Só a arte salva

Só a arte salva


Fernanda Paola

Ele costuma usar a minicesta de basquete que fica encaixada na parte de cima da porta do escritório para fazer arremessos de 3 pontos. A sala é pequena para um monte de coisas que guarda. Centenas de livros de arte e literatura amontoam-se nas prateleiras. Catálogos, flyers e outras muitas lembranças de exposições estão espalhadas em cima da mesa de vidro, coladas nas paredes, e onde mais tiver espaço. O escritório de Agnaldo Farias, que fica em Pinheiros, São Paulo, no primeiro andar de um prédio baixo e sem elevador, é um oásis cultural.

Aos 55 anos, Agnaldo é um dos curadores e críticos de arte mais reconhecidos do Brasil. Mas é como professor que prefere se apresentar. Apesar de acreditar que “nossas universidades estão assentadas em certezas” e que “estamos formando burros”, faz quase 30 anos que ele dá aulas e é, como enfatiza, um professor de primeiro ano vocacional. Hoje, da FAU/USP.

Agnaldo já pensou em ser escritor, mas desistiu ao ler Dostoiévski pela primeira vez. É também apaixonado por música, o que lhe rendeu um emprego aos 15 anos como jornalista na revista Bondinho. Sua primeira crítica foi sobre o disco Live Evil, de Miles Davis. “Eles levavam uma máxima do Frank Zappa, a de que jornalista de rock não sabe escrever, entrevista gente que não sabe falar e escreve para gente que não sabe ler. E eu preenchia todos os requisitos”, conta ele, que também foi roadie dos Novos Baianos e de Hermeto Pascoal, entre outros.

À arquitetura chegou depois, por causa de “Fábula de um Arquiteto”, poema que João Cabral de Melo Neto escreveu em 1966. Nunca exerceu a profissão na prática. Logo já estava dando aula e, sem querer, sendo procurado para escrever sobre artes plásticas. Entre os 13 irmãos vindos de Itajubá, Minas Gerais, Agnaldo Farias é o único a trabalhar com artes.

Como curador, tem carreira extensa. Entre as experiên-?cias, estão o MAC e o MAM/RJ (logo após finalizar o doutorado em arquitetura, na FAU/USP). Foi assessor de artes plásticas de Ricardo Ohtake – com quem trabalha hoje no Instituto Tomie Ohtake –, na época em que o mesmo era secretário de Estado da Cultura da São Paulo. Nessa época abriu o Paço das Artes com uma exposição de Nelson Leirner, que foi, em sua opinião, uma das curadorias mais importantes da carreira: “Eu me ajudei ajudando, porque surpreendentemente ele era desconhecido. Tinha um trabalho maravilhoso, mas estava sem galeria”.

Hoje, ao lado de Moacir dos Anjos, assina a curadoria da 29° Bienal de São Paulo, desafio enorme principalmente com a crise pela qual a instituição passa. O tema desta vez será a relação entre arte e política, e para isso os curadores chamaram 148 artistas que foram comissionados para fazer trabalhos novos e exclusivos. Agnaldo falou à CULT sobre Bienal, arte contemporânea, música, literatura e educação.

CULT – Lembra-se de quando teve o primeiro contato com as artes plásticas?
Agnaldo Farias –
Eu cheguei às artes plásticas por último, minha relação era com música e com literatura. E depois, na faculdade, tive uma relação muito forte com cinema. Eu fui roadie, trabalhei em show de rock. Fui roadie dos Novos Baianos, fiz show do Hermeto Pascoal, até em um show dos Mutantes trabalhei. Havia uma revista alternativa que era o máximo, a Bondinho, feita por egressos da Veja, como Sérgio de Sousa e Narciso Kalili, que eram brilhantes. O secretário de redação era o Roberto Freire, psicanalista importante e pai de um amigo meu, o Tuco, que é músico. Ele me chamou para escrever na Bondinho, e imediatamente fui para a redação da revista, que eu lia parcialmente, porque era muito complexa para os meus 15 anos. E então Roberto Freire me encomendou uma matéria sobre o disco Live Evil, de Miles Davis. Eles levavam uma máxima do Frank Zappa, a de que jornalista de rock não sabe escrever, entrevista gente que não sabe falar e escreve para gente que não sabe ler. E eu preenchia todos os requisitos.

CULT – E como aconteceu o encontro com a arquitetura?
Agnaldo –
Eu tinha um amigo que falava que, se eu gostava tanto de poesia, deveria fazer arquitetura. Aí fui para a arquitetura, mas não tinha a menor ideia do que ela era. Não estava no meu repertório de garoto classe média da Vila Mariana. Fazia-se engenharia, medicina ou direito. Eu entrei em arquitetura por causa de “Fábulas de um Arquiteto”, de João Cabral de Melo Neto. Quando li, pensei que precisava fazer uma profissão que tivesse uma poesia como essa. Foi ótimo porque entrei no movimento estudantil e ganhei know-how de fazer festas.

CULT – Em 1981, você fez sua primeira curadoria, mas de cinema, na 16ª Bienal de São Paulo. Como isso aconteceu?
Agnaldo –
Estava formado, entrei no mestrado em história, na Unicamp, e o Walter Zanini [historiador e curador de arte] me procurou para cuidar urgentemente da parte de cinema da Bienal. Isso com 15 dias de antecedência da abertura. Eu nem sabia o que era ser curador. Minha experiência era comprar ingresso, entrar no cinema e assistir aos filmes. Tudo bem que fazia isso bastante. Então, chamei um amigo meu com quem depois abri a editora Iluminuras, o Samuel Leon. A programação foi tão boa que na Bienal seguinte o Zanini me chamou em março.

CULT – Nessa época você já acompanhava a produção de artes plásticas?
Agnaldo –
Ainda não. Estava enfiado em São Carlos montando um curso de arquitetura. No curso de arquitetura comecei a dar um curso de artes plásticas, quando um artista conhecido meu encasquetou que eu tinha de escrever sobre ele. Eu escrevi, foi interessante porque descobri que a pessoa que faz não necessariamente sabe falar sobre aquilo que faz. Fiz o texto e tive quase a mesma aflição de quando escrevi sobre Miles Davis. Quem fez o design do texto foi o Ricardo Ohtake [idealizador e coordenador do Instituto Tomie Ohtake], de quem eu virei muito amigo. Outro amigo artista leu e me pediu para escrever sobre ele para a revista judaica Shalom, então a Ester Grinspum [artista plástica] leu e pediu para eu escrever sobre ela, para a revista Galeria. Comecei a escrever sobre artes plásticas para a revista Guia das Artes, mas sem conhecer produções inteiras. Isso em 1987, já tardiamente, com pouco mais de 30 anos. Fui me inteirando do assunto, escrevendo sobre exposições que nunca tinha visto. Os textos só não eram ruins porque eu sempre tive preocupação com a literatura, achava que podia escrever bobagem, mas deveria ser bem escrita. Porque nossa crítica de arte, especialmente nos anos 1980, era muito ruim. Tem uma geração que vem da academia, como eu, que pode ter uma crítica mais densa, mas tem o problema de não saber articular, de fluência no texto.

CULT – Hoje, o espaço dedicado às artes nos jornais diários é cada vez mais reduzido. As revistas de cultura que têm circulação nacional estão desaparecendo. Nesse contexto sombrio, como você avalia o desempenho da crítica?
Agnaldo –
Não existe crítica de arte hoje no Brasil – entendendo a crítica como sendo o exercício completamente desassistido de qualquer interesse que não seja o estético. O jornal não está mais interessado nesse tipo de coisa, porque pensa muito mal do seu leitor. A rigor, o jornal no geral é um modo de ganhar dinheiro vendendo publicidade. Então o anúncio interessa mais, a gente sabe disso. O cara está vendendo espaço, mas tem de ter jornal também. Aí vêm as matérias, que são um álibi. Por causa dessa situação, o jornal acabou afastando o crítico. O que aconteceu é que parte da crítica migrou para a academia, o que tem vantagens e desvantagens. O problema do discurso da academia é que é mal escrito e muito cifrado. A outra parte que sai do jornal vai escrever para catálogo. É uma crítica que tem adesão ao trabalho, tem comprometimento. No Brasil transformou-se a crítica em opinião. Quanto mais ofensiva, tanto melhor. Está vendendo o escândalo, a manchete, a polêmica esvaziada. Na arte o mais triste é o Ferreira Gullar, que é um homem admirável, e a gente vê que nitidamente ele não está aparelhado nem interessado em se aparelhar para discutir a produção contemporânea. Então ele fica cobrando dela o que ela não se propõe a dar. Deve-se tomar cuidado com o que acontece hoje. Vai-se achar que repentinamente os artistas são todos idiotas? É claro que nem tudo que se faz hoje vai ficar. Mas há muita inteligência.

CULT – Em 1990, você foi convidado para ser diretor de exposições temporárias do MAC, que deu início à sua carreira de curador de artes.
Agnaldo –
De crítico obscuro virei curador. A relação com a arquitetura me ajudou, tinha ideia de espaço, de como se instala uma obra. E fui treinando. Fiquei dois anos lá, saí a convite do Ricardo Ohtake, que na época era secretário de Estado da Cultura, para ser assessor de artes plásticas dele. O Nelson Brissac era assessor de audiovisual, e fizemos o Arte/Cidade. Fiz a retrospectiva do Nelson Leirner, o que foi muito importante pra mim. Eu abri o Paço das Artes, que foi talvez o maior e mais importante trabalho que fiz de curadoria. E de um artista fundamental. Eu me ajudei ajudando, porque surpreendentemente Nelson Leirner era desconhecido. Tinha um trabalho maravilhoso, mas estava sem galeria. E essa exposição ajudou a dar visibilidade a ele. Entre outras coisas, o trabalho de um curador tem a ver com o trabalho de um professor – na medida em que o professor é um novidadeiro, um sujeito que sabe de algumas coisas muito interessantes e que tenta passar isso para o maior número de pessoas possível. O que você faz quando escreve ou quando elege certas pessoas para apresentar é dar visibilidade a uma obra, a uma produção. Tem também outra baliza que é fundamental dentro da minha prática curatorial: não se expõe coisa ruim. Tem de primar pela qualidade.

CULT – Como poderia classificar a arte contemporânea?
Agnaldo –
A produção em artes plásticas é muito fecunda. A meu ver, as artes plásticas viraram um entrecruzamento de fronteiras, uma intersecção e uma zona de liberdade que não se vê em talvez nenhuma outra linguagem. Acho, por exemplo, sintomático que um artista como Nuno Ramos tenha vencido o Portugal Telecom e que Apichatpong Weerasethakul [diretor de cinema tailandês] tenha vencido o Festival de Cannes. Porque ambos se definem como artistas plásticos. As artes plásticas viraram lugar de livre experimentação. Então há trabalhos sonoros, olfativos, aromáticos, trabalhos para ser vistos, para ser escutados. Se antes você entrava numa exposição com maior ou menor grau de dificuldade de compreensão, você demorava um dia, na década de 1960, no caso da Bienal de São Paulo. Hoje, menos de três, quatro dias não leva. Pelo número de filmes, de trabalhos conceituais, trabalhos que não se dão a ver com facilidade, muito codificados.

CULT – Inclusive para você?
Agnaldo –
Inclusive para mim. Um dos meus anjos da guarda, o Charles Watson, é artista e professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Ele organiza grupos, faz turismo específico para visitar museus e ateliês pelo exterior. Ele leva alunos e colegas, como eu. São os meus melhores momentos do ano. Sozinho, sou vagabundo. Com 30 pessoas do lado tendo de discutir o trabalho que estou vendo, trato de ficar mais esperto. É frequente eu entrar num lugar sozinho e ter uma atitude blasé.

CULT – Nos dias de hoje, a presença do curador tornou-se obrigatória e muitos artistas discutem sua eficiência. Afinal, a composição de um curador mal preparado prejudica o trabalho?
Agnaldo –
Um curador é igual a uma boa reunião de pauta. Você vai publicar tudo? Não. Mas você assegura o prestígio da revista montando uma pauta criteriosa. Isso é uma curadoria impressa. Tem a ver com dar aula. Não dou texto vagabundo para meus alunos. Eu posso me equivocar, e posso ser um professor mal informado. Isso acontece. Tem picareta em qualquer área. Mas há necessidade de pessoas que deem critérios. Isso é democrático. Em qualquer que seja o ramo, para montar desde um menu até uma boa aula. É coisa de especialista. O curador precisa ter conhecimento sobre a obra e sobre recortes que pode dar a essa obra, que têm de ser suscitados por ela. O mau curador é aquele que pega o ruim de um artista bom, mas que vá ao encontro de uma tese dele. E também existe a falta de critério. Não se pode fazer uma retrospectiva e colocar tudo. Tem artista de que eu gostava mais quando não conhecia tudo. É importante saber, não mostrar. Você pode construir articulações estimulantes, mas tem as muito pobres, gente ruim se apropriando de trabalhos bons, colocando-se à frente da fonte, que são os artistas. O curador é um leitor que está próximo da produção. Você desprezaria um comentário do Antonio Candido sobre seu texto?

CULT – Você foi convidado, junto com Moacir dos Anjos, para fazer a curadoria da 29ª Bienal de São Paulo em um momento em que a instituição enfrenta uma crise complicada. Ficou inseguro em algum momento?
Agnaldo –
Claro que sim. Não é uma coisa simples. O desafio era tão grande que num primeiro momento não quis fazer. Na Bienal de 2008, eu fui convidado a enviar uma proposta e não quis. Não acreditava na presidência naquela altura e achava que entrar seria uma fria. Convidaram-me para fazer este ano e aceitei porque era com o Moacir dos Anjos, a única pessoa com quem eu aceitaria fazer.

A Bienal tem uma dubiedade que me interessa, que é uma investigação digna e importante. Como se lida na esfera do espetáculo passando alguma coisa que tenha qualidade? Porque há quem diga que são incompatíveis. O trabalho bombástico, que tenha essa eloquência que a Bienal tem, é incompatível com um trabalho bem-feito, em que existe decantação. E eu não, eu sou do rock e do samba. Estou com Luiz Gonzaga. Quando Gilberto Gil foi falar com ele, acho que movido por preocupações adornianas, levou na cara o seguinte: “Escuta, o que eu faço é para tocar no rádio”.

A Bienal é o único lugar onde existe uma difusão de obras de qualidade do ponto de vista nacional e internacional. Não tem nada com essa magnitude no Brasil, um país que criou leis de incentivo, disparou a criar museus e centros culturais, mas continua uma rota alternativa. Só nos chegam, no geral, exposições de artistas mortos e consagrados e frequentemente fundo de estúdio. Produções menores de artistas maiores.

Nossos museus são eminentemente provincianos. Eles estão ancorados em exposições temporárias, porque seguem a lógica da mídia. Não é a lógica da educação, da formação. Se for museu, tem acervo e coleção. As nossas exposições são ocultas, porque não dá mídia. O Brasil não coleciona arte internacional, nem sequer nacional. Procure por Volpi, Di Cavalcanti, você não acha. Os museus ocultam porque, para ter dinheiro e se manter, precisam de exposições temporárias. Então, a Bienal preenche essa lacuna ainda. Não só no âmbito da difusão, mas também no da produção. Porque, quando você convida o artista, você o comissiona. Nesse momento você é mais do que um difusor, é um centro parceiro na produção. Por exemplo, nós temos um trabalho inédito do Cildo Meirelles. É um trabalho que estava como sonho. Você pode sonhar em pequena escala, mas pode sonhar em grande escala. Agora, se não tem custo para fazer nem espaço para expor, como fica? Uma exposição é essencial para esse processo. É onde o trabalho do artista se realiza.



CULT – Essa Bienal busca traçar uma relação entre arte e política. Como foi realizada essa ideia?
Agnaldo –
Estamos muito mal. O Brasil é, em 2010, uma nação exportadora de minério. E agora estamos muito felizes com o pré-sal. Em vez de apostar na inteligência, estamos apostando todas as fichas no extrativismo. Não investimos na inteligência porque não investimos em arte. A arte é o patinho feio das ciências humanas. E as ciências humanas, o patinho feio das ciências. Acho que, se tem uma coisa que salva, é a arte. Deus, eu não estou certo… [risos].

Pensei que precisava contribuir com o processo de expansão da arte. Colocá-la no centro. O professor de arte não pode ser tratado como um marginal. A rigor, o que ele está trazendo é fundamental para todos. Nossas universidades são assentadas em certezas, é uma loucura. Nós estamos formando burros! O burro é um ignorante prepotente. Ignorante todos nós somos, e eu tenho a maior simpatia pelos ignorantes. Primeiro, porque eu sou, e não antipatizo comigo. Sou um professor de primeiro ano vocacional. Aprendi isso com minha amada professora Marilena Chaui, porque eu sentia que ela respeitava a minha ignorância. A mulher despejava uma biblioteca inteira em cima de mim, e eu não me sentia oprimido, me sentia feliz porque tinha uma biblioteca para ler. Só que o burro transforma em mérito sua ignorância. Acho engraçado que as pessoas frequentemente criticam os críticos, que são por certo criticáveis nos seus textos impermeáveis, na opacidade de sua conversa, no quão são cifrados. Mas tem coisa mais cifrada do que a conversa dos economistas? E eles estão nas rádios, isso eu acho sensacional.

CULT – Conte um pouco como se deu a divisão do espaço da Bienal.
Agnaldo –
Essa Bienal não podia ser uma Bienal para ser vista, porque política é eminentemente uma ação, um encontro. Vamos criar, então, seis espaços dentro da Bienal, onde haverá todos os tipos de atividade. Os espaços chamam-se terreiros – depois de muita discussão em torno do nome. O terreiro do “Dito, Não Dito, Interdito” fica do lado de fora da Bienal, como uma tribuna para a palavra, qualquer que seja ela, do poeta, a cantada, e de quem quiser falar. É do Kboco e do Roberto Loeb. O espaço “O Outro e Eu Mesmo” Carlos Teixeira desenhou e é o terreiro flexível, do teatro, da dança, da performance, e também de pocket shows. Tem o terreiro “Longe Daqui, Aqui Mesmo”, espaço das ideias e utopias; o terreiro “Eu Sou a Rua”, lugar de palestras e debates; o terreiro “A Pele do Invisível”, que é só de projeções de filmes. E o terreiro da “Lembrança e do Esquecimento”, que é a memória social, coletiva, os monumentos, o que deve ser lembrado, o que foi esquecido.

O que importa é aparafusar todos os pontos e não negligenciar nada. Tudo tem de estar lá por um bom motivo. O espaço é completamente fragmentado, estilhaçado, tem a ver com uma cidade barroca, é cheio de vielas, becos, totalmente heterogêneo.

CULT – Entre as atrações, estão pichadores do coletivo Pixação SP, que, há dois anos, foram responsáveis pela invasão na Bienal e alguns, inclusive, presos. Por que incluir os pichadores na 29ª edição do evento?
Agnaldo –
Eles nos procuraram dizendo o seguinte: “A Bienal vai ser sobre arte e política e nosso trabalho é político, queremos discutir com vocês”. Nós também achamos o trabalho deles político, se é artístico não sei. E não estou preocupado em fazer esse julgamento. A proposta foi apresentarmos o trabalho deles como documento. Não existe picho consentido. Eles vão apresentar slideshows e fotos. Eles fazem um trabalho caligráfico, e a caligrafia remonta à discussão do dado mais individual. Alguns deles são brilhantes. De tanto fazer, fazem bem. Como The Clash, que, de tanto tocar, fez tão bem que não era mais punk. Alguns ali são muito respeitados, e eles trocam tags entre si, em folha A4. Vamos encher uma parede com esses tags e cometer a profanação de colocar uma Mira Schendel ao lado, que são aquelas nuvens de palavras. Se eles conhecem Mira Schendel não interessa, mas importa colocar os caras juntos e mostrar certas associações, e não queremos dizer nada com isso.

O espaço da Bienal é de aproximações, museu é outro papo. O nosso compromisso é com as fontes e com quem é efetivamente radical dentro desse processo. Por exemplo, não traria nunca Romero Britto, porque não é artista, é outra coisa. E aí existe uma divisão, você não pode convidar para a mesma festa. Um mau artista não melhora com o contato com o bom artista. E o bom artista não ganha com a presença de um mau artista. E você engana o público. Estamos tentando fazer o que o mercado não faz, que é mostrar o que está fora do circuito.

CULT – Acha que pode acontecer novamente de os pichadores interferirem nos trabalhos de outros artistas?
Agnaldo –
Acho que sim e dá medo. Normal. Eles podem pichar o trabalho de alguém, mas a culpa não é nossa. Nossa cidade é uma sociedade terrível, violenta, mesquinha. Quer dizer, eu não quero ter meu carro riscado. Tenho um Astra duas portas, o que deu para comprar. Mas ele pode ser riscado. Esses caras que andam com esses carrões pretos, reluzentes, acham que o custo disso é zero. Eles podem ficar furiosos, mas têm de entender que faz parte do jogo. Esse carro é uma agressão, é ostensivo. Você quer ter uma casa branca com um muro reluzente e não quer que seja pichado? Diria que o custo é muito baixo. Se você for assaltado, ainda está dentro desse jogo e, se você for assassinado, também está dentro desse jogo. A gente está produzindo isso. Quer o quê?

Poderíamos fazer uma exposição sobre pintura, mas a Bienal não precisa fazer isso. Tem de ir ao limite. Se ela não der conta, fecha as portas. A arte é alguma coisa que você produz e não tem nenhum desejo dela preteritamente. Você não acorda querendo ouvir uma música que nunca ouviu. A arte se faz necessária.

29ª Bienal de São Paulo
De 25/9 a 12/12, Parque do Ibirapuera, portão 3,
Pavilhão Ciccillo Matarazzo, entrada franca

(14) Comentários

  1. um ótimo exemplo de um entrevista útil!
    Como faz falta a arte com sua reflexão em nosso dia a dia… Fico feliz de ser brasileiro e dormir sabendo que há pessoas que se preocupam não somente consigo, com seus bolsos, mas com o bem-estar social juntamente com a vontade de ajudar a espécie humana a evoluir!

    Obrigado Revista Cult e obrigado Agnaldo Farias.

  2. Sempre admirei o Aguinaldo porque ele tem um repertório vasto e boas posições.Não conhecia muitos aspectos importantes sobre ele e fiquei conhecendo agora,lendo a entrevista, principalmente em relação ao pixo.Considero de muito valor suas idéias.
    p.s.as fotos são lindas

  3. Parabéns Cult pela bela entrevista! Parabéns Agnaldo pela bela entrevista!Um abraço de uma antiga aluna e admiradora de seu trabalho,
    Erika B Kwasniewski

  4. Tive a felicidade de ter sido aluna do Agnaldo na Escola de Engenharia e tenho acompanhado de longe um pouco do seu trabalho. Continuo com a mesma grande admiração pela sua fala como quando ainda era uma jovem estudante.
    Parabéns pela entrevista.

  5. Muito boa a entrevIsta com o Agnaldo Farias. Concordo com ele, quando diz que a Universidade forma um indivíduo “enclausurado” nas suas estruturas acadêmicas, com pouca experimentação e ousadia. É preciso mudar, e a leitura traz o conhecimento, a reflexão. Consequentemente, a inovação.

  6. Eu e minha filha, Luísa (que está se formando agora em Arquitetura-UFPB), visitamos a 29 Bienal e gostamos muito do que vimos. Quanto ao pensamento do Prof. Agnaldo de que “nossas universidades estão assentadas em certezas”, concordo plenamente, pois viajamos de João Pessoa(PB) para que minha filha pudesse conhecer um trabalho de uma empresa paulista que é especializada em Cozinhas Industriais Sustentáveis para, assim, argumentar com os seus professores de que o seu projeto final de curso tem embasamento prático e eficiente. Ela está lutando por suas idéias inovadoras, mas se dependesse do “conselho” de alguns professores, já teria desistido do seu tema de pesquisa.
    Rosana Diôgo de Lima – João Pessoa/PB

  7. Nenhum pixador autêntico danificaria uma obra de arte. O Aguinaldo pode ficar tranquilo. As pessoas que danificam obras de arte pertencem a outra esfera filosófica, cultural e social, não a dos pixadores. A idéia de vincular pixação a vandalismo é mais uma manifestação da razão industrial moderna. A imponência da arquitetura e da paisagem que submete o homem ao isolamento, condena-o ao silêncio, à fragilidade da solidão. A pixação se opõe a isso.

  8. Parabéns a Agnaldo Farias pela fantástica entrevista. Precisamos ter alguém com esse olhar crítico e conhecedor da arte.
    Como dizia Nietzsche:
    “Wir haben die Kunst, damit wir nicht an der Wahrheit zugrunde gehen.”
    “Nós precisamos da arte para não morrer de verdade.”

  9. Como filósofo devo dizer que só a Filosofia salva. A arte ajuda no processo de transformação do ser humano, porém, a Filosofia justifica, explica, socializa a razãos salvivicas.

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