O suicídio de uma nação e o extermínio de um povo

O suicídio de uma nação e o extermínio de um povo
Yitzhak Rabin, Bill Clinton e Yasser Arafat em Oslo, em 1993 (Foto: Library of Congress)

 

Existe um filme de Luis Buñuel que se chama “O anjo exterminador”. Nele, vemos um grupo de burgueses que vai para uma espécie de salão de recepção e simplesmente não consegue mais sair. Não há nenhum impedimento físico, nenhuma restrição, a não ser aquela vinda de suas próprias vontades. Quando tentam sair eles subitamente param, perdem a força de vontade e permanecem paralisados. A impotência vai até o desespero, cenas de violência e degradação aparecem, até que, da mesma forma como foi natural entrarem no salão, eles saem.

Existe um sintoma fundamental na ordem geopolítica mundial. Trata-se do conflito palestino. Ele é como o filme de Buñuel: diante dele todos param e preferem nada fazer, até que explode algo terrível, como os ataques perpetrados pelo Hamas semana passada, e seguem-se ações que têm, no fundo, um só objetivo, a saber, continuar a não fazer nada de real, continuar a não procurar abrir caminho algum para resolver o conflito. A reação consiste apenas em mobilizar porta-aviões, exército, discursos de força, catástrofes humanitárias para esconder o dado elementar: a comunidade internacional não está disposta a resolver problema algum na Palestina.

Façamos um exercício elementar de projeção. O que acontecerá depois das ditas “ações militares” israelense em Gaza? O Hamas será destruído? Mas o que significa exatamente “destruição” aqui? Ao contrário, não foi exatamente assim que o Hamas cresceu, a saber, depois das ações inaceitáveis de punição coletiva e de indiferença internacional? E mesmo se os líderes do Hamas forem mortos, não aparecerão outros grupos alimentados pela espiral cada vez mais brutal de violência? Seria importante partir do dado histórico de que todas as tentativas de aniquilar militarmente o Hamas só aumentaram sua força, pois tais ações militares criaram o quadro narrativo ideal para que ele aparecesse, aos olhos de grande parte dos palestinos, como representante legítimo da resistência à ocupação. Quer dizer, só há uma maneira de vencer o Hamas e esta maneira não passa pela vitória militar, seja lá o que isso possa significar.

Permitam-me colocar claramente o que penso e que venho escrevendo há quase vinte anos na imprensa nacional: o Hamas não será destruído porque ele tem um sócio que precisa dele para sobreviver, e esse sócio é Benjamin Netanyahu. As ações feitas por Netanyahu e seu governo de extrema-direita, com o beneplácito de potências internacionais, só têm um efeito possível: fortalecer os sentimentos que alimentam o Hamas. Um pouco de sensatez e de análise histórica do conflito nos levaria rapidamente a essa conclusão. A solução está em outro lugar. E, bem, aqui escreve alguém (e isto é fácil de checar via internet) que nunca deixou de criticar o Hamas e seu projeto. Não tenho ilusão alguma a respeito do que são os interesses de grupos fundamentalistas religiosos. Falei em mais de uma vez que os palestinos têm dois problemas para resolver: um é a política colonial do Estado de Israel, o outro é o Hamas. Continuo pensando o mesmo. Mas, como no filme de Buñuel, a saída desertou da vontade de quem pode resolver o conflito, a saber, a comunidade internacional com seu sistema de pressão.

Um problema extremamente complexo?

Durante anos fomos massacrados com a eterna ideia de que este era um conflito “extremamente complexo” ou de que suas causas deveriam ser procuradas em alguma espécie de “ódio milenar entre povos semitas” e coisas do gênero. No entanto, não há nada de complexo no conflito palestino. O direito internacional, representado pela ONU (diga-se de passagem, a mesma instituição que criou o Estado de Israel), reconhece à Palestina o estatuto jurídico de “território ocupado”, ocupação considerada totalmente ilegal pelas resoluções 242 e 338 há mais de cinquenta anos. Ou seja, Israel deve respeitar a lei internacional e devolver os territórios ocupados. Como se não bastasse, há os Acordos de Oslo, que definem um caminho claro para a paz e a resolução do conflito. Israel deve respeitar tais acordos internacionais, o que até agora não ocorreu. Inclusive, o atual primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, nunca escondeu sua recusa em aceitá-lo.

No entanto, os palestinos efetivamente se engajaram nessa via. Durante décadas, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) levou a cabo ações diretas, inclusive ataques a civis, e manteve um discurso claramente contrário à partilha que criaria dois Estados na Palestina histórica. E, no entanto, há mais de 30 anos, a OLP abriu mão das ações armadas, mostrando a disposição dos palestinos a uma solução negociada para o conflito. Há de se entender esse ponto: os palestinos que se engajaram em um processo pacífico de negociação foram traídos. Se os Acordos de Oslo fossem respeitados, não haveria Hamas. Qualquer solução começaria por mostrar aos palestinos que a via diplomática pode trazer resultados efetivos.

E aqui seria importante recuperar a verdadeira razão pela qual esse processo de paz fracassou. Ele fracassou porque o então primeiro-ministro de Israel, Itzak Rabin, foi assassinado, não por um membro do Hamas, não por um palestino, mas por um colono judeu. Enquanto Rabin e o então líder da OLP, Yasser Arafat, tentavam colocar em prática o plano, colonos afrontavam o exército israelense em processos de desocupação de assentamentos, rabinos ultraconservadores faziam discursos incendiários contra o governo e víamos na televisão campanhas publicitárias feitas por organizações judaicas fundamentalistas que conclamavam os judeus do mundo, com armas em punho, a impedirem a entrega de terras aos palestinos. O final deste processo foi o assassinato de Rabin.

Desde então o processo de paz acabou. Pois havia um problema de difícil resolução, esse sim um problema extremamente complexo. Há uma ambiguidade maior no cerne da concepção israelense de nação. Por um lado, ela é assentada na criação de um Estado moderno e laico onde haveria espaço inclusive para os árabes (embora em número controlado). Mas, de outro lado, a concepção israelense de nação é assombrada por fantasmas religiosos e comunitaristas no interior dos quais um messianismo redentor se mistura perigosamente com a tentativa de criar vínculos orgânicos entre nação, Estado e povo. O resultado é o paradoxo gritante de um Estado que se pretende moderno e tem um bizantino Ministério das Questões Religiosas, com suas cortes rabínicas, seu Departamento de banhos rituais e sua Divisão de assuntos sobre enterros. Na verdade, um espectro ronda o Estado de Israel: o espectro do teológico-político.

Do lado de Israel, ficou claro que o avanço do processo de paz só seria possível por meio de uma confrontação com este núcleo teológico-político que sempre serviu de alimento para uma parte de seu imaginário como nação. No entanto, isso seria simplesmente a morte da direita israelense com seu comunitarismo indisfarçável e seus partidos religiosos. Para ela, continuar o processo de paz seria levar o país a uma guerra civil. Tratava-se então de adiar o processo de paz ad infinitum. E a melhor maneira para isso era alimentando a popularidade de um grupo fundamentalista islâmico. Foi assim que a direita israelense e o Hamas cresceram juntos a partir do final do governo Rabin. Um precisa do outro para existir.

Por isso, não há outra forma de descrever o que o governo Netanyahu faz agora a não ser como um experimento suicida. Pois ele acredita que a única coisa capaz de unificar o país é a guerra. Mas para funcionar, essa guerra deve ser infinita, sem fim, criando uma situação de exceção permanente. Uma sociedade fraturada como a israelense encontra na guerra um ponto forçado de união. Através da guerra permanente, toda voz contestadora é constrangida, a crítica dura ao apartheid de fato, à política tipicamente colonial do Estado israelense para com os palestinos é associada, de forma desonesta, ao antissemitismo. O que não significa ignorar expressões de antissemitismo real que aparecem em situações de guerra e que devem ser combatidas.

Eu insistiria que estamos diante de um experimento suicida porque guerras dessa natureza não podem ser vencidas, elas servem apenas para militarizar a sociedade em todos seus poros (como denunciou de forma precisa a socióloga israelense Eva Illouz no caso de sua sociedade), destruindo sua substancialidade. A única possibilidade de realmente vencer a guerra seria através do puro, simples e impensável extermínio de fato dos palestinos. Pois eles simplesmente nunca aceitarão serem tratados como um povo inexistente ou que deve ser deslocado completamente para o leste do Rio Jordão. Tentar aprofundar nessa via significará colocar o mundo inteiro em risco, levar as populações dos países árabes à ebulição, com o aumento generalizado da insegurança mundial. Há uma ilusão colonial típica que está sendo mais uma vez atualizada aqui. Terra e liberdade são elementos completamente conjugados. Os povos sabem que não há autonomia sem autoctonia. Não há comunidade humana que aceite seu próprio desterro de maneira passiva.

Pode-se dizer que o conflito palestino é mais complexo que uma situação colonial clássica, porque há uma contestação sobre quem tem direito à autoctonia. No entanto, o direito internacional, mais uma vez vale a pena lembrar, é claro: a autoctonia dos palestinos na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em Jerusalém Oriental não tem nenhuma possibilidade de ser contestada e a comunidade internacional tem a obrigação de defendê-la e pressionar para sua efetivação imediata.

No entanto, não me escapa o fato de que o mundo caminha para uma situação na qual só se governa através da generalização de situações de crise. Uma verdadeira vontade de resolução do conflito passaria por uma intervenção da ONU e o uso de força militar internacional como elemento mediador, mas sequer um comunicado conjunto o Conselho de Segurança é capaz de aprovar. A tentativa do governo brasileiro foi louvável, embora serviu apenas para mostrar o fim de fato da ONU. Desde a invasão norte-americana no Iraque, feita sem acordo da ONU, a única instituição capaz de mediar conflitos bélicos deixou de existir. Cada vez mais, entramos na era do medo como afeto político central. Estados procuram, na verdade, perpetuar as ditas ameaças terroristas como forma de consolidar uma política de contínua vigilância, de intervenção policial extensa e de bloqueio de contestações efetivas. Isto é um fenômeno mundial de mudança de paradigma de governo que vem sendo denunciado há pelo menos duas décadas de forma sistemática por todos os lados. Com esse conflito e seus desdobramentos, ele poderá ainda ser mais aprofundado.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

TV Cult