Um argumento negligenciado
O pragmaticismo de Charles Peirce aposta na experiência divina como “devaneio” e traz três argumentos para investigar a Realidade de Deus
Alberto Augusto Perazzo
Charles Sanders Peirce (1839-1914), conhecido como o fundador do pragmaticismo (em substituição do “pragmatismo”), apresenta uma reflexão vigorosa sobre o tema do conhecimento fundado na experiência. Com efeito, seu pensamento científico-filosófico é uma das poucas tentativas bem-sucedidas, na contemporaneidade, de revisar a compreensão dada pela filosofia moderna às noções de experiência e razão. E é por isso que ele pode, exatamente como um cientista-filósofo contemporâneo, afirmar a Realidade de Deus.
Assim, antes de tudo, Peirce respeita o ponto de partida científico moderno, ou seja, a “experiência”, mas não sem mostrar que, com relação a esse termo, a atitude mais coerente com a vida humana seria a de entendê-lo como o inteiro resultado cognitivo do viver: “O que é a experiência sobre a qual se baseia a filosofia? Para qualquer uma das ciências especiais, experiência é aquilo que é diretamente revelado pela arte observacional daquela ciência. (…) Mas, em filosofia, não existe uma arte observacional especial, e não existe conhecimento adquirido anteriormente, à luz do qual a experiência é interpretada. A interpretação em si mesma é experiência. (…) Em filosofia, a experiência é o inteiro resultado cognitivo do viver” – CP 7, 527 (CP indica Collected Papers of Charles Sanders Peirce, volume, parágrafo – PEIRCE, C. S. Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, 1958, 8 vols.).
Com base nessa noção de experiência, Peirce admitirá não apenas a razoabilidade, mas também a racionalidade de sua crença em Deus. Assume, entretanto, que a idéia de Deus é vaga. Vaga, porém, natural e indubitável.
Deus e experiência
O caráter vago da idéia de Deus deve-se justamente ao fato de que todo conhecimento se funde na experiência. Todavia, a experiência não pode associar-se apenas às primeiras impressões dos sentidos. Peirce dizia: “Alguns psicólogos irão me deter aqui para dizer que, enquanto admitem que a experiência é mais do que mera sensação, eles não podem estendê-la ao produto mental todo, pois isso incluiria alucinações, ilusões, imaginações supersticiosas e falácias de todas as espécies; e que eles limitariam experiência a percepções sensíveis. Mas replico que meu enunciado é o único lógico. Alucinações, ilusões, imaginações supersticiosas e falácias de todas as espécies são experiências, mas experiências mal-entendidas; por sua vez, relacionar todo nosso conhecimento meramente à percepção sensível é dizer que nada podemos saber – nem mesmo equivocadamente – acerca de assuntos mais elevados, como honra, aspirações e amor” (CP 6, 492).
Dessa perspectiva, aceitamos que temos algo como uma idéia de Deus, e “de onde viria uma tal idéia senão da experiência direta?” (CP 6, 493). Mas a experiência direta, neste caso, não está na origem de um processo que levaria ao raciocínio e produziria a idéia de Deus. “Não! Para Deus, abre teus olhos – e teu coração, que também é um órgão perceptivo – e tu o verás.” Trata-se de experiência instintiva, como também o é a experiência que está na raiz do conhecimento científico.
A experiência de Deus, então, será -possível por meio do que Peirce denomina musement, ou “devaneio”, um estado particular da mente e do coração, sem regra nenhuma, que percorre os níveis da experiência livremente, e que neste percurso, mais cedo ou mais tarde, defronta-se com a idéia de Deus tão fortemente que se constitui em uma crença instintiva, base mesma de todo raciocínio posterior.
Peirce admite ter ele mesmo vivido um maravilhamento: “Deixa um homem beber nesses pensamentos que lhe chegam ao contemplar o universo psicofísico sem nenhum propósito especial (…). A idéia de um Deus por cima de tudo isso certamente surgirá, e quanto mais a considere, mais o envolverá o amor por essa idéia. Perguntará a si mesmo se de verdade há um Deus ou não. Se se permite falar ao seu instinto, e se buscar em seu próprio coração, concluirá, no final, que não pode evitar crer n´Ele” (CP 6, 501).
A crença surge, assim, da própria vida, dando, também, ocasião a uma argumentação própria e racional. Nesse sentido, Peirce preferia a expressão “Realidade” de Deus à “existência” de Deus, evitando equipará-lo a tudo o que cai em nosso campo perceptivo. Tratar-se-ia de uma “presentidade” absoluta de Deus, uma Realidade independentemente de indivíduos que a captem como “real” (como, aliás, ocorre, analogamente, com um elemento químico ainda não descoberto e que, entretanto, não pode ser considerado não-real; ele é real, mas não determinado perceptivamente).
No seu artigo sobre o Argumento negligenciado, Peirce apresenta Deus, de saída, como o Ens Necessarium (o Ente Necessário), pois, no seu dizer, “a palavra ‘Deus’, escrita assim, com maiúscula (…), é o nome próprio definível, significando Ens Necessarium. Segundo minha crença, Deus é Realmente criador (…)” (CP 6, 452).
Esse trecho permite uma correlação direta do pensamento de Peirce com o conhecido argumento ontológico de Anselmo de Cantuária (1033-1109). É notória a convergência entre os dois autores quando se pensa que a serena meditação sobre a idéia de Deus pode conduzir, com certeza, à conclusão do Ser que deve ser real. A diferença estaria em que, para Peirce, o argumento é de ordem experiencial, de maneira que a realidade de Deus é pragmaticamente indubitável, e não uma conclusão dedutiva. Trata-se de uma experiência viva.
O “argumento negligenciado” para a Realidade de Deus
Segundo Peirce, um argumento será qualquer processo de pensamento razoavelmente tendente a produzir uma crença definida; uma argumentação seria um argumento procedente de premissas precisamente formuladas. Por sua vez, a crença será uma idéia arraigada, um hábito de comportamento, cuja raiz é o processo de pensamento. Nesse sentido, o argumento é mais amplo que a argumentação, mais vago, mais em harmonia com a noção vaga de Deus, e o argumento para a Realidade de Deus será uma crença que se converterá em religiosa após o devaneio (musement).
“Se Deus realmente for, e for benigno, (…) deveríamos naturalmente esperar que houvesse algum argumento para a sua Realidade, o qual deveria ser óbvio, da mesma maneira, para todas as mentes, elevadas ou não. Estas deveriam sinceramente empenhar-se para encontrar a verdade do assunto. Por conseguinte, este argumento deveria apresentar sua conclusão não como uma proposição teológica metafísica, mas como uma forma diretamente aplicável à conduta da vida, nutrindo o mais alto crescimento do homem” (CP 6, 457).
Esse argumento, que deveria ser óbvio para todas as mentes, é o que Peirce chamava de “argumento negligenciado”, uma vez que, no seu dizer, fora esquecido pelos estudiosos de teologia natural.
No artigo que leva o mesmo nome, Neglected argument for the reality of God, Peirce apresenta uma argumentação em favor da Realidade de Deus, a partir de três argumentos. O primeiro, denominado “argumento humilde” (humble argument), enfoca a crença religiosa que se produz em todo homem simples, honesto, ainda que não possua conhecimento formal de ciência alguma. Neste caso, surge de forma totalmente espontânea a hipótese de que Deus é real, e, evidentemente, esta convicção modelará toda a sua conduta.
O segundo argumento será, precisamente, o “argumento negligenciado” (neglected argument), orientado para universalizar o argumento humilde, situando-o em uma perspectiva racional. O argumento humilde é fruto da simples meditação, do devaneio, “já que cada coração será arrebatado pela beleza e pela adorabilidade da idéia”. Isto seria justamente o que fora esquecido pelos teólogos, pois haverá na alma humana uma tendência latente para a crença em Deus. Mas, esta tendência, longe de ser um ingrediente vicioso ou supersticioso, é simplesmente o resultado natural da meditação sobre a origem dos universos de experiência (cf. CP 6, 487).
O terceiro argumento, que Peirce denomina “um estudo de metodêutica lógica (logical methodeutic), iluminado pela luz de um conhecimento por contato de primeira mão com o pensamento cientifico genuíno” (CP 6, 488), consistiria na comparação do processo de pensamento da pessoa que reflete sobre a origem dos universos de experiência com o processo sistêmico que produz os descobrimentos científicos efetivos. Este ponto será de fundamental importância na compreensão da forma como Peirce pretende articular ciência e religião.
“Há uma razão, uma interpretação, uma lógica, no curso do avanço científico, e isto prova indiscutivelmente àquele que tem percepções de relações racionais ou significantes, que a mente do homem deve ter estado em harmonia com a verdade das coisas para descobrir o que ele descobriu. É a própria pedra fundamental da verdade lógica” (CP 6, 477). O que há de inteligível nas coisas será, para Peirce, uma manifestação da mente divina; e o objetivo das ciências teóricas será o conhe-cimento da verdade de Deus: “Reconheço dois ramos da ciência: o teórico, que tem como propósito o simples e único conhecimento da verdade de Deus, e o prático, para os usos da vida” (CP 1, 239). Assim, a ciência não passaria de uma forma de mediação entre Deus e o homem.
Observamos nos três argumentos uma seqüência em que o primeiro pode ser considerado como o início da investigação da Realidade de Deus, como se fosse uma hipótese a ser provada, um momento instintivo sobre o qual deveremos afinar uma reflexão crítica, orientada pelo segundo e terceiro argumentos. Os três argumentos, ou o conjunto da argumentação, constituiriam uma expe-riência integrada, orgânica e universal.
Chegar a Deus, para Peirce, é algo dado ao menos como possibilidade a todo ser humano, mediante sua razão. Todavia, subjaz a essa idéia uma concepção de razão muito mais ampla que aquilo que se considera, comumente, uma “razão científica”. Trata-se de uma razão que aceita a imaginação, a espontaneidade, o maravilhamento e que pode ter sua confirmação na própria vida. Por isso, é possível harmonizar o nosso viver humano com Deus, da mesma forma que compreendemos e aceitamos a nossa harmonia com a mente do universo.
Alberto Augusto Perazzo é economista pela Universidade Nacional de Buenos Aires e mestrando em Filosofia pela PUC-SP
(1) Comentário
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Sempre ouvi dizer q o homem não é capaz de Deus,pois conta apenas com os sentidos limitados para encontrá-lo; por isso não o encontra e chega à alucinação de pensar que é Deus,assim, conclui-se que Deus não existe, pois quando se pensa que é algo que não é, o sujeito se torna vazio e sem identidade. Está aí a raiz de todos os crimes.Desejo destacar o que o autor diz:”O homem simples não se preocupa com artifícios, comprovações…conta apenas com a sua experiência, portanto alcança Deus.”