Teoria geral do xingamento
O xingamento fala mais de quem xinga do que de quem é xingado (Arte Revista CULT)
Talvez seja necessário fundar uma nova ciência para dar conta de um fenômeno que tem se tornado crucial em nossa cultura comunicacional na era das tecnologias digitais e das redes sociais. O objeto dessa ciência seria o fenômeno do xingamento: a conspurcação do outro em forma verbal, que surge em profusão nas redes, por meio de palavras, emoticons e outros sinais gráficos.
Nossa nova ciência, na base de uma antropologia e uma sociologia, deve habitar o intervalo entre o mundo da pesquisa e o mundo da vida simples. Geografia e estatística nos revelariam o estado da linguagem de ódio que sustenta o ato generalizado de xingar. A antropologia digital e a psicanálise poderiam auxiliar com a análise da cultura atual que surge na internet, mas também com a compreensão do tipo subjetivo do xingador.
O xingamento generalizado merecia uma historiografia e uma semiologia. E até uma teoria estética. E se o ataque verbal a alguém – esse ato que sempre teve todo tipo de função, da catarse ao escracho, do vilipêndio à humilhação, da vontade de destruir ao ato de dominar – é um fenômeno do poder, seria necessária também uma teoria política. O ato de xingar até hoje é um ato político, por trás do qual se esconde todo tipo de moralismo. Então, precisaríamos de uma ética.
Toda ciência tem um drama humano em seu fundo. Mais do que uma curiosidade, a ciência visa resolver algum problema. Estuda-se astronomia e cosmologia para entender os fenômenos cósmicos, a geologia visa entender os fenômenos físicos e químicos do planeta, a sociologia quer tornar compreensível o modo de ser das sociedades, enquanto a história é a ciência que estuda o que já passou. A questão antropológica fundamental diz respeito ao “ser humano”. Como vive, como age, como habita, como sente, como trabalha, como produz, como se organiza e se movimenta, como cria arte, religião ou qualquer forma de linguagem, como se expressa e se comunica.
Por mais que as questões tratadas pelas ciências humanas sejam de altíssimo nível de complexidade, há nas mais variadas investigações científicas um problema comum que pode se apresentar como uma questão popular. Podemos, por isso, tentar responder de modo direto à interpelação: “diz-me como xingas e dir-te-ei quem és”.
Fato é que o xingamento fala mais de quem xinga do que de quem é xingado. Por mais violento que seja, todo xingamento esconde um desejo. Por trás da violência está uma impotência específica que visa ser sanada na ação. Quem não consegue falar, pode sempre começa a xingar. No gesto violento surge uma palavra mágica que concentra e resume o ódio. Ela dá um poder ao xingador. Ele se sente superior por um instante fugaz.
Mas há algo ainda mais profundo. Todo ato de fala visa tocar ou atingir o outro. Seja por que caminho for, aquele que fala deseja estar perto, deseja tocar. Por meio do xingamento o agente visa machucar. Mas por outro lado, deseja também ser reconhecido pelo objeto do xingamento. Só xingamos aqueles por quem nos sentimos de algum modo atraídos. Nesse sentido, o xingamento é bem diferente da crítica. Enquanto a crítica visa desconstruir ou desmontar seu objeto para mostrar sua verdade, por meio do xingamento se visa alcançá-lo.
Não podemos falar só de pobreza da linguagem quando falamos de xingamento, porque há muitos casos de real esforço retórico, dispêndio de tempo e muito trabalho envolvido, muitas vezes profissional, publicitário e bem remunerado, criando espaço para uma verdadeira indústria e um mercado do xingamento. Reduzindo a linguagem à miséria, o xingamento faz parte do todo do discurso de ódio que, por sua vez, está inserido na cultura do clássico “falar merda” que se tornou hoje em dia um grande capital no tempo em que o ato tosco, o sádico e o cruel valem mais do que qualquer coisa que possa ter relação com a verdade.
Xingar é, portanto, um ato expressivo pelo qual alguém comunica a outrem seu ódio, mesmo que seja sob a máscara de expor uma insatisfação.
Precisamos de uma teoria geral do xingamento que nos ajude a entender o xingador e o xingado para os quais o xingamento é a mediação. Quanto ao xingado podemos dizer muito pouco, pois como sujeito passivo do xingador ele é a vítima e como tal mereceria, em princípio, apenas defesa. No entanto, mesmo que se trate de um crime quando falamos de xingar na forma de injúria, calúnia ou difamação, é um fato que, no contexto no qual está em vigência uma verdadeira “cultura do xingamento”, as vítimas serão tratadas como culpadas. É um fenômeno curioso de uma cultura de privilégios em que o capital linguístico encontra sua formulação mais desesperada.
A cultura do xingamento é herdeira dos piores hábitos culturais que podemos imaginar. Em sua base a impotência para o reconhecimento dos outros e uma vontade de fazer justiça com as palavras reduzidas a matéria não reciclável.
(7) Comentários
Eu concordo absolutamente, “na mais alta epistemologia acadêmica”. Parabéns pelo trabalho, você é maravilhosa!
Quem não consegue falar, xingar é um bom comeco! Sua coragem me impressionam e me trazem esperança Márcia tilburi ? não sei o que me assusta mais, se as postagens ou os comentários ?
Descreveu de maneira precisa esse “ódio” diário das Redes. Sempre pensei q teria q haver uma necessidade de afirmação + visceral do q apenas aparecer
É também em alguns momentos a única fala dos violados pelo medo de uma não existência. O xingamento em si, claro os oriundos dos sem escolas, sem classe, sem moradia, e o fascista ( classe media) arrebanha.
A cultura da violência+ o medo q acarreta desperta o sombrio de qq um.
Eu entendo o xingamento, não só como uma reação de ódio, mas também uma reação irracional, torpe de quem não tem recursos argumentativos. Xingamento é uma linguagem paupérrima
Me preocupa, tanto quanto o xingamento, a crítica rasteira e generalista. Ela vem se tornando uma praga, que atinge até círculos de formadores de opinião. Por vir vestida de uma fina camada de verdade, quando na verdade ela atua para reforçar preconceitos e mentiras, ela é difícil de ser respondida e combatida.
A incapacidade de compreensão das ideias do xingado, leva ao desepero o xingador, que diante da sua impotência cognitiva e até de pré-requisitos vê no ato de xingar a única possibilidade atingir o outro, afim de anular o que não entendeu. Talvez a busca por um papel de destaque, um tipo de protagonismo, que antes da era digital nunca fosse possível. No caso específico da autora, muito xingada nas redes, principalmente por homens, haja algo mais. “Como assim uma mulher está falando algo que não entendo?” ” Vou desqualificar, pois não me faz sentido algum”, diriam os frágeis homens. Márcia, quando vejo você argumentando contundentemente, usando psicanálise nas suas falas, eu já começo a rir, pois sei que abaixo virão comentários de homens desesperados não admitindo a sensação da incompreensão que você os causou. Continue! Minha esperança é ver um dia o pensamento dos xingadores serem convertidos para lucidez do “não entendi” , e isso semear alguma dúvida na cabeça dos que têm certezas absolutas. Abraços