A teia sutil de uma poética feminista
As obras de Clarice são declinadas no feminino sob um viés feminista, pelo protagonismo de suas personagens mulheres e pelos laços de cumplicidade entre elas e a narradora (Foto: Arquivo Manchete)
Assim como Clarice sempre resistiu a qualquer tentativa de enquadramento e manifestava publicamente sua falta de interesse em produzir “literatura” – termo ao qual atribuía o peso de uma instituição, um fardo que nunca cogitou carregar porque se considerava uma amadora, e não uma “profissional” –, também nunca mencionou o termo “feminista”, seja na sua vida pública, seja na sua produção ficcional. Talvez porque na época circulava o clichê de que feministas eram mulheres mal-amadas e desejavam se igualar aos homens, noções distorcidas e disseminadas por segmentos conservadores que não admitiam a agenda da luta por direitos, foco das reivindicações dos movimentos de mulheres que começaram a ganhar vulto a partir da década de 1950.
Nesse período e nas décadas seguintes, o impacto da obra O segundo sexo (1949) de Simone de Beauvoir foi explosivo, particularmente pela afirmação de que a mulher “feminina”, nos termos do binarismo de gênero na cultura patriarcal, é caracterizada pela passividade e que é nessa condição que ela se torna um ser para o outro, uma alteridade institucionalizada.
Com vivências em países europeus e nos Estados Unidos, Clarice certamente tomou conhecimento das passeatas de mulheres que ganhavam, na época, ampla cobertura nos jornais e em noticiários na televisão. Também foi leitora de escritoras inglesas como Emily Brontë, Katherine Mansfield e Virginia Woolf, que abordaram questões relativas à condição feminina, definida como “o problema que não tem nome” por Betty Friedan, em seu A mística feminina (1963). Woolf, além de inovadora na prosa de ficção, em Um teto todo seu (1929) foi pioneira na denúncia da opressão econômica, intelectual e criativa das mulheres: ao tentar fazer uma pesquisa sobre o tema mulher e ficção na biblioteca de Oxbridge (nome fictício para as duas mais tradicionais universidades da Inglaterra, Cambridge e Oxford), foi impedida na entrada por não estar acompanhada de um homem nem levar uma carta de apresentação. Ao retornar devidamente acompanhada, levantou informações que referendaram o que observara de forma empírica, isto é, que a tradição literária era pautada, exclusivamente, na genealogia pais/filhos.
Em tempos de questionamentos e de transformações sociais, não surpreende que na singularidade composicional de suas obras Clarice articulasse um feminismo latente de outra genealogia, a de mãe/filhas, presente nos alinhamentos entre narradora, autora implícita e personagens femininas, tramados em diferentes graus de cumplicidade. Trata-se de uma teia na qual a relação da narradora com suas personagens conflui em fios de discurso/fios de pensamento que deslizam de uma obra a outra, produzindo ressonâncias e superposições na construção de elos intersubjetivos. Se o fio, no mito de Ariadne, é símbolo de salvação de um enredamento mortal, na obra de Clarice seu arquétipo tece um imaginário que fecunda subjetividades/identificações declinadas pelo pertencimento feminino e que entrelaçam vida e ficção numa economia de afetos que não deixa de evocar o lema feminista de nossa época, “o pessoal é político”.
Talvez nenhuma outra escritora brasileira, ao longo de sua obra, tenha sido capaz de captar e sustentar com perspicácia e constância a problemática de personagens femininas, circunscritas por injunções de uma estrutura patriarcal que contamina o espaço familiar. Suas trajetórias oscilam em movimentos de resistência, de submissão e de transgressão, num aprendizado doloroso de autoconsciência e de percepção do mundo à sua volta. Isso não significa dizer que Clarice reduzia a literatura ao compromisso verossímil de um realismo ingênuo, mas sim que seu viés feminista estava presente na construção das experiências vividas por suas personagens e produziu, de forma subjacente, uma crítica social pertinente a seu tempo e lugar.
A pergunta, implícita ou explícita, que percorre os fios de sua teia na pergunta “quem sou eu?” ganha expressão em Joana, Ana, Lucrécia, Laura, Virgínia, G. H., Ângela, personagens que figuram a condição da mulher brasileira de classe média dos anos 1940 a 1960 – condição essa que transcende limites geográficos e temporais. Em diferentes graus de sensibilidade quanto à realidade, todas essas personagens passam por sensações de vazio e de impotência, um desconforto com a rotina de um cotidiano regulado por rituais domésticos e padrões preestabelecidos que dão um falso equilíbrio às suas existências e distorcem as percepções de si próprias e da vida. Por isso, em momentos de devaneios, vertigens ou revelações, todas são assaltadas por certo mal-estar, um desejo confuso, a falta de algo que não sabem definir o que é, mas que sentem ser necessário descobrir. Esse momento é o das horas perigosas, quando algo reprimido emerge à superfície para romper a normalidade das aparências e desestabilizar, mesmo que momentaneamente, a estrutura engessada de suas vidas.
Em seu romance inaugural, Perto
do coração selvagem, Clarice se
apropriou da forma do Bildungsroman,
o romance de formação, para tecer o
aprendizado de Joana, desencadeado por
revelações sobre a mãe morta – uma
mulher “enviesada”, insubordinada, com
poderes e vontades, segundo as palavras
de seu pai, que ouvira às escondidas.
Trata-se de uma imagem que a cultura patriarcal define como corporificação do mal. Ao assumir uma postura rebelde, Joana resiste à domesticação da consciência, não quer se transformar “naquela que só ouve e espera”, tal “como um bicho que adestrou suas passadas para caber dentro da jaula”. Nesse processo, vai desbloqueando sua subjetividade e seu potencial criativo para além da reprodução, seja no sentido biológico, seja no sentido linguístico/social da reprodução de papéis de gênero. Na identificação com a imagem materna, Joana esvazia o significante “pai” e aborta todas as expectativas tradicionais de realização feminina, o que a torna indecifrável aos olhos dos outros. Fazer emergir a outra de si, nesse processo de autogestação, é resgatar o espaço de origem, potência geradora de uma criatividade feminina rebelde, legado materno recalcado pela Lei do Pai, mas que permanece, de forma latente e residual, na memória reconstruída em torno de uma imagem operadora da alteridade e da identificação. Não surpreende que seu processo de autogestação seja dramatizado nos lexemas fome e sede, signos da falta, e que tecem uma rede metonímica – água, chuva, onda, mar – que projeta um espaço imaginário de plenitude, evocativo das origens, o território longínquo e perdido que Joana chama de “lalande”.
O romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres se destaca no elenco das narrativas clariceanas como uma narrativa mais leve, iluminada pelo processo de transformação da personagem Lóri, uma mulher apática, resignada e isolada de si e do mundo. Seu processo de superação de dificuldades existenciais e de condicionamentos psíquicos a leva em direção ao autoconhecimento e à plenitude amorosa. O subtexto arqueológico do texto marca uma série de oposições binárias: Ulisses/homem superior, parentesco patronímico com o herói grego e sujeito do conhecimento, e Lóri/mulher sedutora, um corpo pressocial que evoca a sereia do poema “Lorelei” do poeta alemão Heinrich Heine.
O caráter forte e didático de Ulisses, descrito como “a estabilidade de rocha”, vai perdendo gradualmente seu aspecto agressivo na medida em que percebe que o crescimento de Lóri depende menos de seus ensinamentos que de sua autodeterminação. Aos poucos, Lóri se desprende da imagem de sedutora e do papel de objeto estático da criação de Ulisses, “uma tela nua e branca, só faltando usar os pincéis”, e empreende uma busca solitária, “um corpo a corpo consigo mesma”, porque compreende que antes de tocar o mundo necessita tocar-se a si mesma. Do narcisismo inicial ao autodescobrimento, Lóri expande as fronteiras de sua vivência por meio de uma nova energia, expressa nos desdobramentos de uma sexualidade feminina afirmativa e de um corpo emancipado de censura. E assim, aquela que tinha sido uma adoradora de homens se vê como uma nova mulher antiga, e a profeta de rituais esquecidos muito tempo antes desperta de seu sonho secular. Ao pronunciar a frase “Eu bebi a nossa vida”, Lóri se ilumina em completude, perturbando a lógica da diferença fixada pela ordem simbólica. Sintomaticamente, as últimas palavras de Ulisses “soaram como as de um perdido”.
Na ousadia de A paixão segundo G. H., a narradora G. H. apresenta o relato doloroso de sua travessia do espaço familiar da casa para um mundo desconhecido, o quarto da empregada Janair, essa outra, “a inimiga indiferente” que ela reconhece como a lembrança de alguém “que era eu mesma”. Ao contrário do que supunha, o quarto não era sujo e escuro, mas limpo e cheio de luz, e ali encontra e mata uma barata cuja matéria branca ingere, num estado de vertigem mística. Na sequência desse ato transgressor num espaço periférico, primitivo e arcaico que desorganiza o conhecimento que tinha de si e de seu mundo, G. H. busca se reconciliar consigo mesma, se fazer nascer outra, metáfora de um renascimento: “Me reorganizarei através do ritual com que nasci”. Em sua experiência traumática, G. H. acessa sentidos subterrâneos de sua história pessoal, sentidos que se dilatam na perspectiva de uma história impessoal em cujo centro reconhece a ancestralidade de um feminino-raiz, o corpo materno. Reconhece-se como “a vestal de um segredo que não sei mais qual foi”. E anuncia que precisa recordar o que se alojou nas camadas profundas da psique a fim de elaborar o que viu e viveu – o que explica uma narração marcada por movimentos de repressão e de desejo com relação à visão-revelação de um corpo interdito. Na busca de Joana, no aprendizado de Lóri e na autodescoberta de G. H., a narradora/escritora tece a rede de afetos por meio de suas criaturas de papel, na travessia que vai da iniciação à dor ao fascinante processo de existir, descobrir e renascer.
Na tessitura ficcional de Clarice,
não menos revelador é o enfraquecimento
da estrutura androcêntrica da cultura
patriarcal nas duas obras que colocam
em cena a autoria masculina.
Em A hora da estrela, o narrador Rodrigo S. M. é ícone da hegemonia masculina no campo da escrita – lê-se tradição literária – ao afirmar suas habilidades para contar a história de Macabéa, uma vez que, segundo ele, uma escritora não teria condições para suportar o sofrimento de uma história triste e cairia na pieguice. Mas na medida em que descreve e se envolve com sua criatura, Rodrigo vai se descobrindo, sente-se cansado e mesmo desesperado – a ponto de se ver como peça inútil de uma engrenagem da qual não faz parte. Na paródia da autoridade do sujeito-autor-criador fica subentendida a denúncia da soberba e do preconceito que alimenta sua forma de narrar, destituída de qualquer expressão de empatia para com sua criatura: uma retirante nordestina, representante da mulher brasileira mais aviltada e carente de recursos para enfrentar a brutalidade da sobrevivência.
Em alguns aspectos há uma sintonia desse romance, A hora da estrela, com Um sopro de vida, no qual o autor/narrador se vangloria de ter inventado e nomeado sua personagem Ângela Pralini. Analítico e crítico, o autor se identifica com o “lógico”, o “sóbrio”, o “geométrico”, o “mecanicista”, e esclarece sua pretensão de escrever num estilo “estrutural”, uma afirmação do poder da techne para fazer a physis, a natureza falar. Sua criatura Ângela é seu oposto, sensorial e sem intencionalidade, é “orgânica e livre”, “pântano onde nasce musgo molhado”, palavra que explode na configuração metonímica do corpo: “Minha palavra é terra”. No jogo discursivo entre autor e criatura, o mito do Gênesis que selou a origem e a ordem do pai na cultura patriarcal sofre um processo de desfiguramento, pois à medida que Ângela vai crescendo com voz e presença distinta de seu autor-criador, ele vai perdendo o controle da escritura e não lhe resta alternativa senão reconhecer a falência de seu sistema. Portanto, ao escapar do discurso de seu criador, Ângela não só esvazia a função paternal/autoral, deixando o autor em crise, mas rompe com a hierarquia de gênero ao afirmar sua independência discursiva na terceira parte do texto que leva o título “Livro de Ângela”, no qual declara: “Quero gritar para o mundo: Nasci!!! E então eu respiro”. Na explosão da personagem não domesticada nem territorializada e que parte em busca do próprio caminho, o esvaziamento do poder da figura paternal/autoral sinaliza um assalto na base de uma tradição teológica e literária de criação androcêntrica. Em ambos os romances, a manipulação de estratégias formais e discursivas que esvaziam a figura do pai-criador colocam em relevo a figura da escritora como efetivamente a mãe/origem/força nutriz das filhas de sua imaginação. E assim a genealogia mãe/filha, silenciada na história patriarcal, é simbolicamente recuperada.
As obras de Clarice são declinadas no feminino sob um viés feminista, não somente pelo protagonismo de suas personagens mulheres e pelos laços de cumplicidade entre elas e a narradora, mas pelo agenciamento da escritora que intervém, de forma eloquente, no sistema de representação da cultura patriarcal. Não por acaso, o último fio de sua teia culmina no caudal de Água viva, pura imersão na energia originária de um feminino cósmico que vem “das trevas de um passado remoto”. Assim, tecida por muitos fios, a poética feminista de Clarice inscreve seu posicionamento social e político no contexto da cultura de seu tempo e projeta uma ética da diferença, inscrita no potencial criativo e subversivo das mulheres, que se reinventam para poderem se imaginar outras, e umas com as outras, na literatura e na vida.
Rita Terezinha Schmidt é professora titular de literatura e convidada do Programa de Pós-Graduação de Letras da UFRGS, pesquisadora do CNPq e autora de Descentramentos/Convergências: ensaios de crítica feminista (Editora UFRGS), entre outros