É útil aprender com a experiência alheia. Nem mesmo uma escrita que dificulta a banalização, nem a dissidência em relação ao escolasticismo interno da IPA, nem sequer a dissolução do núcleo escolástico que se havia sedimentado em sua própria instituição, ato supressivo algum consegue dar cabo da irreconciliação com o pensamento vivo, sobretudo quando esse toma a forma amiga. Na IPA ou fora dela, repete-se a letra e morre o espírito.
Escondidas nas dobras da pele da monotonia que recobre o corpo da Associação Psicanalítica Internacional e a do movimento lacaniano com total equanimidade, algumas pessoas procuram aprender com os pensadores um jeito original de pensar. Gostaria de vir a ser contado um dia no número dessas insones e irritantes criaturas. Para mim, Lacan foi o crítico emérito da mesmice burocrática, das interpretações de almanaque, do imobilismo escolástico e da repetição. Seu retorno a Freud significa lê-lo com frescor. Não posso crer que Lacan ousasse supor que sua leitura fosse a boa e definitiva; muito menos que se enganasse, imaginando que seus esquemas englobam a verdade da psique – esse reino quase inexplorado, cujas bordas a psicanálise timidamente arranha. O inconsciente é, cada vez mais, instigação à descoberta e não matéria de conhecimento. Lacan especia-lizou-se em produzir rupturas. Na teoria e, tanto quanto me consta, na prática clínica, sua ação correspondeu exatamente ao que costumo chamar de ruptura de campo. Entre outras coisas, a idéia que nutriu a invenção do tempo lógico havia de ter sido a de romper com o hábito e despertar analista e analisando para o tempo, talvez para a presença da morte. Trata-se de ruptura de campo, só é preciso não transformar em rotina a denúncia da rotina.
Por fim, ele criou um movimento. Sua expectativa deveria ser que esse movimento militante se contrapusesse à paralisia das escolas psicanalíticas, onde o analista se convence de o ser por ostentar, como uma espécie de sobrenome postiço, o título adjetivo que lhe vem do mestre. Seu movimento permanece vivo e ativo. Produziu criadores importantes; desses, alguns recusaram o lado escolástico e proclamaram sua independência. Como interlocutor necessário, serve o movimento lacaniano de contraponto às demais escolas, possibilitando um diálogo, áspero às vezes, mas frutífero. A ironia da história, todavia, não o perdoou: ao se opor às escolas estabelecidas, criou uma escola a mais, que critica a dominação dos mestres em nome de seu Mestre. ¡Mala suerte!
Este texto, inédito, foi inicialmente preparado em 1991 em homenagem aos dez anos da morte do pensador.
Fabio Herrmann
Médico, psicanalista, autor de Doença mental e sociedade (Ed. Graal) e Psicanálise da crença (Ed. Artmed), dentre outras obras