Tecnologia e Política em Marcuse

Tecnologia e Política em Marcuse

A crítica de Marcuse à suposta neutralidade da ciência exige ao mesmo tempo a concepção de uma “nova humanidade”

Marilia Mello Pisani

As reflexões de Herbert Marcuse sobre as transformações nas formas de vida sob o impacto da revolução científico-tecnológica são desenvolvidas em seu livro Ideologia da sociedade industrial [1964], mas aparecem pela primeira vez nos textos dos anos 1940, nos quais ele recorre a uma vasta bibliografia sobre o impacto das transformações tecnológicas na estrutura da sociedade e no indivíduo. Nesses textos o filósofo realiza uma interessante analogia entre as sociedades nazista (nacional-socialista), capitalista e socialista soviética. O que elas têm em comum é a predominância de uma determinada “racionalidade técnica”, que se expressa pelo uso da tecnologia como forma de controle e coesão social – um controle que começa com a introdução das máquinas nas fábricas e se estende para toda forma de organização da vida social, da organização do trabalho ao lazer e descanso, assim como para a própria subjetividade e até a sexualidade.

Em Estado e indivíduo sob o Nacional-Socialismo, Marcuse mostra que a emergência de uma nova moral sexual sob o nazismo serviu aos interesses do Estado nacional-socialista, um Estado organizado como uma máquina onde todas as suas partes estão devidamente coordenadas. Na Alemanha nazista todos os indivíduos se tornaram “apêndices da maquinaria”; os seus desempenhos individuais foram completamente ajustados à operação da máquina, “cronometrados e coordenados de acordo com suas exigências”, “eles próprios foram coisificados e se tornaram parte fixa da máquina”. Segundo Marcuse, o nacional-socialismo realizou uma “tecnicização da moral”, fazendo da moral uma parte da tecnologia “em sentido literal”. Esse sistema “tem uma estrutura técnica e sua coerência é um procedimento técnico”, pois “na tecnologia, não há verdade ou falsidade, certo ou errado, bom ou mal – há apenas adequação ou inadequação a um fim pragmático”, o que justificaria o extermínio em massas enquanto um procedimento meramente técnico. Esta definição de “técnica” nos conduz a uma discussão espinhosa na reflexão de Marcuse sobre o tema: a crítica da neutralidade da técnica e da ciência.

Crítica da neutralidade da ciência e da técnica

Nos anos 40, a crítica da neutralidade da técnica e da ciência não aparece de forma tão evidente quanto nos textos dos anos 60. Em Algumas implicações sociais da tecnologia moderna [1941], Marcuse estabelece uma distinção entre “técnica”, entendida enquanto conjunto de instrumentos que podem servir tanto ao controle quanto à libertação, e “tecnologia”, definida como um modo de produção específico que utiliza a técnica como instrumento de controle.

Porém, a partir dos anos 60 essa distinção se torna menos nítida, o que põe sérios problemas para a análise do tema no autor. Essa indiferenciação tornou Marcuse alvo de severas críticas, tanto por parte das esquerdas marxistas quanto dos liberais conservadores, ambos rejeitando a crítica do progresso tecnológico e científico desenvolvida pelo filósofo. Podemos supor que essa “mudança de foco” seja uma conseqüência de dois fatores. Primeiro, a incorporação de uma literatura crítica sobre a técnica e a ciência moderna que surge ao longo dos anos 40 e 60, como a crítica das ciências modernas de Edmund Husserl, as reflexões de Martin Heidegger sobre a questão da técnica, assim como as do filósofo da técnica Gilbert Simondon.

Um segundo fator pode ser resultado do novo contexto histórico do pós-Segunda Grande Guerra. Podemos sugerir que um evento crucial separa as reflexões de Marcuse acerca da técnica entre o período dos anos 40 e 60 – a explosão das bombas atômicas no Japão em 1945. Esse evento deu início à corrida armamentista, impulsionada pelas descobertas científicas e tecnológicas, e à competição entre as potências socialistas e capitalistas, resultando na aceleração da produção de mercadorias e na emergência do modelo americano de sociedade de consumo, como forma de competir ideologicamente com a ex-URSS. Marcuse defende a tese de que a coexistência entre as duas potências competidoras foi o motor para a produção crescente e enorme produtividade, promovendo a estabilidade do capitalismo. A partir desse momento a “tecnologia transformou-se num novo sistema de dominação”. Antes mesmo da explosão das bombas, na Primeira Guerra, a aliança entre ciência e guerra já havia se tornado evidente. Porém, podemos considerar esse um acontecimento significativo na medida em que suas proporções e magnitude marcaram para sempre o imaginário coletivo, tornando-se, assim, um evento que nunca mais pôde ser esquecido.

Desse modo, no pós-guerra a questão da neutralidade da técnica e da ciência adquire novo significado: a ciência passa a ser questionada não só em suas aplicações, mas em sua própria “pureza”, em sua neutralidade. Nos anos 60 Marcuse defende a tese de que a tradicional separação entre “ciência pura” e “ciên-cia aplicada” se tornara ilusória.

Marcuse tem plena consciência do con-teúdo progressista que a afirmação da neutralidade da ciência desempenhou no início do projeto científico como uma forma de libertar a ciência e a técnica das normas impostas. Ela foi destruidora do dogmatismo e da superstição medieval, da justificação teológica da desigualdade e da exploração e da autoridade irracional. Entretanto, esse fato histórico foi ultrapassado e essa “separação que foi uma vez libertadora e progressiva é agora destrutiva e repressiva”. Não basta apontar para a relação entre a ciência e o capitalismo, como se a evolução atual da sociedade fosse compreensível apenas mostrando que o capitalismo se apropriou da ciência e que os resultados de sua evolução são conseqüências de uma má utilização desta e da técnica – há algo além que é preciso demonstrar. Para Marcuse, o problema está na compreensão da racionalidade técnico-científica como uma racionalidade essencialmente neutra, indiferente aos fins e aos valores, e no seu modo específico de lidar com a natureza. Isto é, o problema está na separação entre ciência e valores, entre técnica e política, entendida aqui como um acontecimento histórico.

Técnica, natureza e tecnicidade

Para compreender a crítica de Marcuse vamos nos aproximar de um conceito que aparece poucas vezes em seus textos, mas que se revela importante: o conceito de tecnicidade. Este aparece em um ensaio “Da ontologia à tecnologia: as tendências da sociedade industrial” [1960]. Quando se refere ao termo, Marcuse o faz em um contexto onde aparece uma das poucas referências a Heidegger nos anos 60.

Em “A questão da técnica” [1954], Heidegger também recusa a neutralidade da técnica e do que chama de abordagem “antropológica” e “instrumental” do termo, que significa entender a técnica como um mero conjunto de instrumentos e artefatos. O problema é que essa concepção pode ser aplicada à técnica em qualquer época e circunstância, pois identifica todos os seus estilos, sejam antigos, medievais ou modernos, e não permite revelar a especificidade histórica da técnica moderna.

No que diz respeito à técnica moderna Heidegger afirma que o problema está no seu modo específico de lidar com a objetividade. Se antes, com os gregos, a natureza era apreendida com portadora de finalidade inerentes, portadora de uma alma e vitalidade próprias, na modernidade esse “fundo mágico” desaparece, a natureza perde sua qualidade de substância independente tornando-se mera matéria-prima e, portanto, neutra, sem valor intrínseco. A natureza não está mais aí gratuitamente, o homem não se submete mais a ela para que ela permita ao homem retirar o que precisa e, nesse ato, realizar a produtividade própria da natureza juntamente com a do próprio homem, mas exatamente o contrário, o homem moderno se torna, então, “senhor sobre a Terra” (Heidegger).

Para os modernos a natureza torna-se natureza matematizada, mera representação do sujeito que a apreende. Assim, graças a essa teoria da natureza, que aparece pela primeira vez na ciência moderna, foi possível o surgimento da técnica moderna. Segundo Heidegger a sua especificidade não está no fato de ela ser fundada sobre a ciência moderna, exata, da natureza, uma vez que o inverso também pode ser verdadeiro, quer dizer, ciência experimental também depende de um material técnico e está ligada ao progresso na construção de aparelhos técnicos. Para ele, a teoria da natureza elaborada pela física moderna preparou o caminho para a técnica moderna, que só deu seus primeiros passos quando pode se apoiar nas ciências exatas da natureza.

Este é justamente o ponto de convergência com a crítica da técnica tal como Marcuse a desenvolve. Essa abordagem neutra da natureza permitiu que esse “princípio metodológico” se entendesse para todas as formas de ação social e fez da ciência e da técnica veículos de uma nova forma de dominação, que torna todo ser passível de redução a mero instrumento. Marcuse encontra no início do projeto científico e em sua forma de apreensão da natureza e da objetividade a gênese do desenvolvimento social da técnica e da ciência e da própria racionalidade científico-tecnológica. Esta racionalidade aparece como o desfecho de um processo que tem em sua base a idéia de Razão tal como os gregos entendiam, mas que, na modernidade, foi transformada e reduzida à Razão técnica, de onde se origina a separação entre razão, ética e política que está na base da tese da neutralidade.

A sociedade tecnológica é guiada por formas de pensamento e ação que aceitam o universo dos fatos dados como único, obscurecendo a capacidade de determinação dos fins das ações humanas, a capacidade propriamente humana da de-cisão. Esta sociedade guiada pela racionalidade técnica caracteriza-se pela inespecificidade quanto aos fins, obscurecendo o sentido da práxis, da ação pautada por fins.

Porém, por meio do conceito de tecnicidade a técnica deixa de ser abordada de uma perspectiva instrumental. A partir de agora ela passa a ser entendida em seu caráter existencial, o que implica uma determinada relação entre o homem e a natureza e, assim, uma determinada idéia de verdade e de objetividade. A tecnicidade não se refere à técnica mesma, mas à forma especificamente histórica da relação entre o homem e natureza. Esse conceito permite rejeitar a tese da neutralidade, pois os objetos podem ser neutros, mas a relação com a objetividade não, ela indica um determinado universo de fins, um idéia de verdade. Em toda tecnicidade está presente esse universo de fins, que por sua vez determina a própria forma do instrumento técnico (já nos gregos a “finalidade” permanece atuante em toda produção técnica – não existe instrumentalidade per se). Porém, na modernidade esse universo de fins foi recusado, o que abriu a possibilidade de uma aproximação meramente instrumental do mundo.

Marcuse revela o nexo necessário que une Razão técnica e Razão política. Toda técnica tem um universo de fins, uma causa final inerente, mesmo que ela seja mistificada pela suposta neutralidade dos objetos técnicos. Técnica e política estão necessariamente unidas em todo e cada caso e, assim, a própria neutralidade da técnica se revela como política. Uma “nova” técnica (instrumento) seria possível dentro de um novo universo de fins, de uma nova tecnicidade e, portanto, de uma nova relação com a natureza. Dentro de um novo universo de fins as técnicas se transformariam em sua própria estrutura, visto que a construção de aparelhos e de máquinas, de instrumentos e objetos técnicos, está vinculada à concretização destes fins. Nesse caso, a razão política, isto é, a organização de uma nova pólis, estaria vinculada à construção de uma nova técnica que realize esses novos fins. A crítica da separação entre técnica, ciência e política conduz Marcuse a pensar nos fins e restituir à Razão seu caráter político, enquanto práxis.

A recusa da tese da neutralidade não implica a defesa de uma volta ao passado tradicional, pré-científico, ou uma recusa da ciência e da técnica. Isso porque para Marcuse a tecnicidade, assim como o projeto técnico e científico, tem caráter existencial, sendo, portanto, elementos fundamentais na realização das necessidades vitais e na constituição de uma “vida sem angústia, pacificada e de alegria”.

Seu interesse é mostrar que, sendo a ciência e a técnica atividades humanas, elas só alcançam seu objetivo se assumirem claramente o caráter político e histórico que foi mascarado pela afirmação da “pureza” científica. Marcuse não é “tecnofóbico”; quer, ao contrário, salvar a ciência de seus excessos, como esforço na luta pela existência livre. Ele defende realização do telos próprio à ciência – o melhoramento da vida humana; caso contrário, “ela perderá sua própria raison d’être”. Dizer que a ciência deve tornar-se “política” não significa de modo algum que os fins políticos devem ser impostos de fora. Deve-se reconhecer que “a consciência do cientista é política e que seu empreendimento é político”, pois “político” tem a ver com uma boa organização da pólis.

Em busca de uma Razão Sensível

O que está em jogo para Marcuse é uma determinada concepção de “natureza humana”. Herdeiro e ao mesmo tempo crítico do Iluminismo, Marcuse resgata a possibilidade da ação humana incorporada no conceito iluminista de Razão, ou seja, a decisão, sendo esta própria à humanidade em sua diferenciação em relação à natureza. Enquanto a natureza segue uma causalidade interna, ao ser humano é dada a possibilidade de transformação, de interferir no rumo das coisas, tanto no mundo externo quanto em si mesmo. Porém, enquanto crítico do Iluminismo, mas sem abrir mão da Razão, ele recusa o Logos dominador da natureza, tanto externa quanto interna – a sensibilidade – e propõe uma nova racionalidade, a “razão sensível”, entendida como a reconciliação entre Eros e Logos. Esse rompimento com a lógica da dominação está subentendido em sua radical idéia de “revolução”, que ele herda dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx. O que está em questão é a possibilidade de uma nova relação com a natureza e o surgimento de um “novo homem”, uma nova “natureza humana” – pois, o que há de natural à natureza humana é a possibilidade de se diferenciar, de se recriar a cada momento. Assim, Marcuse abre possibilidade para redefinir uma nova meta humana de mudança radical frente à crise do mundo contemporâneo. Devido a essa sua idéia de “humanidade”, ele pôde se aproximar dos movimentos ecológico e feminista ao longo dos anos 70, pois para ambos está em jogo uma nova relação com a natureza externa e interna.

“(…) insisto que não há algo como uma natureza humana imutável. Além a acima do animal, os seres humanos são maleáveis, corpo e mente, até mesmo em sua própria estrutura pulsional. Homens e mulheres podem ser computadorizados, transformando-se em robôs, sim – mas eles também podem recusar-se a isso.” (Marcuse, Ecologia e crítica da sociedade moderna [1977])

Marília Mello Pisani é professora de filosofia da Universidade Mackenzie, com doutorado sobre a relação entre ciência e política em Marcuse

(1) Comentário

  1. Complexo, mas interessante.
    Cheguei a esse texto buscando formas de uso da tecnologia na política (em decorrência desse outro texto https://bit.ly/2Cwxhw1)  mas acabou lançando luz a um campo de ideias completamente novo. Salvarei esse conteúdo para poder estudá-lo melhor.
    Ótimo trabalho!

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