Um futuro para o passado

Um futuro para o passado

Verne era um compilador das informações da ciência dos seus dias, obedecendo rigidamente à lógica e às regras científicas

Nos jardins aprazíveis de sua casa no número 1 da rua Charles-Dubois, em Amiens, nos quais passeava religiosamente toda tarde, Jules Verne descansava do seu trabalho que cumpria com disciplina de burocrata. Homem do seu tempo, a racional segunda metade do século 19, ele foi marcado por sua época, sobre a qual dizia triunfalmente numa entrevista à jornalista inglesa Marie Belloc: “Nasci num tempo de descobertas notáveis e de invenções maravilhosas.”.

Enquanto pisava nas folhas secas outonais, Verne certamente não se incomodava com a dupla face do que escrevia, essa mistura de romance de aventuras edificantes com divulgação científica. Uma dicotomia que, mais tarde, alimentaria uma das grandes e eternas polêmicas sobre o gênero que ajudou a fundar: a ficção científica.

A controvérsia já começava no nome que rotulou esse tipo de literatura (uma questão marginal é o popular lugar-comum que chama Verne de “pai” do gênero). A certidão de batismo foi providenciada pelo escritor e editor americano Hugo Gernsback. Ele criou o termo em 1923, publicando na sua revista Science and Invention um número especial de scientifiction, o que queria dizer, segundo explicou, não só entretenimento e divulgação científica, mas também a pintura de um retrato adequado do futuro. Já nos anos 1930, o editor da então melhor revista do gênero revia a explicação guiando seus autores a inventar um futuro apenas “plausível”.

A briga entre mais ciência ou mais ficção no setor nunca mais parou a ponto de se ler na Science Fiction Enciclopedy, de Peter Nichols, uma bíblia do gênero, o verbete “Predição”: “A mais disseminada das crenças sobre a ficção científica entre o público em geral é que seja uma literatura de predição. Pouquíssimos escritores aceitaram isso alguma vez…”

Não seria exagerado dizer que essa crença tem como culpado Jules Verne. Ou pelo menos sua fama de “visionário”, coisa que definitivamente ele não era. Afinal, embora alguns dos seus antecessores tenham especulado sobre futuros possíveis, ninguém fez tanta questão de prever máquinas e tecnologias atreladas ao então state of the art. Na mesma entrevista citada acima, ele enfatiza: “Sempre tentei tornar meus romances, por mais delirantes que fossem, tão realistas quanto possível”.

Verne era um compilador das informações da ciência dos seus dias e, obedecendo rigidamente à lógica e às regras científicas, extrapolava um pouquinho só para fazer suas antecipações. Outro dos chamados “pais” da ficção científica, o inglês Herbert George Wells, e escritores posteriores partiram para vôos mais ousados da imaginação, sem ficarem presos à eventual correção factual de suas invenções. Claro que, ao arriscar só um bocadinho, Verne teve um quociente maior de acertos de previsões, com uma bola de cristal viciada.

No seu conhecido método de trabalho, Verne era um pesquisador incansável. Tinha duas enormes mesas: sempre cheia de mapas, uma, e de material de pesquisa, a outra. Tudo servia para material dos seus livros: obras científicas, revistas, teses, comunicações de cientistas, relatos de viagem, coisas que ele passava laboriosamente para as vinte mil e tantas fichas que colecionava. Daí, seu maior talento funcionava: ele selecionava e somava informações, partindo para a especulação sobre os dados coletados.

E onde Verne acertou? Ele próprio não ligava muito para isso, dizendo: “É coincidência, nascida do fato de, ao inventar um fenômeno científico, eu tentar tornar as coisas mais verdadeiras e simples quanto podem ser”.

Costuma-se afirmar que a maior das predições de Verne foi o submarino. Não é verdade. Quando o Náutilus do Capitão Nemo aparece em Vinte mil léguas submarinas, em 1870, já existiam submarinos. Claro, nenhum com uma galeria de quadros, órgão, biblioteca e divãs de couro, uma decoração que o escritor parece ter retirado do famoso salão parisiense da princesa Mathilde, na sua época. O que é mais impressionante foi o fato de ele ter previsto em À roda da Lua (1865) que as viagens para o satélite teriam como ponto de partida o litoral da Flórida, perto de Cabo Kennedy (antes Canaveral), sede do programa espacial da NASA.

Mas o poeta da eletricidade e do vapor andou errando. O balão dirigível de Cinco semanas em um balão explodiria ou pegaria fogo com seu processo de decomposição da água em hidrogênio e oxigênio, que seriam queimados para permitir o vôo. Mas ele se recuperou em Robur, o conquistador, com seu aparelho mais pesado que o ar, o Albatroz, com pás giratórias parecidas com as dos helicópteros de hoje, uma invenção que, na verdade, data de Leonardo da Vinci. Talvez os motores elétricos do Albatroz ainda venham a ser usados algum dia.

Televisão e gravador são sugeridos em O castelo dos cárpatos, mas coincidência ou acerto mesmo foi o telescópio gigante de À roda da Lua ter 195 polegadas de lente, só 5 a menos do que as do observatório verdadeiro de Monte Palomar. Verne gostava de colocar coisas recém-descobertas nos seus livros. O alumínio, obtido pela primeira vez em massa compacta em 1864, já está na bala-foguete que serve de nave em À roda da Lua, do ano seguinte. E o que dispara o canhão gigante do mesmo livro é o algodão-pólvora, a piroxilina, então recém-descoberta. Os automóveis com motor a combustível de Paris no século 20 só seriam inventados completamente quatro anos depois do livro, de 1863, mas sua tecnologia já era conhecida.

Não se sabe bem por que, mas a paixão alucinada de Verne pela ciência mudou depois de Robur, o conquistador. O protagonista alerta, num discurso para o povo de Filadélfia: “A ciência não deve ultrapassar os costumes. É conveniente fazer evoluções, não revoluções.”. Curiosamente, essa é a fase mais interessante do escritor. Ele começa a suspeitar de que a ciência pode ser usada para o mal, parceira do autoritarismo e eventual agente da destruição da espécie humana. Uma espécie da futura Alemanha nazista tem berço em Stahlstadt, a Cidade do Aço, tiranicamente dominada por um certo Herr Schulze em Os 500 milhões da Begum, e A espantosa aventura da missão Barsac mostra uma população de senhores e escravos dominada por um implacável capitão negreiro. Em Face à bandeira, Verne criou o “fulgurador”, um bom palpite para a bomba atômica, e, em Os 500 milhões da Begum, põe em campo um canhão gigante que antecipa o Grosse Bertha usado pelos alemães na Primeira Guerra.

De qualquer forma, Verne certamente pegava a tecnologia e as descobertas de sua época e dava-lhes uma incrementada que lhes conferia uma espécie de sobrevida futuro adentro. Praticamente o mesmo que autores popularíssimos de ficção científica, como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke fizeram anos mais tarde. Mas, se compararmos o teor inventivo deles com o que Ray Bradbury, Philip K. Dick ou Philp J. Farmer criaram, dará para perceber que Asimov e Clarke estão muito mais para a técnica que para o delírio. Da mesma forma que Verne, se comparado com o Wells de A guerra dos mundos ou O alimento dos deuses.

O debate entre “científicos” e “ficcionistas” continua em aberto. O problema é se a realidade insistir em confirmar uma arrepiante frase de Verne em Cinco semanas em um balão: “À força de inventar máquinas, os homens acabarão sendo devorados por elas? Sempre imaginei que o último dia do mundo seria aquele em que alguma imensa caldeira, aquecida a 3 milhões de atmosferas, fará explodir o nosso planeta.”. Lembra, é claro, o sombrio mundo dos filmes da série O exterminador do futuro. Mas o pior é que também lembra a Terra, cerca de 2005.

Geraldo Galvão Ferraz
jornalista e crítico literário

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