A terceira via é um sucesso retórico e um fracasso político

A terceira via é um sucesso retórico e um fracasso político

 

 

Muita coisa muda nesse país, menos a obsessão de certos setores por uma “terceira via”. Uma passada rápida pelo arquivo dos jornais demonstra facilmente esta tese. FHC já foi visto como a terceira via entre Lula e Collor. Brizola foi indicado como a terceira via ideal entre o PT e o PSDB por Mangabeira Ungher, nos idos de 1994. José Serra já se apresentou como a terceira via entre o PT e Maluf na prefeitura de São Paulo. Marina e Ciro já se ofereceram como terceira via entre tucanos e petistas nas eleições presidenciais vencidas pelo PT. Sem mencionar outros pleiteantes menos vistosos.

 

As novidades das eleições de 2022 sob este aspecto são apenas o curioso “engarrafamento” de pretendentes a ser a terceira via, o envolvimento de tanta gente com a ideia de que é preciso haver um candidato único representando essa alternativa, tudo isso contrastando com a enorme indiferença dos cidadãos diante deste tipo de oferta eleitoral.

 

Aparentemente, quem gosta de terceira via é político, jornalista e alguns formadores de opinião; a massa está mesmo interessada é na disputa binária envolvendo as duas principais forças políticas em campo.

 

A este ponto, cabe a pergunta: por que as candidaturas do segundo e do terceiro pelotões, normais em qualquer corrida presidencial, não  competem de forma avulsa simplesmente, cada uma defendendo o seu lado, sem precisar disputar um rótulo que não parece oferecer grandes vantagens eleitorais? De fato, nem todos querem ser “o candidato da terceira via”, nem mesmo se sabe quem se qualifica para tanto (Ciro cabe ou não no conjunto?), mas alguns parecem estar disputando uma eleição à parte, o Concurso de Miss/Mister Terceira Via. Por quê? O que há de bom nisso?

 

A reparar bem, a ideia de uma terceira via, um jeito alternativo de fazer as coisas que não se conforma às alternativas adotadas por quase todo mundo, é a nossa cara. Vejam só como o “jeitinho brasileiro” parece menos improvisação e menos tentativa de ludibriar as normas quando é denominado de terceira via. Ganha ares de busca séria de alternativas aos padrões, de criatividade e de irreverência inovadora, mesmo quando se trata da velha e desconcertante gambiarra ou da incapacidade de reconhecer o que todo mundo dá como óbvio, as vias principais que todo mundo frequenta. O que poderia à primeira vista parecer picada, viela ou desvio, ganha uma baita promoção quando se transforma retoricamente em “terceira via”.

 

Além disso, há outra tradição importante, na qual a valorização de uma ideia de terceira via decorre do elogio da temperança, da moderação, do equilíbrio entre os extremos. “Virtus in medium est”, a virtude está no meio, no centro, diz a sentença latina. Isso gera a “retórica da terceira posição” em que sempre se demonstra que dois lados contrapostos tendem a estar ambos errados e que a verdade possivelmente se encontra no meio, como uma espécie de síntese que supera e corrige duas antíteses insuficientes. Duas cegueiras, dois exageros, dois radicalismos são mediados e sobrepujados pela terceira posição, a terceira via, aquela virtuosa.

 

Não há, portanto, inocência em se denominar a terceira via numa disputa política. Nem é uma posição modesta. Ao contrário, é uma reivindicação de superioridade. Cegas por suas paixões, as pessoas podem até não se dar conta, ainda, mas só a terceira via é virtuosa e capaz de corrigir os desvios dos outros caminhos. Por essa razão, a reivindicação de representar a terceira via precisa vir necessariamente acompanhada da denúncia do defeito principal das duas principais vias que ela pretende superar. Em geral, o pecado original das duas vias principais é um dos predicados seguintes: radicalismo, parcialidade, insuficiência ou, segundo a moda dos dias que correm, polarização.

 

A denúncia da polarização é tão esperada na reivindicação de uma terceira saída, quanto a acusação de insuficiência. Quando se reivindicava a terceira via principalmente em política econômica, denunciava-se a insuficiência das duas mais frequentadas alternativas à disposição: o capitalismo e o socialismo. O liberal-socialismo ou a socialdemocracia eram as alternativas de superação à parcialidade da alternativa entre direita e esquerda. Agora que, no Brasil, a terceira via é uma proposta eleitoral, reivindica-se a insuficiência das duas principais candidaturas denunciadas como duas posições moral e politicamente erradas, enquanto ao mesmo tempo se proclama o radicalismo da primeira e segunda vias, denunciado como polarização.

 

O conceito de polarização serve na ciência da política para se descrever uma situação em que as pessoas, as ideias, as propostas abandonam qualquer esforço de moderação e de negociação. Há polarização, em suma, quando o centro político está deserto e as pessoas estão empilhadas nos extremos, sustentando as posições mais radicais e inconciliáveis. Mas quem está militando por uma terceira via não entende a polarização política nestes termos, tanto assim que acredita que pode vencer a eleição recorrendo ao eleitor moderado e de centro, mesmo sabendo que o centro é uma casa que neste momento está vazia. Para o ativista da terceira via, polarização seria simplesmente sinônimo de radicalismo e teria que necessariamente afetar, igualmente, a primeira e a segunda vias.

 

Afinal, moderação é uma prerrogativa da terceira via, que só se justifica se as duas vias anteriores representarem posições parciais e hiperbólicas. Por isso é inútil explicar para um apologista da terceira via nesta eleição que há apenas uma posição extrema em campo, a da extrema-direita. A retórica da terceira via não pode aceitar isso, pois o seu argumento depende de que as duas vias principais estejam erradas, tanto por suas insuficiências quanto por seu radicalismo.

 

A acusação de “populistas” também faz o mesmo trabalho. Tem aparecido a figura retórica da denúncia dos “dois populismos”, igualmente desprezíveis. É difícil entender exatamente que conceito de populismo essa noção sustenta, mas certamente não é um conceito coerente e sustentável em sede teórica. É apenas um adjetivo para indicar alguma coisa de radical, manipuladora, insuficiente e perigosa, um morbo que afetaria igualmente as duas principais candidaturas e as tornaria imprestáveis.

 

O problema da terceira via é que ela funciona bem na retórica, mas pode se dar mal na prática política. Antes de tudo, porque numa competição eleitoral ela já é a confissão de um fracasso: se é a terceira via é porque não está nem em primeiro nem em segundo lugar. É muito difícil enfiar na cabeça de um eleitor que ele está apostando, para vencer, em uma posição que não está disputando lá na frente. O elogio da virtude da moderação e da temperança durante uma competição vai lhe parecer sempre um discurso de perdedor. Difícil para o eleitor não pensar no regra três, no banco de reserva.

 

No caso específico da eleição de 2022, se há efetivamente polarização no país isso significa que a maior parte dos eleitores não está no centro, de forma que ou o candidato de terceira via começa a criar um terceiro polo para aglutinar eleitores, aumentando com isso a polarização, ou ele será um fracasso eleitoral. Difícil imaginar que pessoas com cacife eleitoral de nanocandidato possam atrair eleitores para o centro só para consumir os biscoitos finos que elas fabricam. Isso sem considerar, o que provavelmente é verdade, que os eleitores que ainda estão no centro provavelmente já estão comprometidos com um dos candidatos principais e não estão disponíveis para aventuras com candidatos de baixo impacto eleitoral.

 

Apesar disso, a terceira via pode até não dar votos, mas dá púlpito moral para se denunciar os candidatos preferidos do público, como insuficientes, radicais e desprovidos de virtudes. E, com isso, oferece aquela sensação de que a derrota eleitoral iminente é, no fundo, uma vitória, pois as desculpas já estão disponíveis: a massa ainda não estava pronta para uma candidatura tão excelsa; na polarização política, as paixões impedem o discernimento; o “centro democrático” está distraído pelos expedientes dos populistas e extremistas da primeira e segunda vias; chegamos cedo demais.

 

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Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes

 

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