O suspeito silêncio dos intervalos factuais

O suspeito silêncio dos intervalos factuais
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

 

They are the seed cutters.
Seamus Heaney, Mossbawn: two poems in dedication

I
Preâmbulo
Trama, iminência e efetivação

O resultado das eleições de 2022 inverteu significativamente a função do Estado e o papel das forças políticas no país. Doravante, um Brasil serpentino se esgueira num Brasil repaginado pelas vertentes de centro-esquerda. Estressado no quadriênio 2018-2022 – das ruas à visibilidade multimidiática e vice-versa –, o país luta, pouco mais aqui, menos ali, para retornar à normalidade civil (senão ainda institucional), após a gravidade histórica do bolsonarismo como ideologia de Estado e o inédito flagelo pandêmico em escala global. Essa retomada exige robustecimento do combate à fome e à miséria de milhões de famílias; recuperação do crescimento econômico, com expansão da empregabilidade formal, sob menor ameaça inflacionária; garantia orçamentária de maior investimento possível em saúde, habitação, educação, direitos humanos e áreas vitais similares; proteção sistemática ao território amazônico e a todas as comunidades da floresta; diminuição da letalidade estatal e aleatória, socialmente recrudescida nos últimos anos, entre outras pautas urgentes.

No rastilho de assassinatos a tiros e socos, facadas e machadadas de políticos, negros, idosos e transexuais por membros (sempre homens) da horda bolsonarista – todas vítimas ligadas a partidos e ideologias progressistas –; no rastilho da violência contra emissoras televisivas e radiofônicas, profissionais da imprensa, caravanas e comícios, entidade estudantil, acampamento indígena, festa de aniversário – enfim, de um sem-número de danos em diversos setores e em escalas de efeito, a partir de março de 2018 [mês do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco] –, eis que pulsões (ainda) soltas na sociedade civil protagonizaram ações serpentinas que insistem em onerar a reconstrução estrutural do país. A suspeita fiada fática (relativa a eventos) desde pouco antes de 2023 – na verdade, a partir das eleições para Presidente da República em 2022) – demonstra, com larga evidência, o embrutecimento ressentido e frívolo do cenário.

1. Em 12 de dezembro de 2022, um militante de extrema direita atacou a sede da Polícia Federal [PF] em Brasília, enquanto, no mesmo dia, inúmeros bolsonaristas vandalizaram a cidade: danificaram e incendiaram, pelo menos, cinco ônibus (um deles, com motorista, que escapou ileso) e dezenas de automóveis; bloquearam rodovias federais; espalharam botijões de gás nas ruas e confrontaram policiais militares do Distrito Federal (PMDF). Bombas simuladas, balas de borracha e gás lacrimogêneo da PMDF digladiaram com bombas caseiras, fogos de artifício, paus e pedras dos extremistas. O pretexto foi a decretação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da prisão, por 10 dias, de um indígena correligionário, membro do acampamento em frente ao Quartel General (QG) de Brasília e acusado pela Procuradoria Geral da República (PGR) de integrar a horda depredatória e golpista de 8 de janeiro e de atentar contra o Estado de Direito, entre outros crimes. Em menos de três semanas, o STF determinou às Polícias Federal e Civil do DF o cumprimento de mais de 30 mandatos de prisão e de busca e apreensão em vários Estados, além do DF.

2. Na véspera do Natal de 2022, um empresário e dois correligionários bolsonaristas tentaram explodir artefato caseiro no Aeroporto Internacional de Brasília. A trama previa deixar a bomba no guarda-lama de um caminhão-tanque (com mais de 60 mil litros de querosene) na área de embarque. A quadrilha integrava o aglomerado extremista que, havia meses, acampava em frente ao QG da cidade. Cerca de dois meses depois, a PF deduziria, a partir de mensagens interceptadas, a evolução de plano do mesmo empresário para assassinar, com tiro de fuzil à distância, o então recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O crime, previsto para a cerimônia de posse, em 1º de janeiro de 2023, visava impedir o retorno das forças de centro-esquerda ao Poder Executivo até dezembro de 2026.

3. Em 8 de janeiro de 2023, a horda bolsonarista (do QG acima e de várias regiões do país) invadiu e depredou as dependências do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, do STF e do Palácio do Planalto. O descalabro terrorista em Brasília – essa pólvora amadora de estado de exceção que visava fustigar o caos para pretextar a intervenção das Forças Armadas nos três Poderes – foi o mais repercutido pela imprensa e nas redes sociais, no país e no exterior. Análise feita em Outro artigo dispensa desdobramento de referências aqui.

4. Horas depois desse atentado antirrepublicano, começaram a despontar eventos sequenciais totalmente atípicos nas cadeias socioprodutivas da energia elétrica, da mineração e dos combustíveis fósseis, nos Estados de Mato Grosso, Paraná, Rondônia, Roraima e São Paulo. Essa infraestrutura – catalogada como “crítica” na área militar –, se abalada propositalmente ou sofrer disfunção acidental (por ação do tempo, por exemplo), perturba, profundamente, o status quo da sociedade inteira. A percepção mais simples sabe que caos de massa beneficia medidas autoritárias em favor de “ordem” e “progresso”. Além das investidas contra refinarias da Petrobras – tentativas rechaçadas por guarnições policiais locais, equipes de segurança corporativa, dirigentes sindicais e trabalhadores –, houve ataques a, pelo menos, 20 torres de transmissão de energia elétrica, entre os dias 8 e 21 de janeiro de 2023. Quatro delas foram derrubadas e as demais, avariadas. A orquestração vandálica fez o Ministério de Minas e Energia (MME), o Operador Nacional do Sistema Elétrico (NOS) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) – as três instâncias de administração e regulação mais importantes do setor – aventar indícios de sabotagem. [O MME solicitou à PF que apurasse a autoria e a materialidade dos atos. O Ministério Público Federal (MPF) abriu investigação sobre possíveis liames com o terrorismo de 8 de janeiro.

A resposta jurídico-política veloz – de contragolpe pró-democrático – especialmente do governo federal e do STF, nos dias 8 de janeiro e subsequentes, fez o compasso de iminência relativamente quinzenal do terror bolsonarista granular-se em atos aparentemente sem calendário estabelecido.

5. No primeiro trimestre de 2023, sobrevieram ataques a escolas e creches. Em 27 de março, um adolescente assassinou uma professora idosa a facadas em São Paulo, além de ter ferido mais três docentes e um aluno. Em 5 de abril, um rapaz matou, com machadinha, quatro crianças e feriu outras cinco em Santa Catarina. O assassino era adepto do armamentismo bolsonarista. Em 19 de junho, um ex-aluno matou uma menina no Paraná. Como se sabe, ocorrências chocantes como essas não são inéditas. Mapeamento do Instituto Sou da Paz abrangendo mais de 20 anos (de outubro de 2002 a junho de 2023) computou 25 ataques a quase 30 instituições (majoritariamente públicas), em quase 10 Estados (Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo). O levantamento apurou 139 vítimas (46 fatais) de adultos e meninos (sempre o sexo masculino), com média etária de 16 anos (de 10 a 25). Em período anterior ao bolsonarismo como ideologia de Estado – de 2002 a 2018 –, diz o relatório do Instituto, observaram-se 7 casos. De 2019 a 2023, os ataques quase triplicaram: 18. Certamente, 2023 repercute rescaldo escabroso do quadriênio da permissividade.

Não menores em gravidade política, penal e civil, cedo irromperam novos fatos, na mesma linha de arrogância odienta (explícita ou não), com efetivação aleatória.

6. Em 29 de maio de 2023, um grupo de deputados federais de direita e extrema direita, membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), violaram, sem autorização judicial, o espaço privado de moradia de militantes da Frente Nacional de Luta (FNL), em Presidente Prudente, Estado de São Paulo. Salta à atenção que a invasão dos assentamentos ocorreu já na primeira diligência externa do grupo. O Presidente da Comissão, ex-ministro do escândalo 2018-2022, é bolsonarista.

7. Em 180 dias de administração do país pela coalizão de centro-esquerda, parlamentares ultraconservadores – a maioria ligada ao Partido Liberal (PL) – protocolaram, na Câmara dos Deputados, 10 pedidos de impeachment de Presidente da República.

8. Em 14 de junho de 2023, mais um barulho extremista: após deputados bolsonaristas do mesmo partido requerem a aceleração do trâmite de um projeto de lei que fixava data espúria para demarcação de terras indígenas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados abriu processo de cassação do mandato de seis mulheres na casa. A acusação: alcunharam de “assassinos” os defensores desse chamado “marco temporal”. O coro contra a extrema direita foi reforçado por pares masculinos com igual mandato. Foram poupados. A seletividade persecutória autodenuncia misoginia e violência política de gênero, além de machismo, conforme contra-argumento das deputadas ameaçadas. A rudeza patriarcal valida, em reverso, uma metáfora contextual: na atmosfera coesa, equânime e sem-tempo da mata fechada, o “marco temporal” é uma excrescência histórica, uma afronta política (típica da bruteza colonialista) e uma cegueira antropológica, combinada com indigenofobia periculosa e insipiência cultural. Tais expressões, por sua força autoexplicativa, dispensam acréscimos no momento. Uma vez pressuposta a precarização lenta e silenciosa de vidas humanas, vale ressaltar o essencial: o projeto de lei, em nome e em prol de latifundiários e do agronegócio a qualquer custo, propõe que o direito indígena à terra se esgota nos limites dos alqueires ocupados até a data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Depois, não. Obviamente, a legalização dessa perspectiva compromete, na base, a vida e a cultura dos donos ancestrais e genuínos da terra communis de Pindorama [em tupi, “Terra (ou País) das Palmeiras”], depois colônia imperial compulsória, desde Terra de Vera Cruz (em 1500) a Brasil (a partir de 1527, por referência a Ibirapitanga, “árvore vermelha” em tupi-guarani – pau-brasil). A violência jurídico-política, deturpando a hermenêutica do artigo 231 da Carta Magna, retroage a 05 de outubro de 1988 para anular, com ganância, todas as demarcações realizadas a partir dessa data, violando mais de 60% de reservas legalmente garantidas. Os propositores da ceifa – na verdade, novo confisco de terras (o primeiro se deu a partir de 1500, reza a história não escolarizada) – sentiram-se avexados nos brios pela alcunha de “assassinos”. A demanda da elite branca trisca isqueiro próximo a 100 ml botijões de gás assentados nos domínios de disputa entre povos originários e especulação ruralista.

9. Em 30 de junho de 2023, um brasileiro de Ceilândia/DF, instrutor de tiro e radicado em Utah, Estados Unidos, irradiou vídeo nas redes sociais no qual as faces do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de dois ministros de Estado comparecem, uma abaixo da outra, como alvos numa cabina de treinamento. As imagens gravadas encenam instrutor e aluno praticando pontaria na direção do totem.

10. Em 14 de julho de 2023, brasileiros bolsonaristas hostilizaram o ministro do STF Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma, Itália. Os xingamentos não economizaram repeteco de delírios extremistas em nichos digitais: o ministro seria comunista! Na ocasião, seu filho foi agredido com um soco no rosto.

Ocorrências similares no país tornam a lista mais extensa. A impossibilidade de previsão sobre seu término galvaniza e desdobra a sintaxe temporal aleatória do sinistro. Essa aleatoriedade tem a desvirtude fática e involuntária de alinhar-se ao princípio bélico do inesperado, na forma simbólica ataque-surpresa. A conveniência do abrupto, por sua vez, combina com o manter pretensamente todas as atenções sob controle, projetadas para a iminência subsequente.

II
Fascínio diversionista por fatos isolados

A circunstância de, na platitude das aparências, tais eventos se efetivarem sem articulação ou causa combinada nem por isso significa tratar-se de ocorrências isoladas no plano simbólico da vida política. Se, na visibilidade multimidiática, elas não representam toadas em feixe explícito e previamente pactuado, não deixam de ser, nos pesares das onerações empíricas, irrupções violentas no tecido factual dos dias. A ultrapassagem física de sinais vermelhos indicia, sempre, vulcão sedento nas proximidades da pólvora.

Alguns eventos dessa natureza (na qualidade de factoides políticos) visam condicionar saturação de sentido socialmente desfavorável à (então futura e agora vigente) administração federal na visibilidade multimidiática – do noticiário diuturno às redes sociais, destes às conversações boca a boca, e vice-versa –, durante o tempo de mandato, e além. Um dos alvos principais, a curto e médio prazos, são as políticas públicas de reparação de danos anticapitalistas e demais ações e projetos institucionais de redistribuição da riqueza nacionalmente produzida: devem sofrer tanto desgaste político quanto a própria imagem do governo – corveja o vade-mécum da extrema direita.

Essa tentativa de desidratação estrutural tem escala mais alargada e preocupante. Repercutida (quase cumulativamente) por veículos corporativos de comunicação de massa e nas plataformas digitais, a intenção deletéria reverbera no processo de construção de mentalidades e/ou na formação (duradoura ou sazonal) de propensões subjetivas. Alcança, assim, o arco de humores eleitorais, cuja oscilação repercute, por sua vez, em pesquisas periódicas de sondagem de percepção pública e padrões de motivação da população – ou seja, tem efeito direito na aprovação ou rechaço do desempenho da administração federal. A exibição jornalística da queda de percentual de apoio em quesitos básicos de administração, por exemplo, enlameia, de modo inapelável, o governo até a próxima pesquisa, independentemente de ele ter ou não plano imediato de reação e superação.

Essas injunções faceiam o caleidoscópio: quem supõe serem os fatos antes listados (no tópico I) peças apartadas, sem liame interno necessário na dimensão simbólica da vida política, padece de ingenuidade, desaviso (por fraca posse de informação ou desinteresse em buscá-la) ou mesmo leviandade – três síndromes morais correntes, em plena época da comunicação integral (seja lá o que isto signifique), sob correntes de informação por todos os lados e verdade em parte alguma. Na esteira sofisticada desse moralismo, o fascínio diversionista por fatos isolados – o fascínio de políticos, especialistas e do senso comum – traduz (ou equivale a) ideologia tecnicista de tipo conservador ou reacionário, quando não método militar ou policial de dissuasão de massas. Sob outro prisma, os eventos e seus liames, longe de tratar-se de fatores não notados e desprovidos de narrativas, correm sempre escancarados – agora como depois (como corpus noticiário estocado). A angulação é razoável: trata-se, antes, do normalmente percebido, porém não considerado às últimas consequências, em suas mediações políticas atinentes.

O caso dos ataques às escolas e creches é emblemático dessa enganosa flutuação de liames. Se, por um lado, os rigores analíticos desanimam o estabelecimento de laços diretos entre o conjunto de ocorrências e a difusão vingativa de ódio (racista, lgbtfóbico, misógino, antissemita, xenófobo etc.) por vertentes de extrema direita nas principais redes sociais (Telegram, Discord, WhatsApp e TikTok, além de Facebook, Twitter e Instagram), tampouco as evidências reunidas desmentem, por outro lado, que não se possa estabelecê-los, com convicção política protegida contra limbos e suposições. O que, por exemplo, a ciência jurídica barra (por exigência de prova empírica nos autos) as ciências humanas e sociais abraçam livre e responsavelmente, extraindo, até demonstração em contrário, teses válidas com base em e a partir de relações que somente elas podem traçar.

O relatório do Instituto Sou da Paz, no que tange ao período de governo do ex-hóspede do Palácio do Planalto, pressupõe, claramente – a quem não apraz sangrar deduções necessárias –, as consequências estruturais da necropolítica da extrema direita para as instituições escolares. “Dois dos três casos com maior número de vítimas ocorreram entre 2019 e 2022”, diz o documento.

A gramática dos fatos – enfatize-se – defenestra mentiras e diversionismos. A recente aceleração dos ataques reportados reage homeopaticamente ao longo lastro de propaganda extremista e conspiratória: a indução de Estado à proliferação nacional indiscriminada de armas de fogo, após regulação amplamente flexibilizada (em 2019), coroou a depreciação, desde a década passada, da reputação das instituições educacionais, mediante estratégia de associação sistemática de professores a ideologias “diabólicas” de esquerda, sexualização da infância e tráfico de drogas ilícitas (para mencionar apenas estes estereótipos). Segundo o relatório do Instituto Sou da Paz, essas armas “foram usadas em 48% dos casos e causaram 76% das vítimas fatais”. Os percentuais traduzem que “ataques a tiros geraram três vezes mais vítimas fatais do que as ocorrências com armas cortantes ou perfurantes”.

Um levantamento detalhado e esclarecedor dos depoimentos dos agressores pelo Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) revelou que essa realidade necropolítica é cavada e nutrida diretamente em nichos de submundo da Web, bem como nas, com as e a partir das redes mantidas por modelos de negócio das Big Techs sem qualquer regulação democrática – plataformas digitais (como as já citadas) nas quais operam livremente milícias bolsonaristas, neonazis, supremacistas e vertentes similares, em interação com crianças e adolescentes com biografia de isolamento interpessoal e vicissitudes psicoemocionais (por humilhações e castigos, exclusão e segregação sociais), vinculados, em regra, a pauperização familiar e desemprego, entre outros fatores não menos danosos.

As injunções políticas e comunicacionais (de massa e interativas) evocadas nos quatro últimos parágrafos e um pouco antes deles – mostram, igualmente, a inconsistência de dois argumentos preocupantes: (1) o de que os eventos concentrados no primeiro semestre de 2023 foram compatíveis com atmosfera incerta de possibilidades políticas e já superada; e (2) o de que, quanto mais o governo federal avança em articulações parlamentares e internacionais e na ocupação de todos os escalões do Estado e quanto mais o tempo alcança o presente, observa-se gradativa marcescência fática do sinistro, não havendo mais chance para re-erupções, muito menos revivals. Ambas as apostas investem crença indevida num darwinismo involutivo (no plano simbólico) sem contrapartida garantida em evidências. Não estaria equivocado quem afirmasse que essa conjetura regressiva pertence à tradição de lendas oníricas para adolescência indiferente. Na síntese dos afluentes, a subtese – a do neofascismo passadista – é apressadamente perigosa: militância progressista alguma, sobretudo a de esquerda (nas várias escalas de trabalho coletivo em prol da democracia), pode dar-se ao alento imaginário dos terrenos definitivamente dominados.

III
Silêncio operacional como acontecimento sintomático
Resposta exemplar do Estado de Direito

O mais importante, no entanto, radica em lugar diverso. A casca factual dos dias, quando apreendida sob o prisma do senso comum, camufla o significado do aparente não-evento, vale dizer, a vultuosa ocorrência da falsa inércia dos intervalos: a urdidura oclusa entre um soluço fático e outro configura, também, acontecimento. Para além da palha seca, o pomo crucial envolve esse profundo silêncio operacional e sintomático, que mantém em conforto imperturbável – de novo – apenas a ingenuidade, o desaviso e/ou a má-fé.

Esse intervalo, estratégico – no qual alguma operação presume-se em movimento – deve ser apreendido por igual, estrategicamente, em sua dimensão precisa, longe de imediatismos analíticos: um momento social-histórico de incubação política. Ele pode durar o tempo que for – de semanas a semestres, quem sabe anos de conveniência, em prol da preservação do sinistro e do ensejo de que, um dia, ele retorne à tona.

A repaginação do Brasil, com dominância de atmosfera estruturalmente adversa (mas não hostil) à ultradireita, altera pouco, como ingrediente, a equação do silêncio serpentino. Os extremistas apenas deslocam energia de foco na gramática do tabuleiro político.

Na metáfora sociogeológica desse tabuleiro (o da disputa pragmática do aparelho de Estado, em todas as escalões e contextos), a questão cardinal, no rasto desse silêncio entre córregos, remete à oscilação das placas tectônicas do submundo. Em matéria de preservação das instituições republicanas e da defesa da democracia e dos direitos humanos, toda atenção dedicada a essa incubação movente é pouca. Qualquer silêncio discursivo e/ou fático da extrema direita merece, por razões históricas evidentes, desconfiança a priori. Por mais diletante que seja, nenhum submundo tira férias; não lhe apraz, por assim dizer, períodos sabáticos ou greves: a trama justifica o trabalho competitivo diário.

Esse apetite, nutrido na tara fundamentalista e hedonista por regimes autoritários e pela moral infantil de dedo em riste, aclara-se ainda mais sob expressões conhecidas da ciência e da filosofia políticas. O estado de exceção, seja fixo e com face (no e a partir do aparelho de Estado), seja nômade e relativamente invisível, diluído em poros sociais (dentro e fora das redes digitais), é paranoide por constituição e dever obscuro: ele pode falhar ou deixar a berlinda dos dias, mas nunca dormita; ele pode “desaparecer” por algum tempo, mas, a exemplo da hediondez da tortura e do trabalho escravo, resiste a morrer definitivamente. Ele escolhe, aliás, o ostracismo voluntário e organizado para driblar o fantasma da entropia irreversível.

O exercício constante da prudência mais elementar não repõe senão a significação desse silêncio político-pragmático no escarpado platô de uma encruzilhada sem neblina – aquela armadilha que, havendo vacilo das forças antifascistas, submete a risco de implosão o próprio respiro da construção da democracia como invenção social-histórica, regime de governo e valor universal.

Evidentemente, o diâmetro dessa preocupação abarca a dinâmica hegemônica e problemática da comunicação interativa. Enquanto os modelos de negócio das Big Techs escaparem a normas democráticas e consistentes de regulação interativa, as plataformas de redes sociais perdurarão como provetas de alento inconstitucional ao neofascismo e quejandos – em palavras desdobradas, (perdurarão) como subespaços eficientes de preparação subjetiva e expansão ideológica em bolhas segmentadas, com metas estratégicas e confluentes de assalto ao Estado, por via seja light (pelo sufrágio universal), seja abrupta (com golpe reacionário, apoiado por diferentes patentes militares e vários segmentos empresariais e religiosos).

Para sinalizar que a criminalidade ou ilicitude ultradireitista não compensa, uma República, se séria, não pode considerar suficiente o jejum político compulsório (por 2 quadriênios) do ex-hóspede do Palácio do Planalto, conforme veredicto, por maioria sábia, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em junho passado. Em perspectiva dimensionada – isto é, em escala de construção coletiva da República, com repercussão garantida de futuro democrático –, o corretivo jurídico da inelegibilidade, exemplar em tudo, se for reduzido, no entanto, a sanção eleitoral a persona única, acaba por arrefecer esforços políticos e éticos – presentes lato sensu na jurisprudência responsável – de combate a problema bem maior, de massa: a proliferação da mentalidade neofascista e de seu ideário necropolítico. Refrão de juízo comum, são as vertentes neofascistas que alicerçam e cristalizam um líder, não o contrário; o líder depende de disposições homicidas e ceifadoras existentes (de restrição criminosa da vida alheia), não o contrário. Mesmo que, na prática, alegue que 6 não é meia dúzia, o negacionismo da extrema direita, com inteligência sabidamente maior que a rusticidade voluntária que o anima, substituirá, obviamente, o títere da hora por outro fantoche (quem sabe pior) – e a direita inteira não tardará abraçá-lo, se o carisma eleitoralmente lucrativo do aventureiro convier a seus intentos de preservação de poder a curto e médio prazos.

A saúde democrática do que resta da República pede mais – oxalá as investigações e processos em trâmite no STF e no TSE contra o miliciano-mor e centenas de militantes extremistas rendam efeitos educativos duradouros, garantida a ampla defesa no curso do devido processo legal. Com este pormenor evidente: quem depredou ou ajudou a depredar, quem matou ou ajudou a matar, quem arruinou o país ou ajudou a arruiná-lo deve (no sentido da efetivação, não da previsão) pagar o máximo preço, nos termos da legislação vigente. Ao fim e ao cabo, toda e qualquer sanha vilipendiadora da democracia precisa ficar ciente de que a gravidade transgeracional do neofascismo jamais será condecorada em jantares coniventes (dentro e fora do ambiente judiciário) – esta res de republiqueta, amanhada com azeite de esquina.

Esse apontamento transpira seus liames internos, em prol dos cuidados com o intervalo entre os soluços fáticos. O feixe de eventos e factoides emblemáticos listados no tópico I – assassinatos, ameaças de morte (sumária ou lenta), hostilizações; invasões, ataques, destruição; sabotagens, vandalismo, terror; violação de recintos privados, sentinela parlamentar para impeachment, deturpação da letra constitucional etc. – pertence à mesma linhagem do episódio de 8 de janeiro em Brasília. Este marco de pulsão antirrepublicana foi socialmente precedido por um silêncio operacional significativo, para além do bulício das redes digitais. Tal calada dolosa se configurou como suporte logístico e material no interior do aparelho de Estado (então ocupado e conduzido pelo bolsonarismo civil e militar); como financiamento externo por parte de empresários de extrema direita; como prevaricação de funcionários públicos, especialmente lotados na Polícia Militar do Distrito Federal e nas Forças Armadas; como apoio estimulador de igrejas pentecostais e partidos políticos ultraconservadores; como “isenção” condescendente, omissão deliberada ou pusilanimidade da produção jornalística corporativa e majoritária; e como torcida tácita de segmentos do sistema financeiro, entre outras vigas funcionais.

Por mais que essa operacionalidade relativamente oclusa – cultivada, havia tempo, em nichos interativos com beneplácito oficial – tenha perdido calendário na história política do país (sobretudo com a culminância desastrada de centenas de presos no mesmo dia da depredação), a irrupção em Brasília – reconheça-se – jogou, por momentos, a realidade política e multimidiática da República na incerteza, após interregno de aparente recuo pragmático da extrema direita. [Meses seguintes, a imprensa conservadora descobriria que, na pior cafua do submundo, o ex-inquilino do Palácio do Planalto e seus asseclas diretos mantinham, na lapela de ternos encardidos, o bosquejo já estruturado para sabotar o resultado do pleito de 2022, decretar estado de sítio e perpetuar, na pasta executiva – desde o húmus orgulhoso da autocracia –, homenagens à ditadura militar, aos porões da tortura, à matança diária (e sem apuração) de índios, negros, mulheres e homossexuais, ao genocídio pandêmico por desassistência de Estado e a todo tipo de vilipêndio à alteridade e a seus espaços e modos diversos de vida, com anulação de direitos fundamentais – o primeiro deles sendo o direito à existência.]

IV
A eterna véspera da guerra civil
Guerra cultural e guerra híbrida

Contra o governo de centro-esquerda empossado em janeiro de 2023 – administração que, moderada, pouco se difere, essencialmente, de uma coalizão social-democrata identificada com movimentos e causas populares, com foco em reforças estruturais minimamente socializantes –, a mentalidade nacional de extrema direita (bolsonarista ou não), recostada com conforto no combate ao “comunismo imaginário”, tenta, por diversas artimanhas fáticas e procedimentais, fazer do país, com mais carabinas, pistolas e cartuchos circulantes (sobretudo desde 2019), uma atmosfera convidativa à agudização do confronto polarizado, na direção da guerra civil. Dos vários modelos contemporâneos dessa guerra micropolítica – do mais sutil, com recursos informacionais e de espionagem (hoje nutridos por fake news e negacionismo) até a conflagração campal, com armamento pesado –, a intenção da extrema direita (ao menos, na geração atual) é a de, no mínimo, alentar, a partir dos principais colégios eleitorais (o das capitais de Estado), uma “guerra de guerrilha” generalizada no plano simbólico da vida política, dentro e fora do Estado, nas instituições sociais como nas ruas e redes. No delírio extremista, o aquecimento do caldeirão sustenta o moral inicial necessário ao empuxe do país, um dia – louvados sejam os deuses da entropia, rezam –, para esse tipo de ignição conflagratória, quando ou se as condições políticas amadurecerem, ao ponto de, num toque de mágica, a mera fustigação ideológica se converter em condições historicamente objetivas. Acavalada e insolente, a horda em rede (civil, militar e miliciana), hoje mais armada que nunca, não hesitaria em assumir esse atalho de combate em caso de crispação política fora de marcos diplomáticos satisfatórios. Esse delírio bélico-populista, até agora rechaçado pela maioria da população, tem sido amplamente derrotado pela confluência democrático-legalista das forças de centro-esquerda (da esfera partidária à produção cultural e área desportiva), dos agentes econômico-financeiros com influência no mercado (esfera do consumo inclusa) e das empresas de comunicação de massa e interativa. Nas diversas ramificações do capital, os dois últimos atores necessitam, ao menos, da soberania da pax econômica para sustentar e diversificar negócios.

A integração de facetas conflitantes talha o cânone inconfundível da dialética: interregnos de calmaria social aparente – lembre-se – são possíveis somente porque a guerra civil, em modelo campal, tem sido inviável. Ela é, no limite dos radares, sempre tentada, mas nunca acontece – permanece em véspera eterna, se muito. Há motivo, quer heroico, quer de consolação: véspera já é guerra. (Esse aspecto é retomado adiante.)

Com tais recuos e ínterins após cúmulos de irrupção e assalto, esse horizonte previsível de investidas cíclicas – lembre-se também – faz parte da “guerra cultural” em curso, o conjunto internacional de batalhas políticas da extrema direita no plano antropológico da disputa de valores e regras civilizatórios – disputa na qual e para a qual a produção cultural, os bens imateriais de consumo (especialmente via meios de comunicação), o patrimônio público, os preceitos morais, o sistema educacional e recursos similares são ingredientes cruciais e utilitários (como espaços de conflito e luta). No Brasil, mesmo com ataques às escolas, esse modelo de guerra estagia em terreno menos visível e em compasso desacelerado (em comparação com as ocorrências no quadriênio 2018-2022) após o aparato jurídico-repressivo do Estado ter firmado cerco ágil e implacável à arruaça extremista em Brasília e tendo em vista a atmosfera política e legal ameaçadoramente reversa que culminou na inelegibilidade do miliciano-mor. Esse recuo – que minorou muitíssimo, na vida cotidiana, o infernal barulho cinzento (não nas redes sociais, mas na visibilidade mediática de massa e nas ruas e praças) – equivale a tempo de reorganização estratégica e tática. Não por acaso, a estratégia de crispação das relações políticas cessa diante da urgência ou necessidade de aliviar posições próprias no tabuleiro da disputa. Como um “organismo” movido a obviedade emblemática – e que, por mil causas escabrosas, a crônica jornalística, lúcida na metáfora, acertou em chamar ironicamente de bovino –, a horda bolsonarista (das redes sociais ao Congresso Nacional) tende, em regra, a amenizar-se ante o julgamento, pelo STF, de processos com possibilidade de encarceramento do ex-hóspede do Palácio do Planalto. Por razões igualmente evidentes, foi assim durante a sabatina, no Senado Federal, de Christiano Zanin, advogado indicado pela Presidência da República para ocupar cargo vitalício no STF. Esse comportamento de massa cauteloso – com tateios de algodão enquanto botas pisam cascas de ovo sem tanto ruído – não pode ser interpretado como fadiga do séquito fundamentalista e/ou da fidelização correligionária. Quem – ou a instância jornalística que – promove essa abordagem não deixa de agradar a forças de massa que farejam fechamento de tempo. Os ares naïve dessa leitura somente podem ser superados com respiro reflexivo sobre a sintomatologia sociopolítica do silêncio ou, em sentido mais pragmático, sobre o uso (orquestrado ou pontual) da não-manifestação como resposta contextualizada.

Os ciclos de recuo e intervalo após erupções de investida enquadram-se, por sua vez, no horizonte da guerra híbrida. Mais especificamente, esse tipo de guerra inspira, como instrumento estratégico e tático, a guerra cultural, ao passo que esta última, como “laboratório” pragmático (de idas e retomadas), contribui para a diversificação e expansão daquela. No que tange às intencionalidades da horda – de factoides a ínterins e vice-versa –, a eterna véspera da guerra civil (esta encarada em seu modelo clássico) corresponde, em termos de tempo e espaço, ao recipiente social-histórico de vários matizes de guerras conexas e/ou possíveis: campal (em ambientes urbano e rural), informacional (com vigilância e espionagem), de pressão “legítima” (em parlamentos, instâncias judiciárias e outros locais ou meios de lobby), de narrativas (para disputa e sobredeterminação de versões ideológicas) e de chantagem e ameaças psicológicas (sempre contínuas, por todos os recursos disponíveis), entre outras modalidades conflitivas. A hibridação delas – ou de algumas delas – num mesmo processo hostil visa manter a atenção do inimigo sob controle permanente e fazê-lo jogar o jogo segundo as regras dos fustigantes.

Em particular, nos segmentos parlamentar e de redes sociais, a guerrilha micropolítica passa, no plano simbólico, pelo impeachment do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O povoamento das ruas, na escala de outrora, depende – conforme assinalado – de condições coletivas e objetivas de indignação e insatisfação. As sondagens atuais de percepção pública do desempenho do governo federal indicam resultados na contramão dos piores intentos oposicionistas.

V
Ambiguidade fatal dos media conservadores

Nessa órbita de fatores, observa-se o quanto a função política (lato sensu) do sistema mediático-jornalístico conservador (de massa e interativo) não deixa, no terreno dos pressupostos, de denunciar sua própria ambivalência estrutural – matéria sensível que merece consideração sem pruridos.

A legitimidade histórica do conservadorismo jornalístico é inseparável da legitimidade da disputa por capitalização de audiência ampliada. Desde que garanta meta de lucratividade (material e/ou simbólica), sob enquadramento em critérios de autocensura, vale, em tese, qualquer pauta, mesmo mexericos políticos e funcionais sobre os entremeios do poder de Estado e de governo a título de prestação de serviço (relevante para grupos dirigentes e categorias abastadas). Oferta de convencimento a desavisados, essa função político-noticiosa, espelhando a dinâmica sinuosa das redes sociais, não deixa de servir café sem culpa à extrema direita, ao dar-lhe munição moral para atuar em parlamentos, modular a trama dos próximos passos e reforçar escaramuças em todos os domínios. Trata-se de questão sensível em qualquer país assentado no modelo ocidental de sociedade, em que a imprensa tem papel protagonista na sustentação da democracia como valor sine qua non.

Invariavelmente, a agenda mediática majoritária encaixa-se em jogo sistêmico arriscado, que ela não controla e que muitas vezes não lhe apraz, seja em natureza, seja em consequências. Essa agenda mantém, por exemplo, a novela jornalística – já retrô — sobre o golpe urdido no último trimestre de 2022. O Brasil está institucionalmente repaginado, mas não política e mediaticamente. (Esta asserção tem leitura idiossincrática e quase invertida: se o país não está noticiosamente repaginado, também não o está – ou, ao menos, é como se não o estivesse – no plano institucional e político.) Sombras recentes, que remontam a momentos plúmbeos da história nacional (entre 1964 e 1985), embrenham-se a passos voltados para a reconstrução do país. Tais contradições na dimensão simbólica da vida social permitem que a produção noticiosa ligada a matérias-primas históricas, se bem requentada no sensacionalismo discreto de manchetes oportunas, venda bem. Repercussão mediática dos trabalhos da CPI mista sobre o 8 de janeiro no Congresso Nacional, essa pauta é, sem dúvida, fundamental para revelar – pela enésima vez – a índole autoritária e destrutiva da horda que administrou o país no quadriênio 2018-2022; cravar, de modo permanente, na opinião pública, a associação entre bolsonarismo e periculosidade civil, militar e miliciana para a democracia e para a República brasileiras; desidratar sua potência eleitoral, evitando que o sinistro retorne ao poder de Estado; e reforçar a necessidade urgente de responsabilizações judiciais, na proporção justa e compatível com os crimes contra o Estado de Direito. Em que pese a indiscutível relevância dessa rota jornalística em termos de discussão pública e preservação da memória, a ambiguidade da função macrossistêmica aí implicada acaba por fazer essa pauta fomentar lamentos ressentidos em cerca de 15 a 30 milhões de brasileiros – uma população hierárquico-ultraconservadora, segregacionista e altamente temerosa de perder privilégios de classe; vale enfatizar, a parcela do eleitorado que, semeando prole e vigor transgeracional, deseja, desde sempre, golpe de Estado. A recepção deturpada do noticiário retrô pelo prisma da frustração vingativa – lamuriante, ainda, nas redes sociais – alimenta esperanças de milhões de brasileiros que, sem escrúpulos para absurdos, farejam factoides na direção de tiroteios e em nome de Deus, da pátria, da família e da propriedade.

O intento leviano indaga: a escabrosidade política e de Estado, passada e atual, não merece ampla vitrine? O argumento do parágrafo anterior dispensa pressuposições equivocadas ao asseverar o contrário da indagação – e foi além: ele sinaliza que a necessidade (às vezes, a premência) de noticiar a escabrosidade porta, ao mesmo tempo, uma “fatalidade” tal que, por ambiguidade intrínseca, prospera em favor de capitalizações (imediatas ou diferidas) por parte de vertentes extremistas, independentemente de essa apropriação cercar e instrumentalizar todo e qualquer recurso útil e socialmente disponível. Essa injunção recobre contradições da própria realidade institucional e política no capitalismo, não tanto da imprensa – uma realidade que o jornalismo integra, constrói e sofre diariamente. A “fatalidade” do processo extravasa, estruturalmente, qualquer voluntariedade corporativa (tomada como iniciativa individualizada) – o que, nem por isso, isenta responsabilidades. Uma ambiguidade macrossistêmica dessa natureza (em tudo política, sobretudo em consequências) teria de ocorrer menos – ou não ocorrer (não fosse idílico o mote) – com discursos e produtos da indústria jornalística conservadora, autodeclarada séria e credível em anúncios e vinhetas autopromocionais.

Por outro lado, a insistente ladainha de comentários hipotéticos, em canais televisivos, sobre o futuro de políticos neofascistas (e muito pouco sobre o aberrante destino coletivo do autoritarismo per se), em função do eventual vazio eleitoral deixado por Proto-Füher, não representa somente depreciação estratégico-jornalística, mas também a flagrante dificuldade de redimensionamento do diapasão nacional e internacional da visão de mundo (em especial, sob autotutela conservadora) – o que exige deslocamento e reescalonamento da pauta prioritária (da agenda setting, por assim dizer) do e para o país, longe da ruminação épica ou heroico-individualizante em torno de niquices, ainda mais ligadas a tais e quais ex-autoridades desqualificadas. Em regra, toda e qualquer empresa de comunicação de massa e/ou interativa que, como instância sociopolítica fundamental em países ocidentalmente modelizados, exerce cobrança legítima do Poder Público sem apresentar pauta propositivo-programática de nação e sem sincronização sistemático-profissionalizada com o porvir (sempre coletivo, agora sob cuidados pós-pandêmicos) não faz jus à escala histórica de uma República, nem demonstra maturidade suficiente na tessitura simbólica da vida nacional.

[No fundo, os escombros do país foram tantos que, a rigor – inexistissem ditames tão competitivos e velozes no mercado noticioso (situação condicional que, por tão hipotética, sequer caberia, de toda forma, como exercício especulativo) –, a pauta jornalística mainstream faria favor histórico e cultural (em acepção antropológica e escala civilizatória) se pudesse priorizar, em cômputo majoritário, nos meios eletrônicos e impressos, os esforços multilaterais de reconstrução nacional e os enormes óbices políticos a respeito. Esse foco, se progressivo e prospectivo, alocaria, de vez, o bolsonarismo na vala das ideologias do passado, ou melhor – para honrar o ensejo lexical –, na vala do plágio fascista, da vergonha histórica, do vexame internacional, da incompetência de governo etc. – do nunca mais.]

VI
Chance histórica da República e da democracia

A fustigação de crises com sangue nos olhos por parte da extrema direita concede, contra ela, dialeticamente, a chance providencial de a República brasileira robustecer, como nunca antes e com cauda de longo prazo, o regime democrático, mediante correção definitiva do descarrilamento político de 2016, sobretudo a partir de 2018, incluso o evento depredatório de janeiro de 2023.

As instituições republicanas e democráticas foram (como que) refundadas em 1988, mas, após o citado interregno, renasceu, no fundo, a partir de outubro 2022. Depois do aprendizado político – tortuoso que seja, mas rápido – com experiências históricas dramáticas, esse horizonte de retomada constitui o dever de resposta macroestrutural por parte do Poder Executivo, com contribuição inestimável de governos estaduais e prefeituras assentados em coalizões progressistas.

Para se enraizar e se consolidar nas relações sociais, uma República democrática, respirando tempo de longas durações, precisa, porém, transitar, com firme apego à letra constitucional, para o coração multicultural da vida cotidiana, ali onde o húmus da existência (individual, grupal e coletiva) deve coincidir, de forma irreversível, com o respeito incondicional à vida da alteridade – prática a ser infinitamente refinada no detalhe, para exemplo e frutos permanentes. A rarefação dessa prospectiva faz da República mero apanágio de arquitetura em prancheta plástica.

Mais que nunca, as vertentes de centro-esquerda, hoje carro-chefe do Executivo, não podem falhar nas áreas da economia, da saúde, da educação, da cultura, da mobilidade, enfim, em todos os segmentos de administração da vida social, em especial naqueles em que o desempenho governamental bem-sucedido se converte em apoio popular consistente. Caso contrário, todos os matizes nazis – dos robustos aos tácitos – ascenderão, de novo, ao controle do Estado, com virulência multiplicada e amplo suporte civil, militar e miliciano.

Post scriptum

Se, por um lado, os fundamentos do presente artigo escaparem ao tempo curto, devem, por outro lado, interessar, obviamente, menos a pósteros do que às providências republicanas e democráticas em prol de suas vidas.

Eugênio Trivinho é Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.


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