Sublimar é um ato de criação?

Sublimar é um ato de criação?
"A arte da conversação" (1963), de René Magritte

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Numa conferência proferida em 1987 e publicada sob o título “O que é o ato de criação?”, Gilles Deleuze busca delimitar o ato de criação como ato de resistência em diferentes domínios da cultura. Criar não se aproxima do ato divino, como certa tradição romântica supôs ao sobrepor à ideia de gênio o ato criador. Com Deleuze fica muito claro que o modo pelo qual o ato de criação se dá está profundamente arraigado à materialidade do campo no interior do qual se cria – assim, diz ele, a filosofia só inventa conceitos por estar emaranhada na história que compõe a teia conceitual do campo filosófico.

O cinema, por outro lado, cria blocos de movimento-duração ao penetrar no próprio raciocínio inventivo de caráter modular. Na pintura, a invenção opera por linhas e cores e rearticula a história desses componentes. A música, por sua vez, apreende a temporalidade por intensidades, vibrações, timbres e sonoridades. O terreno das artes, diz ele de maneira mais precisa em O que é a filosofia?, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos, “seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido”. Uma obra de arte é, assim, “um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si”. Deleuze não exclui a ciência do rol das diferentes esferas ligadas à criação. Sem opor ciências às artes, o filósofo define o campo das ciências como aquele que inventa funções que estabeleçam leis de correspondência entre dois conjuntos pelo menos.

Inventar não é, para ele, o mesmo que descobrir. Descobrir é iluminar algo que já existia, ao passo que ao processo de inventar ligam-se as ideias que precisam de formas que as engendrem numa materialidade determinada – ideias que só existem como planos de fuga de um recorte material específico, o do cinema, o da poesia, o da literatura, o da filosofia e assim por diante. Uma constelação de ideias permite o encontro entre os diferentes campos e os diferentes tempos da história e dos espaços geográficos. Elas se interconectam pela materialidade e por aquilo que lhes dá forma – longe de qualquer prisma transcendental, tais ideias só nascem nos meandros materiais ligados a uma determinada esfera de criação em recortes espaço-temporais. E as ideias se comunicam nessas diferentes linguagens – logo, não são os egos de inventores que se conectam, mas ideias que atravessam, ultrapassam ou ficam aquém da esfera egoica dos criadores.

Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma ideia? O que ocorre quando dizemos: “Pronto! Eu tenho uma ideia”? Porque, por um lado, todo mundo sabe bem que ter uma ideia é um acontecimento que ocorre raramente, é uma espécie de festa, pouco comum. E, por outro lado, ter uma ideia não é uma coisa geral. Não se tem uma ideia em geral. Uma ideia, assim como quem a tem, já é voltada para um domínio específico.

Ou uma ideia em pintura, ou uma ideia em romance, ou uma ideia em filosofia, ou uma ideia em ciência. E, evidentemente, não é o mesmo que pode ter tudo isso. É necessário tratar as ideias como potenciais, já engajados em um modo de expressão peculiar e inseparável desse modo de expressão, ainda que não possa dizer: eu tenho uma ideia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma ideia em tal domínio, uma ideia em cinema, ou talvez em outro, uma ideia em filosofia.

O outro aspecto ligado à criação é sua profunda necessidade de fazer existir uma ideia – dar a ela um corpo. Na linha das cartas de Rilke, trocadas com o jovem poeta, Deleuze pensa na necessidade como elemento que faz movimentar as invenções – uma necessidade complexa, que nem sempre está presente. Talvez tal complexidade esteja melhor explicitada numa breve passagem de “Proust e os signos”. Ali, Deleuze afirma ser a obra de arte uma diferença última e absoluta do sujeito que só aparece quando impressa nos contornos formais de uma peça artística.

Seguindo os passos de Proust, Deleuze elege o seguinte trecho de Em busca do tempo perdido: a essência “é alguma coisa em um sujeito: diferença interna, diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós”. Trata-se de algo imaterial que apela por existir e só existe na medida em que brota dos interstícios materiais correspondentes aos diferentes domínios de criação – arte, ciência, filosofia. Daí sua afirmação contundente: “um criador faz apenas o que ele tem absoluta necessidade de fazer”. Não é prazer o que o move. Tampouco é uma necessidade de corresponder às exigências do mundo tal como ele se move – a necessidade expressa uma convocação da ideia, que ocorre apesar do criador, mas através dele e de seu campo de trabalho.

Daí a distinção definitiva feita por Deleuze entre a ideia e a comunicação. Comunicação refere-se à propagação de uma informação, que nada mais é do que um conjunto de palavras de ordem. Ela opera para informar sobre algo que emerge no registro da factualidade – se somos informados, supomos automaticamente tratar-se de algo que devemos crer. Uma informação entra no registro que pavimenta o que consideramos ser a realidade dos fatos. A informação pretende cimentar o chão em que todos irão pisar, circular, ir e voltar. Evidentemente há também a possibilidade de não crermos nas informações, mas, ainda assim, é algo compulsório que precisaremos de um esforço de contestação – sem tal crença no pavimento das informações de ordem não haveria possibilidade de comunicação.

Entretanto, a informação é o alimento do sistema de controle. Nossa sociedade é uma sociedade de controle que deixou de se configurar pelo enclausuramento disciplinar, tal como descrito por Michel Foucault. Controle não é disciplina. Ninguém precisa estar num espaço institucional, cuja existência se deu por meios discursivos de poder e saber disciplinar. Hoje todos parecem exercer sua liberdade ao infinito, sem que o controle esteja ausente em cada ínfimo espaço territorial. Nesse contexto, a informação é o sistema de controle das palavras de ordem que circulam em uma dada sociedade.

Uma obra de arte ou um conceito filosófico não se conectam com a informação, mas com a contrainformação. Isto é, há sempre um discurso que interpela o pavimento no qual se consolida a informação, há sempre uma contrainformação que faz frente à informação. Todavia, falta potência à contrainformação. Ela dificilmente incomoda a ordem de controle e acaba por ser absorvida pelo sistema informacional como sendo apenas mais uma informação. Sendo assim, uma contrainformação só é capaz de operar efetivamente quando se converte em ato de resistência. Mas o ato de resistência não é informação nem contrainformação.

Embora não haja nenhuma relação entre as artes e a informação como instrumento de comunicação, uma afinidade fundamental emerge entre as obras de arte e o ato de resistência. Quando bem-sucedida, uma obra de arte pode, então, ser gesto de resistência à informação e à comunicação.

Deleuze levanta uma questão sobre a função da arte usando os seguintes termos: qual seria a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, considerando que aqueles que resistem não têm tempo e, por vezes, nem mesmo a cultura necessária para ter qualquer relação com a arte? Sem saber responder ao problema, ele avança recorrendo a Malraux, para quem a arte é a única coisa a resistir à morte. Textos filosóficos, obras de arte, funções científicas resistem ao tempo, resistem à morte. Ideias materializadas resistem. Como atos de resistência, as obras criadas assumem diferentes formas humanas de luta e apelam para um povo que falta. O povo que falta e, simultaneamente, que não falta. O povo é o povo que assumiria o desejo de transfigurar todos os valores em direção à liberdade do próprio desejo.

Psicanálise e sublimação: impasses estéticos

 

Embora a psicanálise não esteja elencada como uma das esferas de criação destacadas por Deleuze, ouso aqui incluí-la como um domínio no qual as ideias ganham configurações concretas. Se digo psicanálise, é porque esse território não se define enquanto ciência, nem enquanto arte e nem como filosofia. São extensos os debates que a colocam ora numa esfera próxima das artes, ora noutra que teria relação com as ciências, ora ainda como uma ética, o que a circunscreveria como parte da filosofia.

Por diversas razões que não caberia explicitar aqui, considerarei a psicanálise como um domínio específico, cuja materialidade visa a traçar o desejo, dar a ele um estatuto legítimo de cidadania, abarcá-lo em sua forma singular. Criar em psicanálise significa inventar os meios pelos quais essa voz do desejo poderá emergir da e na relação com o analista, isto é, naquilo e daquilo que ficou denominado transferência. Diferentemente da filosofia e das artes, que também se aventuram pelas malhas do desejo, a psicanálise se detém nas suas manifestações absolutamente singulares – interessam angústias, sintomas psíquicos, sintomas somáticos, lapsos, sonhos, fantasias daquele que endereça sua fala ao analista.

Ou seja, a psicanálise trata do desejo pela materialidade da enunciação discursiva de um sujeito específico que busca uma relação, cuja base, como salientei, é a transferência. Por isso, a psicanálise é um campo teórico-prático tecido em torno de ideias procedimentais capazes de extrair o desenho singular do desejo em suas mais diferentes manifestações subjetivas.

Além de engendrar procedimentos e dispositivos clínicos capazes de perfilar e conceder vigor ao desejo, a psicanálise também cria corpos teóricos que mapeiam essas malhas diversas de expressões subjetivas. Nesse vasto território psicanalítico, tornou-se convenção chamar de sublimação expressões do desejo que assumem formas artísticas e intelectuais.

Se assim é, caberia aqui retomar Deleuze e, com os recursos da psicanálise, observar em que medida diferentes manifestações do desejo em obras da cultura se apresentam enquanto atos de resistência ou se elas simplesmente se revestem de arte ou filosofia para entrarem numa cadeia de informações que sufocam o desejo e reiteram a ordem de controle por codificações e axiomas. Tal distinção tem implicações diversas para o campo psicanalítico e para o campo da estética. Trocando em miúdos nos termos deleuzianos: quais ranhuras subjetivas seriam capazes de arquitetar formas que estariam ligadas a um povo que falta? O que faz com que alguma manifestação psíquica encarnada em obra da cultura seja resistente e outra esteja em absoluta consonância com a ordem de controle? Talvez seja exatamente este o limiar que compense mais um lance de olhos para o conceito psicanalítico de sublimação.

Sublimação como ato de resistência ou as resistências da sublimação

 

Parto de uma extensa e provocadora citação de O anti-Édipo para que seja possível avançarmos nos problemas da sublimação. Vale lembrar que, aceitas as premissas deleuzianas sobre atos de criação como atos de resistência, será necessário ainda acrescentar que atos de resistência só se moldam enquanto tais, quando pensados como resistentes a determinada rede de códigos e sistemas. Vimos que tais códigos se estabelecem na atualidade pela informação que delineia formas de controle social e político.

Dizem Deleuze e Guattari em O anti-Édipo que, se o capitalismo pode ser considerado como uma máquina social engendrada a partir de fluxos descodificados capazes de cortar códigos fixos anteriores, sua estrutura de poder e controle só pode se fixar por uma axiomática das quantidades abstratas em forma de moeda. O capitalismo liberta os fluxos do desejo para subsequentemente recodificá-los por cortes e limites. Daí que sua história universal não se dê por uma ordem contínua, necessária e inescapável, mas por uma lógica das contingências. Todos os limites do capitalismo emergem nos fluxos descodificados propícios a expressões do desejo, mas eles são rapidamente convertidos em formas quantitativas abstratas que refazem códigos ou acionam axiomas capazes de reestabelecer a ordem do capital.

Por isso, os autores afirmam que o capitalismo está sempre a ponto de se dissolver, mas tal característica é justamente a que lhe permite se reestruturar. Opondo-se com todas as forças àquilo que o próprio sistema deixou fluir livremente, os poderes que circunscrevem o capitalismo se remodelam continuamente. Uma análise marxista, tal como incorporada por Deleuze e Guattari, não dispensa ingredientes do acaso e os encontros inesperados na análise das determinações do sistema capitalista. É desse lugar complexo, portanto, que devemos avaliar se processos da sublimação são atos efetivos de resistência. Cito, então, o trecho mencionado:

As nossas sociedades modernas […] procederam [com] […] uma vasta privatização dos órgãos, o que corresponde à descodificação dos fluxos tornados abstratos. O primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social, foi o ânus. O ânus foi quem deu seu modelo à privatização, ao mesmo tempo em que o dinheiro exprimia o novo estado de abstração dos fluxos. Donde a verdade relativa das observações psicanalíticas sobre o caráter anal da economia monetária. Mas a ordem “lógica” é a seguinte: os fluxos codificados foram substituídos pela quantidade abstrata; desinvestimento coletivo dos órgãos em conformidade com o modelo do ânus; constituição de pessoas privadas como centros individuais de órgãos e funções derivadas da quantidade abstrata.

É preciso até dizer que, se o falo tomou nas nossas sociedades a posição de um objeto separado que distribui a falta às pessoas dos dois sexos e organiza o triângulo edipiano, é o ânus que o separa assim, é ele que suprime e sublima o pênis numa espécie de Aufhebung constitutiva do falo. A sublimação está profundamente ligada à analidade, mas não no sentido em que esta, por lhe faltar outro uso, forneceria uma matéria para sublimar. A analidade não representa o mais baixo que seria preciso converter num mais elevado. É o próprio ânus que passa para cima, o que ocorre nas condições de sua exclusão do campo, condições que teremos de analisar e que não pressupõem a sublimação, pois é esta que, ao contrário, deriva delas. Não é o anal que se propõe à sublimação; a sublimação é que é inteiramente anal; assim, a crítica mais simples que podemos fazer à sublimação é dizer que ela não nos faz sair da merda (só o espírito é capaz de cagar).

Vejamos essa passagem com uma lupa nas mãos. Nela, muitos elementos merecem análise detida. Comecemos, então, pela seguinte afirmação, cheia de consequências: “não é o anal que se propõe à sublimação; a sublimação é que é inteiramente anal”. Aqui localiza-se exatamente o lugar de onde nascem os desvios da meta sexual para fins sublimatórios – são desvios das produções fecais e de prazeres efetivamente anais que se codificam em anseios ilimitados por limpeza, ordem, controle, retenção, exclusão de restos.

O ânus foi o primeiro órgão privatizado e, não à toa, é a ele que se soma uma primeira descodificação dos fluxos tornados abstratos. Numa ordem molecular, objetos parciais seriam anárquicos, explosivos e vibrantes. Quando privatizados, porém, entram numa ordem molar pela qual são apartados do campo social. Para Deleuze e Guattari, o ânus modela toda a lógica da privatização – isto é, a produção fecal e os prazeres anais devem existir apenas em condições absolutamente reservadas. O processo molar que se manifestou pela retenção e pelo controle das fezes nas crianças, pelo movimento de escondê-las dos olhos de outros. O gesto de destinar a elas um espaço à margem da civilização caminhou a par e passo com o novo estado de abstração dos fluxos engendrado pelo avanço do dinheiro, levado a seu ápice com o fim do padrão-ouro na era Nixon.

Lembram Deleuze e Guattari que o caráter anal da economia monetária foi reconhecido por Freud. O obsessivo é aquele que se fixou na fase anal – as manifestações psíquicas obsessivas produzem pensamentos irrelevantes que neutralizam o desejo e seu caráter erótico-sexual e esmeram-se na ordem, no controle e na limpeza que excluem as fezes e demais sujeiras do corpo. São sobretudo esses traços obsessivos a operar nas formas civilizatórias modernas engendradas pelos diferentes modelos da economia capitalista.

Talvez não seja exagero afirmar que a irrelevância dos produtos fabricados no capitalismo equivale aos pensamentos irrelevantes do obsessivo, assim como o gesto contínuo de subtrair aquilo que seria efetivamente necessário e desejável a uma vida comum emancipada equipara-se ao gesto de excluir ou mesmo eliminar sujeitos migrantes, refugiados, negros, homossexuais (que remete ao prazer anal) como sujeiras ou restos. Uma abstração que amputa a força potente dos corpos e opera em fluxos vazios de qualquer materialidade.

Ainda pensando no registro anal da libido caberia, então, perguntar: não seria o excesso de tais abstrações monetárias no capitalismo financeiro análogo ao excesso de flatulências quando as fezes estão demasiadamente retidas? Isto é, sem que a organização da vida concreta das pessoas ocorra pelas bases materiais de que efetivamente precisam e desejam, resta apenas a circulação vazia da moeda descolada do corpo erótico, do desejo encarnado, das necessidades vitais. Vida torna-se resto onde dominam as abstrações vazias e fétidas.

Mas vejamos ainda mais detidamente como esse cenário anal que dá forma ao capital se liga ao conceito de sublimação. Como vimos, fluxos antes codificados em outras formas civilizatórias transformam-se, no capitalismo, em quantidades abstratas e num desinvestimento coletivo dos órgãos parciais. Esses dois aspectos seguem o padrão do desinvestimento que ocorreu no ânus e estendem essa lógica para os demais órgãos parciais, bem como para o fluxo maquínico que passa a deter sua produção múltipla a um único modelo de escolha objetal – ainda que esta possa assumir aspectos relativamente variáveis.

O ânus tornou-se o órgão a ser extirpado da civilização. Entretanto, o falo não deixou de sofrer o impacto de tal corte. Ele, enquanto objeto simbólico, assume o lugar de um ideal – com Lacan, torna-se o objeto causa do desejo. O falo é o que resta da abstração do pênis. Destituído de carne e sangue, o pênis converte-se em falo, símbolo abstrato de um poder patriarcal que não se revela como tal.

A lógica de codificar o ânus é, portanto, a mesma que “suprime e sublima o pênis numa espécie de Aufhebung constitutiva do falo”. Há, todavia, uma diferença que delineia tal codificação num órgão e noutro. O falo, pênis desencarnado, é o que mobiliza ideias do eu e orienta os caminhos da sublimação, ainda que tanto Freud como Lacan tenham distinguido claramente uma fronteira entre idealização e sublimação.

Lacan chegou mesmo a conceber a sublimação como modo de o sujeito tomar distância de sua identificação fálica, na medida em que a obra passa a ocupar o lugar que o sujeito tinha para o Outro. Contudo, é justamente essa proposição a indicar, pela lógica deleuze-guattariana, que o fluxo sublimatório tem direções precisas, que são exatamente aquelas traçadas por eles.

Voltemos a elas, portanto. No capitalismo da informação, a abstração e fluxos esvaziados operam na própria irrelevância do conteúdo comunicado – são informações-mercadorias à espera de cliques, compartilhamentos, em suma, de consumo.

Toda a lógica algorítmica da comunicação se dá em termos quantitativos e não qualitativos, em termos abstratos de consumo e circulação e não com base na importância vital dos próprios conteúdos comunicados. Ou seja, se a sublimação é o processo de conceder contornos à própria civilização, é necessário reconhecer que ela emerge profundamente ligada à codificação da analidade pela abstração e esvaziamento dos fluxos.

A faceta fálica orienta, por sua vez, as identificações e os ideais que prescrevem os caminhos sublimatórios, ainda que posteriormente o sujeito prescinda deles ou mesmo os dissolva, orientando-se, então, pela sua falta.

Pelo prisma de Deleuze e Guattari, não é o ânus que é sublimado. Não se trata de elevá-lo de sua condição baixa a outra mais elevada, dizem. O próprio ânus é que passaria para cima. Em termos civilizatórios, operamos pela codificação anal e a sublimação não está livre desse modelo. Pensamos com o ânus e não com a cabeça. Nas palavras dos autores, cito mais uma vez: “não é o anal que se propõe à sublimação; a sublimação é que é inteiramente anal; assim, a crítica mais simples que podemos fazer à sublimação é dizer que ela não nos faz sair da merda (só o espírito é capaz de cagar)”.

Caberia, portanto, engendrar um conceito psicanalítico avesso a tais processos sublimatórios, um conceito que descodificasse o modelo esvaziado e abstrato fálico-anal. Desconfio que Freud tenha sido capaz de oferecer um tal conceito quando escreveu seu Moisés – sobre ele falarei, porém, em outra ocasião.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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