Três décadas de "faça você mesmo"
Há trinta anos, a banda Sex Pistols estreava num palco e detonava a última “revolução” ampla ligada ao rock. Hoje, a rebeldia, a atitude e o visual punk estão completamente incorporados ao cotidiano ocidental. Em entrevista à CULT, o jornalista inglês Jon Savage fez um balanço do impacto da geração do “faça você mesmo”
“Mesmo quando o punk era constituído por apenas algumas dúzias de pessoas em Londres, nós sonhávamos em conquistar o mainstream. O underground é para perdedores”, escreveu o jornalista inglês Tony Parsons, um participante de primeira hora do punk britânico, na introdução de seu livro Disparos do front da cultura pop (lançado agora no Brasil pela editora Barracuda).
Três décadas depois daqueles dias de “algumas dúzias de pessoas”, o punk – a última “revolução” ligada ao rock com alcance cultural e social amplo – é mais mainstream (o termo em inglês para algo como “grande público”) que em seus dias de choque.
Há trinta anos, a explosão punk estava pronta para acontecer. A banda Sex Pistols aprendia mais alguns acordes básicos para seu primeiro show em 6 de novembro de 1975 na St. Martin’s Art School, em Londres. Primeiro passo para um incontrolável “efeito dominó” de barulhenta contestação jovem.
Os Sex Pistols, quarteto musicalmente rudimentar formado por desajustados, desempregados e deslocados numa Inglaterra em crise econômica e política, se juntaram na butique Sex, no bairro de Chelsea, e fizeram seus primeiros ensaios nos fundos da loja.
A Sex era do casal Malcolm McLaren (um ex-estudante de arte e ocasional empresário musical com delírios conceituais de subversão à sociedade comportada) e Vivienne Westwood (uma estilista iniciante e ousada que criava peças inspiradas tanto em roupas comuns das ruas como no vestuário dos roqueiros dos anos 1950 e dos restritos círculos fetichistas).
A loja de McLaren e Westwood (que existia desde 1971 com outros nomes) atraía desocupados com suas vitrines inusitadas e o comportamento dos freqüentadores. Para jovens sem futuro aparente numa Inglaterra em crise, tanto o mundo corporativo de terno e gravata como o sonho hippie de “paz e amor” pareciam histórias da carochinha.
Aplicando as teorias de subversão artística que aprendeu na escola e num emprego de empresário da banda americana New York Dolls, McLaren idealizou um grupo de rock agressivo para chocar conservadores e hippies – e, de quebra, promover as roupas de Vivienne.
Para isso, Malcolm pretendeu fazer uso dos delinqüentes que parasitavam em sua loja. Quatro deles (o vocalista John Lydon – rebatizado Johnny Rotten –, o guitarrista Steve Jones, o baterista Paul Cook e o baixista Glen Matlock – posteriormente substituído pelo ícone punk Sid Vicious) formaram os Sex Pistols. O “Sex” vinha do nome da butique.
O rock era básico, distorcido e cru (que já tinha antecedentes em Nova Iorque desde 1974 e se opunha ao suposto refinamento dos hippies e do progressivo). A atitude era a pregação da anarquia como opção a um governo de esquerda fracassado (o Partido Trabalhista estava no poder no Reino Unido) e uma direita que não era desejada. O visual era desleixado, rasgado, com alfinetes perfurando roupa e carne, e cabelos coloridos e arrepiados.
Os Pistols e seu primeiro público eram algo que nunca havia sido testemunhado pelo mundo pacífico e ordeiro. O choque foi tamanho que muitos outros descontentes quiseram fazer igual – e os Pistols criaram vida própria, entrando em colisão com seu “mentor” McLaren, numa subversão da “subversão” pré-fabricada idealizada por ele.
A filosofia punk era a do “se você não gosta do que existe, faça você mesmo” – ou, simplificando, o lema “do it yourself”. E os punks de primeira hora começaram a criar suas próprias artes plásticas, suas próprias roupas diferentes, seus próprios discos (dando início a um real sistema de gravadoras independentes) e suas próprias publicações (revistinhas xerocadas chamadas fanzines).
Em 1976 e 1977, os Pistols e o punk abalaram a Inglaterra de forma profunda. Pessoas acima dos 30 se horrorizavam ao ver punks em reportagens de TV e manchetes de jornal. Manifestações punk no jubileu de prata da Rainha Elizabeth II exacerbaram o choque entre rebeldes e pessoas “de bem”.
O punk inicial perdeu força com o fim autodestrutivo dos Pistols no começo de 1978, a morte de Sid Vicious em 1979 e a fragmentação em vários subgêneros nos anos seguintes.
Mas, em retrospecto, tudo o que o punk jogou na cara da sociedade estabelecida há quase 30 anos está absorvido pelo mundo consumista e pelas manifestações digitais [leia um balanço desses aspectos nos artigos seguintes deste Dossiê].
Nenhuma obra descreveu melhor o terremoto punk de 1976/77 que o livro England’s dreaming, lançado em 1991 pelo crítico musical inglês Jon Savage. Hoje com 52 anos, morando na cidade litorânea de Beaumaris, no País de Gales, Jon Savage concedeu por e-mail esta entrevista à CULT:
CULT – O que o punk mudou na música e na cultura pop?
Jon Savage – Se o punk mudou tudo, essa era a intenção. Em 1976, existia uma geração sem privilégios, jovem demais para ser hippie, velha o bastante para querer seu próprio tumulto. Como em toda polêmica, ela amava o que alegava odiar e, assim, tornou-se a cultura jovem da geração seguinte – e, no final dos anos 1970, já era uma instituição tanto quanto os refugos hippie que os punks tanto desprezavam.Para os jovens na Inglaterra, pelo menos, o punk é o Ano Zero: para quem está na faixa dos 20 anos, é aí que a cultura pop começa (os anos 1960 estão muito lá atrás). Isso é produto do fato de que o punk no Reino Unido foi talvez mais bem-sucedido como um fenômeno de mídia e de percepção. No resto do mundo, eu presumo que o punk está junto de arquétipos da cultura jovem/romântica, como os Beatles e Kurt Cobain [líder do Nirvana, morto em 1994].
CULT – O que o punk não mudou? Ainda temos bandas “dinossauras” com álbuns conceituais com faixas longas e/ou fazendo shows de arena, não tendo quase nenhum contato com seu público, fazendo sucesso apenas porque são famosos – igual ao que os punks alegavam que Led Zeppelin e Pink Floyd faziam nos anos 1970.
J.S. – Obviamente, o punk não alcançou o enorme e amplo mercado que deseja música de “qualidade”, ou seja, “bem tocada e bem produzida”, que é o principal produto da indústria musical. A música e a atitude [do punk] eram extremas, então sempre iria ter público limitado. Não era a mesma coisa que nos anos 1960.
Dito isso, não vejo problema em músicas longas nem em álbuns conceituais, só tenho problema com arte ruim. Arte ruim pode vir num formato curto e não conceitual.
CULT – Qual foi a principal razão para a explosão punk?
J.S. – Tédio. Desprezo. O fracasso do sonho dos anos 1960. A idéia de fazer você mesmo aliada a um ponto de vista holístico tirado da história do estilo jovem e de vários movimentos artísticos e políticos de vanguarda. Mude a si mesmo e você poderá mudar o mundo. Em certos aspectos,
o punk ainda era bastante parecido com os anos 1960.
CULT – Poderia ter existido um movimento punk sem a música? Ou sem os Sex Pistols?
J.S. – Não nos dois casos. Os Sex Pistols eram rock de verdade: tensão e relaxamento, barulho, agitação, imprevisibilidade, hostilidade. Eram fascinantes e repulsivos ao mesmo tempo e nos colocavam contra a parede. Para alguns de nós, o desafio era impossível de resistir.
CULT – O punk foi um movimento “planejado” (na visão de Malcolm McLaren para os Sex Pistols) que – por meio de bandas, artistas e público – se tornou espontâneo e fora de controle?
J.S. – É um excelente resumo. Os hyppies pop podem se tornar autênticos, mas apenas se interagirem com sentimentos, fantasias e desejos do público. É um processo de duas mãos: desde o princípio, os Sex Pistols tinham seu público como espelho.
CULT – Never mind the bollocks – Here’s the Sex Pistols acabou de ser relançado no Brasil. O que você achou desse álbum quando ele saiu? E o que você acha dele hoje?
J.S. – Eu não o escuto muito [hoje]. Mantenho o que disse em minha crítica de 28 anos atrás. Soa um pouco abafado, produzido demais. E, quando o disco saiu, os Sex Pistols estavam praticamente separados. Mas músicas individuais são fantásticas, como os overdubs de guitarra em “EMI”. Minhas favoritas são “God save the Queen” e “Holidays in the Sun” e os lados B de compactos.
CULT – Em retrospecto, o punk americano (as bandas e o público do CBGB’s, a revista Punk de Legs McNeil) parece um movimento mais musical, de alcance mais restrito; e o punk britânico parece ter um impacto mais amplo na sociedade.
J.S. – A discussão “britânico versus americano” é extremamente chata. Eu adoro o primeiro álbum dos Ramones [de 1976], Little Johnny Jewel, [compacto de 1975] do Television, e os três primeiros compactos do Pere Ubu. Discos fantásticos, feitos bem antes do punk britânico.
O punk americano era mais diverso, mais musical, menos padronizado, mas nenhum dos homens de frente desses grupos pioneiros tinha carisma para se tornar um grande astro. Johnny Rotten [vocalista dos Sex Pistols] e Joe Strummer [vocalista e guitarrista de The Clash] tinham e é por isso que tiveram sucesso.
Além disso, os britânicos expressavam o que os americanos pensavam: compare “eu compreendo todos os impulsos destrutivos” [“I understand all destructive urges”, verso do Television] com “fique puto; destrua” [“get pissed; destroy”, verso dos Sex Pistols]. Os britânicos eram mais jovens e agressivos.
Também houve a saturação de mídia britânica: num momento, [o punk] estava na imprensa musical, no outro, já estava no programa nacional de pop na TV, o Top of the Pops, atingindo metade do população. Não há equivalente nos Estados Unidos.
CULT – Seu livro England’s dreaming é uma história muito bem pesquisada e bem escrita dos Sex Pistols e da explosão punk. Por que você decidiu escrevê-lo? E por que a história se encerra antes de 1980?
J.S. – Escrevi porque não tinha visto qualquer relato até então (pelo menos quando escrevi em 1989) que capturasse o que eu senti e presenciei em 1976 e 1977. Foi um momento tão poderoso para mim e muitos outros que quis examiná-lo de forma extensa, mergulhar fundo no redemoinho. A narrativa parou em 1979 porque o livro já estava bem longo. Eu contei a história da primeira onda do punk britânico e foi nesse ponto que ela acabou. Para prosseguir, seria necessário outro livro.
CULT – Festivais de punk atuais – por exemplo, os Wasted/Holidays in the Sun que acontecem no Reino Unido, na Europa e nos EUA desde 1996 – são nostálgicos ou até mesmo conservadores? Ou eles mantêm o punk vivo e ativo?
J.S. – Desculpe, mas eu os acho conservadores. Para mim, a razão do punk era que ele devia ser novo e não algum estilo de vida interminável. Isso é só a reanimação de um cadáver morto há muito.
CULT – Você acha que uma banda de influência punk como o Green Day obter sucesso com o grande público com um álbum que contesta a política de George W. Bush mantém a chama inicial do punk? É uma herança ou um fato isolado sem relação direta com o punk dos anos 1970?
J.S. – Para mim, o Green Day é o último dos grupos que, como o Nirvana, tiveram experiência direta com o punk quando ele aconteceu. O punk americano virou underground depois de 1977/78 e só voltou a ter sucesso com o Nirvana. Gosto de American idiot [sucesso de público e crítica, lançado pelo Green Day em 2004], principalmente da suíte punk. Além disso, é muito importante protestar contra George W. Bush. Ele está matando o mundo.
CULT – Nos Estados Unidos, houve uma onda recente de “punks republicanos”, com bandas e público com visões conservadoras, que apóiam o presidente Bush e sua política. Isso é uma contradição com a visão política original do punk?
J.S. – Sim. O punk ocupou o mesmo espaço histórico do início da reação da Nova Direita [que levaria a conservadora Margaret Thatcher ao poder no Reino Unido] no meio dos anos 1970, mas sua ideologia é muito diferente. A ideologia punk mais coerente era anarquia verdadeira – ou seja, autodisciplina e regras pessoais no lugar de regras externas. Autonomia, se você preferir. Não creio que isso seja muito republicano, não acha?
CULT – Onde o punk ainda sobrevive? Ou onde a influência do punk foi mais forte e permanente, sendo sentida até hoje?
J.S. – Ouço essas perguntas há vinte anos e gostaria de deixá-las em aberto para seus leitores. Posso ver traços do punk nos movimentos ecológicos, no acesso à internet etc., mas eu teria mais interesse em ouvir o que eles [leitores] pensam. Afinal, eles têm suas vidas inteiras pela frente. O que importa é ter um coração limpo, crítico e apaixonado. E querer mudar as coisas.
Uma linha do tempo musical
1967-1974: Antecedentes
O rock básico, distorcido e sem muitos floreios já se manifesta em “bandas de garagem” quase anônimas e nos grupos americanos Velvet Underground, Stooges, MC5 e New York Dolls.
1974-1977: Punk de Nova Iorque
Jovens insatisfeitos com os maneirismos rebuscados do rock comercial montam bandas simples e se apresentam no pequeno clube nova-iorquino CBGB’s: Ramones, Television, Patti Smith, Dead Boys, Blondie, Richard Hell & the Voidoids.
1976-1978: Punk britânico, Ato 1
Adeptos do som básico e mais agressivos na atitude anti-social, os Sex Pistols estimulam jovens desempregados a montar suas próprias bandas e praticar sua própria rebeldia. Entre centenas de grupos, destacaram-se The Clash, Buzzcocks e Damned.
1979-Anos 1980: Do punk ao pós-punk
Com o fim dos Pistols, o punk inicial parece “morrer”, embora The Clash, com seu som variado e engajamento de esquerda, alcance enorme reputação. Ocorre uma fragmentação que, em linhas gerais, gera o pós-punk na Inglaterra e a new wave nos EUA.
Anos 1980: Hardcore
O punk mais radical (ou hardcore) limita-se ao underground na Inglaterra (com bandas como o Exploited, que populariza o lema “o punk não morreu” e o corte de cabelo moicano) e nos EUA (Dead Kennedys, Germs e Black Flag).
Anos 1990-Anos 2000: Filhos do punk e nostalgia
Após anos limitado ao underground, o punk volta a ser falado no mainstream como ingrediente da explosão da banda Nirvana e do grunge em 1991/92. Mas é influência ainda mais explícita no sucesso de Green Day, Rancid e Offspring, dois anos depois. Em 2004, o Green Day faria sua maior obra, o álbum anti-Bush American idiot. Outra linha de frente da preservação punk é o festival Holidays in the Sun (atualmente renomeado Wasted), que ocorre anualmente na Inglaterra desde 1996.
Marcelo Orozco