Três temas Weberianos
Burocracia, instituições democráticas e a relação entre racionalidade e ética são alguns dos temas fundamentais do debate político brasileiro da atualidade
Fábio Wanderley Reis
Três temas podem ser destacados em breve avaliação das idéias de Max Weber na ótica dos debates atuais.
O primeiro é o da burocracia, a propósito da qual as idéias weberianas tendem a aparecer em certa literatura recente como resultando numa máquina ritualista, emperrada e estúpida, de acordo com o sentido coloquial que a expressão burocracia veio a adquirir. A ela é contraposto um modelo “gerencial” supostamente ágil e eficiente. Mas tende-se a esquecer de que, se quisermos democracia em qualquer sociedade minimamente complexa, a burocracia é indispensável. Pois traços como procedimentos meticulosos, aplicação de regras universalistas e impessoais e observância da definição apropriada de competências são condição de que se possa ter um Estado sensível à autonomia e à igualdade dos cidadãos e capaz de prestar contas de suas decisões, e de que a flexibilidade na definição política dos fins da ação estatal não redunde em arbítrio. É trivial, ao cabo, a recomendação em favor de agilidade e eficiência gerencial: o desafio consiste em como combinar, se a atenção para a eficiência não vai perder de vista a democracia, as formas clássicas de administração burocrática com o empenho de agilidade onde quer que seja possível. Se a eficiência supõe fins dados para que se possa indagar a respeito da mobilização mais adequada dos meios disponíveis para alcançá-los, a democracia envolve antes de tudo justamente a problematização dos fins, com o reconhecimento de que há fins múltiplos e por vezes antagônicos, de conciliação necessariamente problemática e, em conseqüência, de realização inevitavelmente morosa, em alguma medida.
Mas as conexões entre democracia e burocracia têm desdobramentos mais complexos na sociologia política de Weber. Em particular, a peculiar posição em favor de uma democracia plebiscitária, em que lideranças carismáticas capazes de se dirigir com êxito às massas possam justamente prevalecer sobre o espírito burocrático, embora devam ser controladas institucionalmente pelos poderes parlamentar e judiciário e manter-se em equilíbrio com eles (devendo mesmo emergir e amadurecer através da carreira parlamentar). Com isso se liga uma concepção realista dos partidos políticos, em que a idéia de “máquinas” políticas é aplicada por Weber tanto à experiência norte-americana do political boss pragmático e pouco escrupuloso que garante cargos e prebendas à sua clientela (experiência com respeito à qual a expressão se consagrou) quanto ao que resulta, na Europa, da eleitoralização dos partidos socialistas em que Maurice Duverger viu o modelo dos partidos ideológicos de massas.
Instituições democráticas e dominação
Outro tema é o da legitimidade de uma relação de dominação, com desdobramentos para a questão das instituições democráticas. O tratamento que lhe dá Weber envolve o empenho de conceber a legitimidade em termos empíricos e realistas: trata-se da questão de até que ponto uma relação desse tipo é caracterizada pela crença em sua legitimidade por parte daqueles que se acham submetidos à dominação. O que está envolvido é, portanto, um traço psicológico – as disposições ou motivações dos dominados – que independe de qualquer pretensão de avaliação “objetiva” da legitimidade da relação ou da ordem que nela se funda. Assim, uma relação de dominação ou ordem sociopolítica pode ser “legítima” de maneira que nada tem a ver não apenas com a avaliação que dela faria o observador equipado deste ou daquele arsenal de instrumentos cognitivos ou categorias éticas, mas tampouco com a maior ou menor reflexividade ou racionalidade que porventura marque as disposições dos próprios dominados ou sirva de fundamento a elas.
Isso pode ser aproximado do que propõe atualmente a abordagem de inspiração econômica conhecida como “escolha racional”. Ela pretende basear a análise no “realismo” do mero cálculo dos interesses e prescindir, portanto, de atentar para as normas no processo em que a democracia se implanta e consolida: o simples jogo dos interesses eventualmente asseguraria de modo espontâneo esse resultado benigno. Não há como aceitar tal tese. Sem normas efetivas que a mitiguem, a busca dos interesses, por si só, pode ser feita de maneira pérfida (O. Williamson), produzindo a estabilidade perversa, que nós, brasileiros, conhecemos bem, em que se chapinha no pantanal de instituições precárias, corrupção e vale-tudo. Podemos ver, porém, que há um importante ponto de contato entre Weber e os adeptos da escolha racional, o qual se relaciona com a postulação da ocorrência de certo automatismo: num caso (escolha racional), esse automatismo, tratado como “equilíbrio”, tem a ver com a dinâmica do jogo dos interesses múltiplos; noutro caso (a legitimidade “empírica” de Weber), ele ocorre nas motivações dos atores políticos, tomadas como “dadas”, isto é, como independentes da operação de uma racionalidade reflexiva. A consideração da possibilidade dessa “racionalidade reflexiva” leva à importante questão que surge em alguns trabalhos de Jürgen Habermas: como se articulam analiticamente o fato em si de que se produzam motivações apropriadas à estabilidade de uma ordem ou relação de autoridade dada e a questão da racionalidade da própria motivação e da capacidade de uma justificação para motivar racionalmente?
Racionalidade e ética
Daí se pode passar ao terceiro tema, o de racionalidade e ética, quanto ao qual as análises de Weber seguem sendo grandemente influentes. Ele joga com a distinção, presumivelmente relevante para questões éticas, entre “ação racional com respeito a fins” (ação “instrumental”, como querem alguns) e “ação racional com respeito a valores”. Mas expõe-se a insuperáveis dificuldades conceituais. Em certa passagem de Economia e sociedade, em que Weber procura estabelecer o significado da “ação racional com respeito a valores”, lemos: “Exemplos de orientação puramente racional com respeito a valores seriam as ações de pessoas que, sem cogitar dos possíveis custos para si mesmas, agem para colocar em prática suas convicções quanto ao que lhes parece exigir o dever, a honra, a busca da beleza, a vocação religiosa, a lealdade pessoal ou a importância de alguma ‘causa’, não importa em que consista (…) a ação racional com respeito a valores sempre envolve ‘comandos’ ou ‘exigências’ que, na opinião do ator, o vinculam ou obrigam. Somente nos casos em que a ação humana seja motivada pela observância desses comandos incondicionais é que ela será racional com respeito a valores.”
Note-se, em primeiro lugar, o claro sabor de irracionalidade que se associa com a idéia de uma ação orientada por “comandos incondicionais”, que, apesar da nobreza das “causas” citadas por Weber, nos põe também no terreno do comportamento do fanático. É fácil perceber o sentido em que, assim caracterizada, a ação racional com respeito a valores representaria um tipo de ação, mas é difícil perceber o sentido em que teríamos nela um tipo de ação racional. Além disso, a ação racional com respeito a valores, que muitos tenderiam a ver como eticamente “superior” porque nela se iria “além” do caráter instrumental da ação, opõe–se nitidamente à ética que Weber designa como “ética da responsabilidade”, a qual tende a surgir, em Weber, como superior à “ética das convicções” ou “de fins últimos” (esta, sim, mais afim à afirmação de “comandos incondicionais”).
Em segundo lugar, o próprio Weber, no parágrafo imediatamente seguinte, assinala que, “na perspectiva da ação racional com respeito a fins, a ação racional com respeito a valores é sempre irracional, acentuando-se tal caráter à medida que o valor que a move se eleva à significação de absoluto, porque a reflexão sobre as conseqüências da ação é tanto menor quanto maior seja a atenção concedida ao valor próprio do ato em seu caráter absoluto”. Naturalmente, a cláusula segundo a qual a irracionalidade da ação referida a valores surgiria “na perspectiva da ação racional com respeito a fins” não faz mais que reiterar o recurso ao fundamento problemático da distinção entre as duas racionalidades. Mas é evidente que a qualificação relativa à absolutização da adesão aos valores torna impossível pretender fazer dessa mesma adesão um critério que permita distinguir um tipo de ação racional como tal. A adesão aos valores define a ação racional com respeito a valores, mas a intensificação da adesão torna o agente menos capaz de refletir: como pretender que ele, neste caso, continue sendo igualmente “racional” em qualquer sentido legítimo da expressão? Em outras palavras, quanto mais se afirma o atributo que supostamente distingue a ação como um tipo de ação racional, menos racional ela se torna, o que redunda num ilogismo patente. A qualificação implica com clareza que a ação será racional só se permitir reflexão, com destaque para a reflexão sobre suas conseqüências, ou seja, se for equilibrada do ponto de vista (instrumental) da relação entre meios e fins.
Weber tem o grande mérito de evitar a contraposição cortante (que se encontra contemporaneamente entre os que se filiam à escolha racional) entre o mundo da racionalidade e o mundo das normas, especialmente ao fazer da afirmação das grandes religiões mundiais um aspecto importante do desenvolvimento do racionalismo ocidental. Mas a raiz da confusão conceitual se encontra em que se, por um lado, ele procura distinguir os dois tipos de ação racional com base, em última análise, em seu caráter ético (maior ou menor apego a considerações relativas a convicções éticas ou morais), por outro lado procura, simetricamente, distinguir dois tipos de ética com base, em última análise, na sua racionalidade… Pois a “ética das convicções” envolve, em nome da santidade das convicções morais, a rigidez e a indisposição quanto a refletir e tratar de pesar e medir as conseqüências das decisões e ações (fiat iustitia et pereat mundus), enquanto a “ética da responsabilidade” tem na disposição reflexiva e na atenção para as conseqüências sua característica crucial. A inconsistência de Weber a respeito se mostra de forma particularmente aguda em certa passagem do conhecido ensaio “A política como vocação”, na qual o homem “consciente da responsabilidade pelas conseqüências” e que, nessa condição, “age de acordo com a ética da responsabilidade”, é apresentado, imediatamente a seguir, a declarar: “Esta é a minha posição; não posso agir de outra forma”. Ora, tal declaração não envolve senão a manifestação de uma convicção moral. Ela corresponde, na verdade, à idéia do “soco na mesa” que às vezes cobramos de nossas lideranças políticas e que estabeleceria o limite moral diante do qual se tornaria irrelevante ou mesmo imprópria a disposição de, supostamente em nome da responsabilidade e da atenção para as conseqüências, agir de maneira “pragmática” ou “realista”.
A questão geral das relações entre racionalidade e ética é sem dúvida complicada. De toda forma, há um claro ganho de entendimento se partimos de reconhecer que toda racionalidade é instrumental: a noção mesma de racionalidade envolve por força a idéia da articulação entre meios e fins, e a natureza dos fins é irrelevante para a caracterização da racionalidade como tal. Naturalmente, isso não resulta em dizer que os fins se equivalham. Eles podem ser os mais variados e surgir como mais ou menos desejáveis aos nossos olhos por razões igualmente diversas, incluindo as de ordem moral, filosófica, estética etc. Mas não há como pretender que certos fins sejam intrinsecamente mais racionais do que outros (posição a que leva com freqüência a idéia de uma racionalidade “substantiva”), pois seu caráter menos ou mais racional não poderá ser apontado senão por referência à sua condição de meios mais ou menos eficazes para a realização de outros fins que eventualmente prezamos como “valores” mais altos. A própria crítica do tecnocratismo e da sociedade tecnocrática, empreendida com ardor nas denúncias da racionalidade instrumental, não pode prescindir da indicação clara da condição alternativa a ser alcançada (do fim a ser buscado), bem como, se pretender ser conseqüente, da especificação dos caminhos (ou meios) pelos quais transitar para alcançá-la. Ressalte-se ainda que, assim entendido, o caráter instrumental da ação racional nada tem a ver com o fato de que se persigam, de maneira míope, objetivos de natureza abjetamente “interesseira”, “material” ou “econômica” em sentido convencional. A qualificação de instrumental se aplica muito bem, ao contrário, ao caso do agente com que nos familiarizamos na própria sociologia religiosa weberiana: aquele que estabelece complexas hierarquias ou cadeias de fins e meios ao perseguir um ideal moral de vida e talvez um ideal de morte, ou objetivos transcendentais – ao ser fiel a uma identidade reflexivamente assumida e realizar uma vocação.
Autoridade – São três os tipos de autoridades: racional-legal, tradicional e a carismática. A autoridade do tipo racional é, sobretudo, impessoal e limitada. Sustenta-se em normas legais e na estrutura administrativa e burocrática para colocar em prática o poder emanado de seu representante, um presidente, por exemplo, como ocorre nas democracias. Em oposição a este, a autoridade tradicional é sustentada pelo status e por um direito tradicional na figura de algum indivíduo, como um rei, por exemplo, ou no caso de sociedades indígenas em que o mais velho é o chefe da tribo. A autoridade carismática vai sempre contra um poder constituído e, nesse sentido, é revolucionário. A aceitação e o apoio dele emanam de seus seguidores. Num segundo momento, a dominação carismática pode converter-se em dominação do tipo racional ou tradicional.
Fábio Wanderley Reis é cientista político, professor emérito da UFMG, autor de Mercado e utopia (Edusp) e Política e racionalidade (Editora UFMG), entre outros
(1) Comentário
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adorei este tema esta bem interessante!!