Sobre o golpe de Estado do domingo passado
Se no domingo você ficou pasmo quando descobriu, depois do almoço, que tinha uma multidão de bolsonaristas invadindo e depredando os edifícios que são sede dos Três Poderes da República com a facilidade e a tranquilidade de um passeio no parque, não está sozinho.
Aparentemente, muita gente importante do país teve a mesma reação de espanto e incredulidade que você, a começar pelo governador do Distrito Federal e o seu secretário de Segurança Pública, sob cujas responsabilidades estava evitar que um fato tão grave pudesse acontecer. Ou o Ministro da Justiça de Lula, que supostamente estava de vigia e tinha recursos para antever o acontecido, e deveria ter um plano de contingência para o caso de as duas primeiras autoridades estarem alinhados com os agressores da República. A verdade é que ficamos todos espantados, estupefatos e ultrajados. Ponto.
O seu espanto e o meu têm razão de ser. Descobrimos no último domingo (8) que se você juntar 3 ou 4 mil pessoas num domingo, e as rebuçar com camisas da seleção e bandeiras do Brasil, passará pela polícia e pela segurança do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal como uma faca quente atravessando manteiga. Suave. O verde e amarelo nas vestimentas ou têm o mesmo condão da capa de invisibilidade de Harry Potter ou desperta sentimentos irresistíveis de empatia e amor das tropas de choque da PM, o que é absolutamente inusitado para qualquer pessoa que tenha participado de manifestações públicas neste país e sentido literalmente o peso do braço da autoridade policial.
De fato, parecia tudo irreal, mas num primeiro momento aquela turba furiosa e embandeirada invadiu o coração do Estado brasileiro sem encontrar resistência significativa, arrancando portas, arrebentando móveis, roubando objetos, destruindo obras de artes, profanando com urina ou fezes os espaços litúrgicos da Republica, coletando lembrancinhas e, sobretudo, filmando-se e postando de forma febril como se fossem adolescentes numa excursão escolar.
Em cada mão, um celular ligado e conectado, em selfies e lives de patriotas orgulhosos da proeza que estavam realizando, enquanto maculavam e depredavam acintosamente os espaços sagrados do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Tudo para dizer que, afinal, nada nesta República pode estar acima da vontade dos bolsonaristas: nem a Constituição, nem a urna eleitoral e o que ela registra, nem as autoridades constituídas, tampouco as instituições republicanas.
Espanto e indignação à parte, sugiro que você, meu amigo, leia o evento deste domingo em dois registros. Considere em primeiro lugar a perspectiva do militante radicalizado que foi à Praça dos Três Poderes com a intenção de dar início a um golpe de Estado. Sim, pois no imaginário dos bolsonaristas aquilo foi definitivamente uma tentativa de golpe de Estado, mesmo que pobremente e irracionalmente projetado. Depois, considere o evento da nossa perspectiva, a dos brasileiros democratas que ainda se mantêm lúcidos e acordados, apesar da loucura que se apossou do país.
Por que aquelas pessoas chegarem a esse comportamento extremo e desastroso? O desastre é claro pois foi evidentemente o que se pode chamar de um tiro no pé. Não seria isso um evento cujo único resultado real foi a reprovação geral da sociedade, a unificação dos discursos das instituições republicanas, o repúdio em uníssono da comunidade internacional e as medidas de retaliação política e punição legal que se seguirão contra a direita radicalizada, que se provou, fora de qualquer dúvida razoável, incompatível com a democracia liberal?
Bem, o fizeram primeiramente, é claro, porque as consequências pretendidas eram outras e elas só se explicam em função das narrativas que predominam nos círculos mais restritos da radicalização da extrema direita bolsonarista.
Na área de Comunicação Política, nós dizemos que quem controla as narrativas, as histórias que se contam e em que se acreditam, controla a massa. A narrativa por trás dos atos de domingo dizia que se o povo ou os patriotas (como eles se denominam) ocupassem o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, o jogo político, que foi da eleição à posse de Lula, seria zerado, haveria decretação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou algo semelhante, as Forças Armadas assumiriam o controle do país, Lula seria deposto e preso e Bolsonaro reassumiria a Presidência da República. Com pequenas variações, essa é a história que eles contam e em que eles acreditam, por incrível que pareça.
Dada a crença, passou-se à ação, na qual contavam, naturalmente, com a complacência da Polícia Militar do DF, que foi dada em abundância, e, então, com a colaboração das Forças Armadas, que não chegou. Há vídeos de golpistas presos aos prantos enquanto lamentam a suprema traição: “o Exército nos entregou à polícia”. No seu imaginário, as Forças Armadas precisavam apenas ser forçadas a agir pelo povo, pelos patriotas. Resumindo tudo é isso: tudo aconteceu no domingo simplesmente para forçar a mão das Forças Armadas.
Aquela multidão certamente não podia acreditar que, sozinha, poderia cercar, ocupar e manter sob seu controle os prédios do Congresso e do STF e o Palácio do Planalto. Esperavam que uma força maior, o objeto-mor de sua crença, o Exército, viesse em seu socorro. Tanto é verdade que quando, enfim, foram repelidos e expulsos dos edifícios, depois de ver negada a GLO pela qual imploravam, não pareciam ter um plano B, uma rota de fuga, uma alternativa.
Acumularam-se num canto, como pintos de galinheiro, sem saber o que fazer a não se encostar uns nos outros. Afinal, foram convocados (e subvencionados) para uma sedição, para a tomada e substituição do Poder pela força, e para isso apenas. Fracassado o intento, não tinham para onde ir.
O plano em si, da perspectiva dos que ainda estão lúcidos, é um roteiro de insanidades. Era antes de tudo uma espécie de trumpismo do dia seguinte, uma tentativa de reedição da invasão do prédio do Congresso Americano, o Capitólio. O 6 de janeiro deles é o nosso 8 de janeiro, o nosso Dia da Infâmia. Só que na invasão do Capitólio havia algum efeito pretendido, impedir a diplomação do presidente eleito, enquanto o ato desse domingo chega atrasado para os efeitos desejados, pois já tinha havido diplomação e posse do presidente. A não ser, naturalmente, que se acredite ser parte de uma missão desesperada para evitar que o comunismo tome posse do Brasil e conta com o poder redentor das Forças Armadas para impedir que isso aconteça.
A nossa invasão do Capitólio, de um lado, é mais ambiciosa que a dos trumpistas, pois ocupa logo todos os Três Poderes. Por outro lado, é uma farsa e uma performance, pois acontece num domingo, tarde demais para os efeitos pretendidos, a tempo apenas de solicitar um golpe de Estado por mão militar.
Os efeitos não pretendidos, contudo, podem representar a pá de cal do golpismo bolsonarista. Por várias razões.
Primeiro, porque o movimento (a Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias) comprovou definitivamente na sua infame insurreição do domingo que, de fato, deseja um golpe de Estado, tanto que tentou fazer um, apesar de ter falhado de forma ridícula. Quem poderia alegar dúvida sobre isso, não pode mais fazê-lo.
Segundo, porque acaba a resistência que se vinha construindo em parte da opinião pública sobre a mão pesada e os supostos “exageros do ministro Alexandre de Moraes”. Toda mão pesada será ainda considerada pouca para quem, nesse domingo, foi chamado explicitamente de “terrorista” e deplorado por governos de todos os países democráticos do mundo e pela imprensa nacional e internacional.
Terceiro, porque, de fato, receberam o rótulo do crime mais assustador e abominável, o terror, o terrorismo. Tecnicamente, são “sediciosos”, mas este é um rótulo feio e erudito demais. O jornalismo brasileiro simplesmente os resumiu a “terroristas”. No domingo, até a invasão da Câmara dos Deputados, a Globo News os chamava de “bolsonaristas radicais”; quando consumaram a invasão do Palácio do Planalto, já eram chamados de “golpistas”; quando invadiram o STF já haviam sido rotulados de “terroristas”. E daí não passam porque não há nada pior do que ser posto nesta categoria; mas daí também não se retroage mais a termos neutros ou positivos como “manifestantes”, ou a designações políticas discutíveis como “golpistas” ou “fascistas”. O rótulo de terrorista não desbota nem se apaga mais.
Quarto, esta foi a sedição mais autofilmada e autotransmitida da história. Foi o complô mais vaidoso, exibicionista e confiante na própria impunidade de que já se ouviu falar. Enquanto o ato se processava, em vez de rostos mascarados, selfies e lives; em vez do segredo da conspiração, a autoinconfidência do upload ao vivo do golpe de Estado; tudo isso deixando atrás de si milhares de vídeos e fotos online, além de rastros digitais de geolocalização. O golpe de Estado chegou ao TikTok. Rastros digitais não desaparecem, são provas. Minerando e analisando os big data direitinho dá para prender todo mundo.
Foi uma tragédia, desses de tirar o sono e a paz? Acho que não. A democracia não esteve realmente em risco em momento algum, a não ser na fantasia dos bolsonaristas. O que estava feito não podia ser desfeito, e todo mundo vai cair legitimamente matando em cima dos golpistas, seus financiadores e seus ideólogos. É o mínimo que se espera.
Mas, simbolicamente, não foi pouco. Foi provavelmente o maior atrevimento e a maior violação republicana da nossa história depois das duas ditaduras do século 20. Uma tragédia certamente poderia ter acontecido se houvesse autoridades trabalhando numa daquelas casas invadidas e depredadas, e só Deus sabe como não houve mortos com esse tipo de gente envolvida, que está armada, é feroz e fanatizada. Por sorte, a República reagiu e pode, agora, contra-atacar.
Há de se louvar aqui a reação rápida e consistente do jornalismo e das autoridades da República, mas sobretudo a incompetência dos sediciosos bolsonaristas, incapazes de negociar com a realidade até mesmo quando apostam todas as fichas em um golpe de Estado que só poderia dar certo no mundo imaginário em que se encontram perdidos.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)