A solidão entre o excesso e a síntese: sobre um poema inédito de Claudia Roquette Pinto
A poeta Claudia Roquette Pinto, autora de 'Alma corsária & poemas do Rio', a ser lançado em 2021 (Foto: Arquivo Pessoal)
Poesia entre corpos
Vivemos um momento de luto. Um luto coletivo, pelas vidas que a pandemia carrega diariamente e também um luto individual, em que a ideia de finitude vem ao nosso encontro, inevitavelmente, não apenas pelo isolamento, pela impossibilidade de olhar o sorriso do outro, ouvir sua risada sem o anteparo da máscara, mas pelo espanto diante dos espelhos que realidade vai riscando, embaçando, um a um. Os braços continuam longos, os abraços encurtaram; é provável que as pernas dancem menos e na pele ressequem as lembranças mais frescas – elas de fato duram menos e sem o sol sucumbem.
Penso que levará bastante tempo para que essa experiência em que o limite entre o estar no mundo e o estar em si, por imposição do mundo, de algum modo signifique em sentido pleno. Talvez aí nos percebamos mais, por enquanto, mergulhados em nossos abismos não é possível ver ou perceber parte desta época que assola e ao mesmo tempo convoca novos meios de habitar o espaço que separa um ser humano do outro com imagens, sons, lives, e muitas variações de diálogos que são elos entre a algaravia das redes sociais e o silêncio profundo, que por essas mesmas redes, acessamos em algum canto da alma, adormecido, ressonando a afirmação das nossas fragilidades, das nossas incertezas, dos afetos mais banais, ou das pungentes dores.
Refiro-me aqui à poesia que nos chega pelas redes sociais e que nos acorda os sentidos, refazendo a disponibilidade para as utopias. Nesses meses em que os dados estão suspensos, turbilhonando numa hiperbolização da contingência, as leituras que vários poetas têm feito e divulgado no Facebook, Instagram, canais do YouTube entre outros, criam pontos de estofo, amarram derivas. De repente temos diante de nós os poetas, seus timbres de voz, a expressão dos olhos, captada por uma câmera próxima que eles mesmos operam, criando, muitas vezes, “supercloses”. Diferentemente de um poema cujo corpo nos chega pela mancha tipográfica na página, são os corpos dos poetas que nos alcançam. Algumas vezes trata-se de um poema conhecido, e então corpo escrito (página) e corpo que se inscreve (tela) se amalgamam, outras, porém, a referência do papel se ausenta. É pela evocação – pelo que está além da fala na voz, pelo que resta além das palavras que a poesia nos atinge, em certas ocasiões acompanhadas por uma “trilha sonora”.
Os leitores, entre vaga sensação
de familiaridade que se estabelece
na voz do poeta e na composição
que a ampara, guiam-se pelo
andamento dos versos e nada mais
importa, a fratura da arte está feita.
Nessas situações, a poesia parte do corpo em direção a outros corpos perfura o espaço, excede o poema para alcançar o que sobrevive em nós como escassez, solidão, saudade, ausência, dor ou mesmo o amor em sua face drummondianamente clara e triste. Mesmo que a luta e o engajamento exacerbem no poema, ou que a alegria ainda seja em alguns a prova dos nove, é na falha entre o que somos e o que não sabemos nomear que a poesia se instaura, mínima ou exuberante, aceno ou pedra, corpo invisível na tela de cristal líquido. Infelizmente, em segundos se esvai, novos posts confundem a experiência do leitor irreparavelmente. Há ocasiões em que o poema alcança o “espectador/leitor” de modo tão intenso que o instante se consagra, a marca – traço – do poema permanecerá. Ali encontramos, como diz Octavio Paz, algo que já estava em nós; foi assim que “Vale” de Claudia Roquette Pinto misturou a minha experiência leitora e a escuta num espaço virtual. Por seguir reverberando, me impulsionou a este texto, mais que uma coluna para a Cult, é um depoimento de escuta e de percepção, um convite à partilha que também se esvairá no espaço virtual em alguns dias, ou não…
Alguma radiância irá se erguer
Vale, como anuncia a poeta, é um poema inédito que faz parte livro Alma Corsária & Poemas do Rio, a ser lançado em 2021. A leitura a seguir não recuperará a que a poeta fez em seu Instagram. A apresentação do poema pela poeta é delicada e forte. Acompanhada de uma linda melodia (cujo autor não é mencionado no post) a leitura se expande em muitos significados desde o primeiro verso, convidando o interlocutor – virtual – a mergulhar nas várias camadas que os versos desvelam, tanto quanto os gazéis de Hafiz, citado no primeiro verso, se desdobram em sentidos multivariados. Na tela vemos a poeta, o olhar que ora se volta para a câmera ora para o suporte onde lê “Vale”. O fundo neutro, tom de areia e a neutralidade das cores do vestuário da poeta têm um efeito muito interessante, pois que ao reduzir ao mínimo as informações visuais “em cena”, colocam em primeiro plano o próprio texto, a palavra poética performática torna-se protagonista inquestionavelmente.
Esta cena é paradoxalmente subvertida pela informalidade, pelos emojis e elogios nos comentários, são duas instâncias que se colocam lado a lado e que tornam possível uma aproximação entre a poeta e seus ouvintes/leitores, pela exiguidade do espaço e pelo ethos dos comentários, o sentido mesmo do poema não se ergue. Não que isso seja ruim, ao contrário, afinal o poema é veiculado numa rede social, atinge muitos públicos, cria uma intimidade e uma identidade virtuais, muitas vezes, entre a autora e seu público. Fica estabelecido um outro modo de fruição, dromocrático, fugaz, até que o livro seja publicado de fato. Seria interessante avaliar esse movimento em particular e já são vários os estudiosos que se debruçam sobre o tema. Aqui proponho de algum modo afrouxar a impermanência do texto das redes, sua transitoriedade incontornável, colocando alguns holofotes sobre sua “aura”, fazendo-o durar um pouco mais.
Vale
E eu me levantarei da solidão transbordante
o mundo ante meus olhos tal como ele é,
liberto desse permanente exame
que minha mente inflige, ad nauseam,
a tudo o que se ouve, sente, vê.
Do centro da solidão transbordante
alguma radiância irá se erguer,
seguir as trilhas surdas do meu sangue,
tangenciar meus ossos, nervos, crânio,
e se expandir às coisas mais além.
E quem me vir vai compreender o plano:
vagar por este vale cambiante,
sem língua nem sentido,
eqüidistando o quando do talvez,
vivendo só de insetos, na aridez,
o corpo já um traço aquém do humano.
Que doravante
apenas respirar seja o bastante.
Embora composto em estrofe única, proponho, a leitura em três movimentos, três estágios que em espiral meditam e experimentam não apenas a solidão como também a ideia da solidão; mais que sua elaboração, o desprendimento, talvez, do que nela seja dor, extravasamento. Por fim, uma espécie de “coda” nos dois últimos versos.
Movimento 1: Excesso
Os primeiros cinco versos anunciam um sujeito lírico solitário e a evocação lírica de Hafiz, no primeiro verso universaliza a experiência. Não se trata de uma voz coletiva, mas de uma voz que em sua singularidade alcança o sentimento da solidão que como outros tantos, nos humaniza e torna o poema histórico numa das acepções de historicidade proposta por Octavio Paz, a de que no poema o instante é consagrado e a condição humana se perpetua, retorna.
A tensão no verso citado vem do transbordamento. O lugar-comum é tomar a solidão como falta, ausência, entretanto, ela é uma presença que transborda do corpo do sujeito para fora, ao mesmo tempo, do mundo para dentro do sujeito, pela pele, pela história, pela cultura. A solidão é excessiva – talvez excessivamente agreste – e num jogo claro-escuro, barroco, o que transborda é o árido, portanto a solidão é preenchimento ante o exame em abismo, nauseante da realidade pelo sujeito. Penso aqui no desconcerto drummondiano: “devo seguir até o enjoo?/posso sem armas revoltar-me?”, todavia o caminho apontado segue por outras sendas, pelo vale.
Ao submeter o mundo à avaliação
constante, na tentativa de categorizá-lo
dentro dos limites do inteligível, do seu
próprio desejo ou narcisismo, o
sujeito aprisiona-se a si.
A liberdade está em deixar que “uma flor seja apenas uma flor”. Aceitar que há algo que nos escapa, que foge à nomeação a que um exame permanente obrigaria, porque é da ordem do Real. Em sua articulação logopaica, o poema contradiz a própria logopeia, apontando para o vazio significante, sunyata, ou a busca do próprio EU, “círculo sem circunferência”, como ensina Daisetsu Teitaro Suzuki em suas conferências (Zen budismo e psicanálise).
O início incoativo “e eu me levantarei” aponta para o movimento, uma mudança de estado, para a verticalização do sujeito ao mesmo tempo que sinaliza a urgência do desprendimento da incessante busca de interpretações, deste furor analítico que de algum modo, entre outras instâncias, a ciência e o trabalho intelectual impõem, ou ainda, a supremacia do simbólico, a urgência de nomear que nos faz esquecer dos nomes, do nome.
Movimento 2: Radiação
Feita um círculo raiado, a solidão se converte aos poucos em instância luzidia, expande seu raios a todas as coisas, não mais sob análise dos sentidos dominantes – visão e audição, mas em direção a certa harmonia proprioceptiva, entre o corpo do sujeito lírico tocado levemente por essa solidão radiante como um aprendizado do sujeito em sua relação com o mundo. Radiar só é possível quando se abandonam os espelhos. Um movimento que busca inquirir o mundo até o enjoo é um gesto que em seu excesso de lucidez oblitera o que no íntimo talvez conduza o sujeito a si mesmo. Numa perspectiva psicanalítica, diria que o sujeito aceita a falta e doa ao mundo o que não tem – é uma espécie de busca que se define pela não-busca e que é bem diferente da aceitação pura e simples, justamente porque a questão não esteja no ter ou ser, mas no liame entre o que se pensa ter/desejar e o que não se sabe. Em radiâncias a solidão expandida atinge outro modo de transbordamento; litoral que atravessa o sujeito lírico, enquanto este alcança mais que as coisas, a si mesmo.
Síntese
Do transbordamento se passa ao despojamento (vagar por este vale cambiante/sem língua nem sentido): não o do corpo, mas dos limites da interpretação, do exame ad nauseam apontado nos primeiros versos, uma espécie de perda de um modo de ser e de estar no mundo, uma libertação de um modo de conceber o mundo. Neste caso, perder é uma tomada de posição da síntese sobre o excesso, do menos sobre o mais, do não saber sobre o desejo; não é uma vitória, posto não ser um jogo, mas como no yin e yang outra ideia de equilíbrio é proposta. Em outras palavras, em “Vale” excesso e síntese não são antagônicos.
Desde o erguer-se da transbordante solidão ao percurso cambiante, sem língua, em solo agreste, o sujeito alcança aquilo que em sua mínima essência, traço aquém do humano, restará o ar de seus pulmões. A partir daí, o transbordamento e a radiância se diluem no silêncio do poema que finda, do post que encerra e segue, reverberando, mínimo, como deve ser a vida quando nomear é mais que impossível desnecessário, quando a solidão se converte em solitude: isso, sim, é o que vale.
Diana Junkes é poeta, crítica literária e professora da UFSCar. Escreve mensalmente a coluna “Musa militante”.