Sobre os mortos e a linguagem e mais
Tornarmo-nos nativos da literatura
Clarice Lispector definiu a ficção como “a criação de seres e acontecimentos que não existiram realmente mas de tal modo poderiam existir que se tornam vivos”. Antonio Candido escreveu que o texto ficcional “tanto chama a atenção sobre si que faz esquecer o mundo, tornando-se outro mundo”. Já o romancista argentino Juan José Saer sugeriu defini-la como “uma antropologia especulativa”. Algo em comum: sugerem que entre o existente e o inexistente, na literatura, aparecem outros mundos que podem ser explorados.Enquanto Saer preferiu deixar sua definição em aberto, Alexandre Nodari a disseca: “Se a antropologia cartografa mundos possíveis, aquilo que a literatura cartografa são mundos inexistentes”.
A leitura dos ensaios reunidos em A literatura como antropologia especulativa é complexa – e gratificante por sua originalidade. Ao reunir Claude Lévi-Strauss e Eduardo Viveiros de Castro, colocados ao lado de Clarice, James Joyce, Guimarães Rosa e tantos outros, Nodari não propõe ser um obstáculo no caminho daquele que se aventura pela teoria e crítica literária, mas abrir caminhos e voltar ouvidos e olhares a “outras falas, outras poéticas, estranhas a nossos ouvidos, obrigando-nos a ocupar um lugar de escuta estrangeiro em nossa própria língua, obrigando-nos a ouvir com outros ouvidos”.
Ao expor a afinidade estrutural entre etnografia e ficção, entre antropologia e literatura, Nodari coloca no leitor a responsabilidade de, assim como faz o etnógrafo em seu trabalho de campo, “sair de si”. (Carolina Azevedo)

Conhecer uma mulher através da linguagem
“A linguagem está em toda parte, ocupa as células mais afastadas e as faz se moverem até lugares incompreensíveis. Ela te encoraja e te adoece, desorienta seu instinto animal, te faz humana. Sentir-se intensamente humana é a emoção mais complacente. Mas também pode ser a mais tirânica.” Eva Baltasar escreveu Boulder em busca de uma mulher que, através da linguagem, se fixaria no imaginário leitor como se fosse uma rocha. Essa mulher, essa rocha, “Boulder”, é a protagonista do livro da poeta catalã – cujo romance não apenas foi finalista do International Booker Prize como movimentou em Pedro Almodóvar o desejo de transformar sua linguagem em imagem.
Trabalhando como cozinheira em um navio mercantil, a mulher-rocha se apaixona pela islandesa Samsa, com quem se muda para Reykjavik. Quando a parceira anuncia que gostaria de ter um filho o quanto antes, Boulder se vê arrastada para uma jornada alienante pela maternidade.
Baltasar constrói, em pouco mais de 100 páginas, um romance completo, que transforma a linguagem em água, rapidamente erodindo cada canto da protagonista e expondo as contradições do amor moderno. Uma narrativa sensual, carregada de desejo: “Olho para ela e ela preenche tudo. O olhar é uma corda que a enlaça e a traz para mim.” Uma jornada que passa do amor ao desinteresse: “Oito anos com a Samsa e todos os territórios capinados. Absolutamente todos. Como pode a existência esgotar a si mesma?”
Em Boulder, não há uma expressão inocente sequer. Na tradução de be rgb e Meritxell Hernando Marsal, transparece o esforço da autora em direção à criação da linguagem tão fluida quanto carregada que cria essa mulher que foge às convenções de certo e de errado, por vezes tão sufocantes na literatura contemporânea. (C.A.)

História, substantivo feminino
Existe a terra, publicado pela 7letras em 2024, é o segundo livro de poemas de Tatiana Azevedo. Trata-se de um livro sobre o passado e suas persistências. Para isso, Azevedo adota como eixo central a perspectiva das histórias femininas em lugar da história oficial marcada frequentemente pelo discurso de gênero dominante. Como ponto de partida, a autora inicia versando sobre Jaci, a entidade tupi-guarani associada à lua e amante do deus sol, Guaraci. Pode-se dizer que Jaci está para o universo poético de Existe a terra tal qual o livro de Gênesis está para a cosmogonia cristã: em lugar de “era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”, vemos: “a lua cheia ilumina as águas largas // animais cantam trovões e correnteza // o rio corta o continente ao meio // e uma vez perto da foz // se ramifica em veias.”
O que se segue a partir daí, nos 24 poemas que compõem Existe a terra, é um fazer poético múltiplo, mas guiado por uma linha cronológica evidente, que percorre um punhado de grandes personalidades femininas históricas e míticas, desde Iara, pertencente à mitologia indígena, até Dandara, Chica da Silva, Maria Firmina dos Reis, Dilma Rousseff, Clarice Lispector, entre outras. Quase sempre com um poema em tom encomiástico dedicado a cada figura. Alguns carregados de tom mais enciclopédico que outros. O que permanece é o legado dessas mulheres que ousaram não se calar. (Victor Kutz)

Sobre os mortos e a linguagem
A relação entre escrita e morte é um dos temas recorrentes na teoria literária. Não são poucos os autores que introduzem a figura da morte ao analisar as relações da escrita com os contextos em que ela se produz. Desde Hélène Cixous, que escreve que “cada um de nós, de maneira individual e livre, deve fazer o trabalho de repensar o que é a sua morte e a minha, ambas inseparáveis. A escrita se origina nessa relação”, até Roland Barthes com a teoria da “morte do autor”. A premiada escritora mexicana Cristina Rivera Garza busca elaborar essa reflexão nos oito ensaios que compõem seu mais recente livro, lançado no Brasil pela Martins Fontes, Os mortos indóceis: Necroescritas e desapropriação.
Partindo da constatação que vivemos tempos ditados pelas máquinas de guerra e pelo neoliberalismo predatório, ela se pergunta: “O que significa escrever hoje nesse contexto?” e “Quais são os diálogos estéticos e éticos que nos impõe o ato de escrever, literalmente, cercados de mortos?”. É por isso, segundo a autora, que ganham cada vez mais relevância certos processos de escrita eminentemente dialógicos e coletivos, nos quais o império da autoria, como produtora de sentido, se desloca para a função do leitor, que, em vez de apropriar-se do material do mundo que é o outro, se desapropria. (V.K.)

O quadrado e a espiral
Obra-prima do escritor pernambucano Osman Lins, publicada em nova edição pela Pinard, Avalovara conduz o leitor através do rigor geométrico. O que dá sentido e direção à narrativa é uma espiral; essa forma recursiva que faz surgir suas voltas do ponto mais mínimo do nada em direção ao infinito exterior. Sobre a espiral, Lins traçou o Quadrado Sator, um quadro mágico que abarca o anagrama latino SATOR, AREPO, TENET, OPERA, ROTAS (“O criador sustenta cuidadosamente o mundo em sua órbita”). Nessa estrutura, cada letra do anagrama ocupa o lugar de um dos temas abordados pelo livro, e que entrarão em cena conforme a espiral os intersecciona. O personagem principal do romance é Abel – uma espécie de Fausto –, um homem culto que se relaciona com três mulheres: Anneliese Ross, que tem o corpo feito de cidades; Cecília, que tem o corpo feito de homens; e a terceira e mais enigmática, nomeada apenas por um símbolo, que tem o corpo feito de palavras. Sendo esta a mulher que, de certa forma, condensa as outras; é com ela que o gozo e o ato sexual culminam no ponto de maior fruição da narrativa – quando atingimos o ponto mais próximo ao centro imaginário da espiral.
Ao longo dos diferentes capítulos de Avalovara, Lins busca estabelecer diálogos com diferentes obras da literatura clássica. A intertextualidade remonta a narrativas imemoriais, como o Mahabharata e outros escritos sustentados na crença de que tudo pode ser abarcado pela estrutura narrativa. Como se cada elemento do mundo pudesse corresponder a um ponto na infinita espiral de Avalovara.
A direção de leitura não é obrigatória, mas apenas sugerida, deixando o leitor livre para seguir o caminho que desejar em direção ao centro, ao seu exterior ou transversalmente, percorrendo temas específicos. (V.K.)

Para salvar os pré-socráticos
Anaximandro, Heráclito, Xenófanes, Parmênides, Empédocles. Em que medida os chamados pré-socráticos contribuíram para o nascimento da filosofia? Sem a pretensão de definir, mais uma vez, “filosofia”, a acadêmica italiana Maria Michela Sassi investiga as origens – sempre no plural – do pensamento filosófico na Grécia arcaica, contrapondo a noção que nega um caráter filosófico à atividade intelectual anterior a Sócrates.
Para “salvar a filosofia pré-socrática”, a autora empreende uma investigação pelos fragmentos arquivísticos que compõem a memória cultural grega. Tecendo relações entre cidade, religião, política e linguagem, Sassi rememora uma época na qual as racionalidades eram múltiplas e relata suas descobertas não como hierofante, mas como filósofa: questionamentos e suposições demarcam o território de incertezas em que se inscreve a pesquisa do pensamento pré-socrático.
A autora dedica atenção especial às linguagens de seus filósofos, cujos pensamentos se fixaram ora em prosa, ora em poesia, entre a escrita e a oralidade. Se a filosofia pré-socrática rompeu com a poesia de Homero ao inventar a prosa – crédito que a autora reserva a Anaximandro – também ressignificou-a quando Parmênides e Heráclito jogaram com os ritmos orais para construir seu próprio modo de significação.
Como pretendiam os textos filosóficos que aborda ao longo de sua expedição pela Grécia dos séculos 6 e 5 a.C., Os inícios da filosofia na Grécia se revela instigante enquanto narrativa ensaística a ponto de estender o convite da leitura para além das fronteiras da academia, abrindo espaço para outros leitores, para novas leituras. (C.A.)






