Tormenta Trump

Tormenta Trump

 

Donald Trump toma posse nesta segunda-feira, depois de ser eleito novamente à presidência dos EUA em disputa com Kamala Harris. É um momento de grande preocupação para grupos progressistas perseguidos pelo empresário e político. As pautas de agremiações LGBTQIA+s, feministas, antirracistas estão ameaçadas, assim como a vida de imigrantes no país. A extrema direita fica fortalecida no Brasil, por causa do bolsonarismo em suas diversas faces, e no mundo. Conversei com intelectuais brasileiros sobre o presente e os futuros possíveis do novo governo Trump, seus significados e suas reverberações em áreas como a economia, a política e a proteção dos direitos humanos.

Para o filósofo e escritor Vladimir Safatle, “a posse de Trump representa muito claramente o fim da democracia liberal formal. O segundo mandato tende a ser muito pior que o primeiro. Porque já sabem o que querem, já aprenderam a fazer. Como disse Hegel, o problema na história é quando se tem repetição”. David Nemer, antropólogo da tecnologia, professor da Universidade da Virgínia (EUA) e autor do livro Tecnologia do oprimido, lembra que “Trump planeja implementar deportações em massa sem precedentes, construir grandes campos de detenção e contratar milhares de agentes de fronteira adicionais”. Além disso, continua, “Trump pretende cortar financiamento federal de escolas que promovam conteúdos relacionados a questões raciais e de gênero que ele desaprova, uma medida que pode sufocar discussões essenciais sobre diversidade e inclusão. Vai também  restringir políticas de cuidados de afirmação de gênero, afetando negativamente os direitos da comunidade LGBTQ+.” Para a escritora e transfeminista Helena Vieira, “vem aí uma onda de duro ataque e desfinanciamento das políticas LGBT, não só desfinanciamento público, mas também da locação de recursos privados, do apoio das empresas, que tem sido importante ao longo da nossa luta”.

A socióloga e professora emérita da USP Maria Victoria Benevides, presidenta da Comissão Arns, salienta que “a vitória eleitoral de Donald Trump trouxe de volta o medo da ‘tormenta’, palavra usada pelos zapatistas e que se aplica aos países da América Latina, às voltas com golpes de Estado, e o pânico com as crises do capitalismo e do neoliberalismo predador. Trump retorna à Casa Branca sendo réu condenado em cerca de três dezenas de crimes – o que, na ‘democracia’ americana  não impede a posse do presidente eleito, mas também não impede todo tipo de maus agouros para o povo americano, para o Ocidente democrático e para o nosso Brasil. Na verdade, ser presidente foi a única saída para Trump escapar da prisão”.

Safatle é enfático: “Estamos num momento de ascensão fascista global e esse não é um termo retórico, mas analítico. Há um alinhamento muito forte entre a extrema direita e as redes sociais, a mais perfeita armadilha, o espaço mais monopolista, que tem dois ou três donos. A gente foi o último defensor da legalidade, dos pactos sociais, e tudo isso está ruindo. A esquerda precisa voltar a projetar uma alternativa radical de estrutura socioeconômica”.

Em termos de política externa, Nemer pontua que “a postura de Trump em relação à China sugere uma intensificação das tensões comerciais e diplomáticas, o que pode desestabilizar ainda mais as relações internacionais. Trump tem ameaçado retirar os Estados Unidos de tratados e alianças estratégicas históricas, como a OTAN, caso os demais países membros não contribuam financeiramente com os valores que ele considera adequados. Além disso, tem adotado um discurso expansionista, sugerindo ideias como a anexação do Canadá, Groenlândia e o controle do Canal do Panamá. Embora essas propostas pareçam improváveis de se concretizar, elas revelam a abordagem de Trump em relação aos aliados: agressiva, unilateral e marcada pela falta de cooperação”. Safatle vai além: “Não é loucura, não, é o retorno à dinâmica imperialista clássica, que é a chave de compreensão do capitalismo. Há uma grande chance de Trump invadir o Panamá. Se eu fosse panamenho estaria assustado. No caso da Groenlândia, pode acontecer o que aconteceu com o Texas, insuflar uma independência e depois propor um acordo”. Para Benevides, “nas relações internacionais, o futuro já começa ameaçador, com os arroubos trumpistas de loucura expansionista, como falar em anexar Groenlândia, Canadá, Panamá e Golfo do México, além de cobiçar o Ártico e seu rico subsolo, com os conhecidos recursos militares e econômicos. O que atinge a tradicional rivalidade com a Rússia, pois de certa forma  ‘absolve’ a ofensiva de Putin na Ucrânia e estimula a repressão de Erdogan contra os curdos em terras sírias. Idem em relação à cobiça de Netanyahu pelas terras da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Trump não parece respeitar nem os acordos com seus aliados na OTAN, rejeita qualquer proposta decorrente do multilateralismo e ignora os limites do direito internacional e humanitário. O tal mantra MAGA (Make America Great Again) inaugura, na verdade, uma nova agenda imperialista e de extrema direita. É evidente que a rivalidade comercial com a China vai atingir píncaros de avanços e crises políticas. E Trump se beneficia do recrudescimento da direita na Alemanha, na Itália, na Hungria e mesmo na França”. E continua: “A América Latina não foi relevante na campanha, e pelo gosto do eleito voltaria a ser o ‘quintal do Tio Sam’. Trump mantém boas relações com o pior dos governos autoritários, como El Salvador com Bukele, Equador com Noboa, Milei na Argentina, e o que sobrou atuante no Brasil em torno de Bolsonaro, que se pavoneia de ter sido convidado para a posse, embora com lugar apenas no grupo dos ‘hispânicos’. É previsível uma enorme pressão sobre Venezuela, Bolívia e Cuba. O Brasil também poderá ser alvo de pressão comercial pelo fato de negociar amplamente com a China (os Estados Unidos são nosso segundo importador; Trump foi protecionista no primeiro mandato; até que ponto continuará?). Pode haver retaliação com negação de vistos e deportação de trabalhadores brasileiros – são mais de um milhão de nossos conterrâneos nos States, grande parte em situação irregular”.

Em termos de meio ambiente, diz Nemer, “Trump planeja aumentar a produção de energia e reverter regulamentações climáticas, ignorando evidências científicas sobre mudanças climáticas. Essa abordagem pode agravar crises ambientais e posicionar os EUA como um pária em esforços globais de sustentabilidade”.

Como reagir?

“É fundamental ter uma análise correta da situação, e a esquerda tem muita dificuldade de fazer isso. O PT é completamente incapaz de reagir à situação histórica e o PSOL não está muito melhor. É preciso saber o que é efeito e o que é causa. O Brasil vai enfrentar uma situação de extrema fragilidade nos próximos dois anos. A extrema direita estadunidense é fortemente ligada à extrema direita brasileira. O governo está de guarda baixa. O que nos resta é ser nós mesmos, que a esquerda recupere sua história de luta. A esquerda precisa recuperar sua capacidade de reagir mais radicalmente para não ser tragada”, diz Safatle.

Para Nemer, “a resistência nos EUA pode se fortalecer por meio do judiciário, mesmo com a Suprema Corte composta majoritariamente por juízes conservadores. O presidente Joe Biden nomeou 235 juízes federais, um número expressivo que oferece aos democratas e defensores da democracia a possibilidade de utilizar o sistema judicial para contestar ordens executivas inconstitucionais, como foi feito durante o primeiro mandato de Trump. Há a expectativa de os democratas ganharem o controle da Câmara dos Deputados, o que poderia conter algumas das ações de Trump, reforçando a supervisão ao conduzir investigações e expor abusos de poder”.

Já no Brasil, pondera Benevides, “um novo governo Trump é um pesadelo para nós, democratas empedernidos, que sabemos muito bem que vencemos a eleição em 2022, mas não derrotamos o bolsonarismo e suas emanações na política, na economia, no meio ambiente, na cultura, na educação, nas comunicações, nas relações de trabalho, nas religiões. O partido de Jair Bolsonaro é o mais poderoso, dando as cartas no Congresso e nas políticas estaduais. A eleição de Trump traz um reforço importante; já vimos manifestações de rua com bandeiras americanas e de Israel. O STF está vigilante, mas enquanto a Justiça não punir exemplarmente os golpistas e os responsáveis pelo plano de assassinato do presidente, do vice e do ministro Alexandre, a ‘tormenta’ se espalha. O governo Lula precisa conduzir com mais eficiência sua agenda internacional, reforçar apoio e relações comerciais e culturais com países latino-americanos, renovar sua missões na ONU e em suas agências, reforçar o G20 e se preparar o melhor possível para a próxima COP – que não merecerá a atenção do presidente Trump. Um problema da maior importância abrange mudanças na política de segurança e controle civil das polícias. Do próximo governo Trump, Lula sabe que nada pode esperar, depois de dois anos de relações razoáveis com Biden. O governo Lula precisa avançar no campo da comunicação digital, enfrentando as pressões dos grupos norte-americanos e chineses. E deve, com apoio da sociedade civil, reforçar suas políticas de defesa do meio ambiente – o que Trump não fará, mas certamente vai cobiçar vantagens na Amazônia e em nosso rico subsolo, em detrimento dos direitos dos indígenas e dos quilombolas”.

Vieira, por sua vez, salienta: “Na perspectiva de como os LGBTs podem reagir, temos, em primeiro lugar, a internacionalização maior do movimento e da construção de blocos latino-americanos que reúnam associações, coletivos e pensadores. E, principalmente, fortalecer as alianças entre movimentos LGBTs e com outros movimentos, por exemplo, movimentos feministas, com a esquerda organizada, no sentido de construir uma resistência mais forte e que consiga pensar a política de um ponto de vista mais prático”. E continua: “É preciso construir uma sociedade menos violenta, é preciso que as pessoas estejam convencidas de que nós temos direito a usar o banheiro, a praticar esportes, que nós temos direito a não sermos violados na escola. A imposição por via de sanções legais, jurídicas etc. é importante como medida emergencial para proteger a vida dos perseguidos, dos violados, mas a gente tem de apostar na formação, na educação política para os direitos humanos, uma educação continuada, que não perpassa somente a escola, mas que seja também feita a partir dos equipamentos culturais, dos equipamentos de saúde e que tenham como horizonte justamente o convencimento da sociedade do nosso direito como sujeitos LGBTs de existir”.

Nemer acrescenta que “o Brasil pode resistir às tendências autoritárias e à incapacidade de negociação de Trump ao reforçar coalizões regionais, como o Mercosul e a CELAC, promovendo o multilateralismo e o contraponto a políticas unilaterais dos EUA em áreas como comércio e meio ambiente. Paralelamente, deve fortalecer alianças internacionais, como o BRICS, que, com sua expansão recente, tem se consolidado como uma força significativa para negociar com os EUA e a União Europeia. Além disso, o Brasil precisa diversificar suas parcerias comerciais para reduzir a dependência econômica dos Estados Unidos e mitigar os impactos de tarifas potencialmente prejudiciais. Investir em tecnologia verde é outra prioridade estratégica, tanto para reforçar a economia nacional quanto para contrabalançar a desregulamentação ambiental promovida por Trump, alinhando-se aos esforços globais de sustentabilidade”.

Por fim, Benevides enfatiza: “É preciso entender, em profundidade, o que leva setores populares a acreditarem e votarem em pessoas milionárias como Trump e em defensor de estupradores e torturadores como Bolsonaro”.

Daniel de Mesquita Benevides é jornalista e tradutor. Em pouco mais de 40 anos de carreira, passou por alguns dos maiores veículos de imprensa, incluindo TV. Tradutor de Leonard Cohen, é autor de Gelo e gim (Quelônio, 2023), seleção das melhores crônicas que escreve para a Folha de S.Paulo.

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