Sigi, o tirano

Sigi, o tirano
Freud e Martha Bernays (Reprodução)

 

Quando Freud conheceu Martha, de 20 anos, uma amiga de suas irmãs, na primavera de 1882, ele acabara de concluir os estudos de medicina. E, como as circunstâncias externas o impediam de prosseguir a carreira universitária, aspirava tornar-se neurologista no Hospital Geral de Viena.

Logo depois de seu noivado, que inicialmente foi mantido em segredo, a mãe de Martha, viúva, decidiu mudar-se com as duas filhas para Wandsbek, perto de Hamburgo. Durante quase quatro anos de separação, o casal comprometido trocou cartas quase diariamente, um vasto volume de correspondência.

Na época, 1882, ninguém era mais feliz que ele. Esse é o tom subjacente. Freud não escreve para se convencer; não precisa disso. Desde o início seu relacionamento fora declarado como uma etapa que levaria ao casamento, uma união baseada na razão.

O rumo da relação romântica em si foi tão problemático quanto é para qualquer pessoa. Mas Freud tinha resolvido o problema em duas frentes. Ele conseguiu se dedicar plenamente à continuação de sua educação científica e médica e, ao mesmo tempo, encontrar-se, sem ter de vagar muito longe.

Havia um relacionamento social entre as duas famílias judias, os Freud e os Bernays, durante a fase de emancipação dele. O casal também desempenhou o papel de cupido. Anna, uma das cinco irmãs de Freud, ficou noiva um ano depois do irmão de Martha, Eli.

Posição social

Freud estava muito entusiasmado com Martha e avaliou com precisão suas qualidades. Da parte desta, tudo nele era importante, não apenas como o personagem do “homem”, como as garotas o chamam, mas também a posição na sociedade que a aguardava e o papel que ela desempenharia a seguir.

A existência de inúmeras cartas de noivado escritas durante os anos que precederam o casamento pode ser explicada pelos ditames da convenção, que Sigmund Freud geralmente respeitava.

Eram as obrigações de praxe, e as boas famílias de classe média faziam questão de que fossem observadas. O objetivo do amor era o casamento, e este era complementado pelo nascimento de filhos, o que exigia uma renda regular. Freud ainda não era capaz de provê-la, o que explica a duração de sua correspondência.

No entanto, esse período pode ser interpretado de maneira muito diferente pela perspectiva do noivo. A convenção adquire seu verdadeiro significado em outro lugar.

Pensamento especulativo

Nesse contexto, há uma constante reflexão sobre os pré-requisitos – especialmente na primeira etapa –, que se tornam o principal tema de discussão. Ela determina o ritmo segundo o qual o impulso intelectual é constante e repetidamente levado a questionar todas as consequências do relacionamento.

Freud reconhecera em Martha Bernays a personalidade incomum que ela realmente era, o que não significava que ele não a rejeitasse sob outra perspectiva. Como se ela fosse mais madura e radical – o fato de ela não ter sido foi algo que, depois, ele lamentou várias vezes.

O rumo do intercâmbio equipara-se à dinâmica do pensamento especulativo de Freud. A desconfiança era inerente ao método. No entanto, a decisão impulsiva do noivado, que foi posta em prática em 17 de junho de 1882, era definitiva.

Era da natureza de Martha ser incomum, como o próprio Freud era e se reconheceu como tal desde cedo. Isso forneceu a base inicial para a exploração conjunta de seu relacionamento.

Nas biografias de Freud – e não apenas na importante e quase oficial, a de Ernest Jones (A Vida e a Obra de Sigmund Freud, Imago) –, lemos que Freud provavelmente teve poucas experiências eróticas pessoais. Todas as coisas culturais tinham prioridade sobre as sexuais, o que, muitas vezes, é mal compreendido.

Contra esse pano de fundo puritano, o amor a que ele decide se dedicar aos 26 anos tem algo de decisão preconcebida, como se ele previsse sua vida posterior e as descobertas que marcariam época. Seu casamento também pertence a esse horizonte.

Portanto, devemos ver esses longos (e para a época não raros) anos de espera como a verdadeira experiência do amor realizado-não realizado, apesar da abstinência e de todas as queixas sobre restrições.

Um pequeno número dessas cartas já havia sido publicado. Mas hoje podemos ler o início de um grande, ou mesmo gigantesco, empreendimento e encontrar Freud em um mundo nada conhecido, em que o vemos livre e desimpedido, embora às vezes inseguro.

Martha foi obrigada a suportar muitas coisas sombrias e difíceis (nas palavras dela) do “tirano”. Ela sinceramente tentou preencher as expectativas dele, mas muitas vezes chegou perto do desespero.

Como sua companheira – e, portanto, pertencente a ele em todos os sentidos –, Freud exigia que Martha abandonasse seus hábitos cotidianos, o que era quase impraticável.

Aula e noivado

O período de noivado havia se tornado uma aula? Havia algo que ela não precisasse aprender? Ela cedeu aos desejos dele em tudo o que foi possível. O relacionamento foi duradouro porque Martha vencera. Freud havia se decidido por ela.

Eles tinham um acordo, segundo o qual todos os problemas deveriam ser decididos em comum acordo. Assim, ele também tinha de se conter em suas críticas, e ela precisava moderar as suas, quando chegava a expressá-las. Para os dois, o amor em si não era difícil; era a base, a fundação sólida.

Ele é o “homem” e, somente por essa razão, superior. Não apenas ela, mas ele também tem de aceitar isso – como se acreditava em geral na época, eram diferenças naturais. Ela deve admirá-lo por isso, como realmente faz. A garota, a amada, deve pagar um preço por colocá-lo em um pedestal; a diferença no sexo era o esteio da vantagem social dele.

Não podemos realmente falar de igualdade. Mas aqui justamente o superior dos dois tenta igualar as coisas. E não é esse um privilégio de Eros, que supera todos os obstáculos? Freud apela ao amor, evocando-o o como sua libertação e salvação.

No entanto, ele insiste em uma forma de igualdade intelectual e fisiológica que ninguém mais é capaz de alcançar. Ele deseja ser somente dela. Todas as outras pessoas no círculo de sua noiva barram seu caminho. E, assim, ele justifica seu ciúme. A exclusão dos outros é vista pela amada como uma exigência estranha e necessária. Ele é o seu escolhido.

Para Freud, a igualdade dos sexos deve-se à qualidade única de um casal baseado na boa vontade mútua e ilimitada. Sua constante autoanálise enraizada em uma busca de conhecimento, que apesar de tudo ainda deve ser compartilhada por ambos, como ele postula.

Martha Bernays escreve naquilo que considera um estilo informal. Ela realmente preferiria se deixar levar, mas, para fazer jus às expectativas de seu parceiro, se contém. Às vezes ela se pergunta como é possível que o amor – e em sua posição isso significa seu futuro como mãe de família–, pode exigir tal intensidade de livre vontade e compulsão social.

Simplicidade

Por que essa declaração de sentimento mútuo deveria obrigá-la a suportar esse cabresto? A dualidade de Freud reflete-se nas reações adversas de Martha. Ele exige isso dela, e depois lamenta ter exigido. Ele a ama em parte pelo que ela é e em parte pelo que não é e, na opinião dele, deveria ser.

Ele se preocupa com a constituição do self da amada. Ele a compreende como uma consequência da “ternura” (palavra repetida infinitamente) que sente por ela. Por mais que ele admirasse isso, a transformação daquele ser mostra-se uma contraoferta obrigatória aos sentimentos dele, quase exigindo uma recriação da personalidade dela.

Mas a verdadeira realidade da simplicidade da pessoa dela, à qual ele está unido firmemente, não pode se reconciliar com essa exigência. Existe um personagem duplo em ação por parte de Freud.

Dois pontos de vista

Essa contradição em última instância caracteriza o relacionamento dos amantes. Um ideal e uma expectativa exagerados em contraste com a inevitável aceitação da realidade. Um dos dois não é menos lúcido do que o outro; mas um julga, enquanto o outro perdoa e oferece reconhecimento.

A garota amada defende-se e resiste, porque sabe que a ligação é forte e que seu amado de vez em quando se excede. Martha compreende claramente que deve se subjugar a ele de modo geral.

Essa compreensão nítida dita seus próprios vaivéns, que em sua proximidade e separação não passam de uma reação às contradições metodológicas e também maravilhosas de Freud. Isso dá a ela uma contrassuperioridade própria.

Martha Bernays vivia em uma família respeitadora das tradições. A religião é citada nas cartas, embora não seja um tema de discussão importante. Para Freud, a tradição judaica estava ultrapassada em relação a seu amor.

Sua união de casamento foi outra promessa solene, que segundo Freud a trouxera para o reino do espírito. Para ele, a fé judaica havia aberto um meio positivo de investigar objetivamente a realidade. O judaísmo não precisava se dissociar do cristianismo.

O acadêmico Jacob Bernays, tio de Martha, havia morrido um ano antes de os dois se conhecerem. Ele nunca se casara. Hoje, sua orientação homossexual é conhecida, e as cartas recém-publicadas que escreveu ao poeta Paul Heyse são prova eloquente disso.

Ao mesmo tempo, ele permaneceu um judeu respeitador da lei e lia o Talmude todos os dias. Seu irmão Michael Bernays, possivelmente o mais famoso estudioso de literatura alemã da época e um especialista na juventude de Goethe, havia se distanciado do judaísmo.

Assim, a união de Freud e Martha foi confrontada com os dois pontos de vista. Os pais de Martha viviam na tradição de Jacob, o filólogo clássico, e seu pai, Isaac, um rabino esclarecido.

Freud não era menos judeu do que sua noiva, embora tivesse se dissociado da religião. Ele não era menos sujeito ao antissemitismo (na verdade, talvez ainda mais) que os judeus praticantes. Considerava seu judaísmo uma vantagem nos campos das ciências duras e humanas, pois lhe permitia superar falsas suposições.

A sete chaves

Durante muito tempo as cartas foram guardadas a sete chaves pelos executores do espólio de Freud, pois não pareciam pertencer à obra do psicanalista. A atual publicação põe em perspectiva essas reservas.

Um ano antes de morrer, em 1982, Anna Freud liberou as cartas para publicação no início do terceiro milênio. O extraordinário trabalho de edição ficou a cargo da renomada especialista em Freud Ilse Grubrich-Simitis, com a ajuda dos pesquisadores Gerhard Fichtner e Albrecht Hirschmüller.

A edição é exemplar em todos os sentidos, particularmente nos comentários e no material suplementar.

Não menos importante é o fato de que Ernst, o filho mais moço de Freud, um arquiteto, manifestou uma opinião diferente da família desde o início.

Cinquenta anos atrás, ele supervisionou a publicação de um volume das cartas de Freud (Briefe 1873-1939), em que se dedicou um grande espaço à correspondência com Martha, e ele também levou ao grande público uma seleção dessas cartas (Sigmund Freud, Brautbriefe, Fischer-Bücherei, 1968).

Na introdução, acrescenta: “Freud escreveu cerca de 1.500 cartas para sua noiva, que dificilmente poderiam ser mais esclarecedoras em termos de sua autobiografia”.

Esse comentário foi muito restritivo. No entanto, ele se refere aos 60 anos ou mais em que toda a coleção permaneceu inédita.

Talvez ainda hoje alguns psicanalistas se oponham à publicação das cartas. O material parece se situar além do domínio psicanalítico e, por esse motivo, projeta nova luz sobre ele.

Intimidade e reputação

Como um executor de mentalidade aberta, Ernst Freud sentiu-se obrigado a explicar aos leitores o prolongado período de noivado: “Afinal devemos a existência das ‘cartas de noivado’ à intervenção enérgica da mãe de Martha. (…) Apesar de toda a resistência do casal, ela insistiu em voltar com sua família para Wandsbek, para esperar lá que o noivo obtivesse o diploma acadêmico e a habilitação para se tornar independente”.

Ernest Jones teve livre acesso a todas as cartas e utilizou-as amplamente em sua biografia.

Ele escreveu que, além de qualquer objetivo documental, a correspondência poderia ser considerada uma valiosa contribuição para o tema do amor à literatura. Na época não foi possível considerar a publicação das cartas.

No entanto, sabia-se que Freud havia destruído seus primeiros manuscritos, com exceção dessas cartas, que o casal poupou. Após sua morte, Martha pensou em destruí-las, mas sua filha a convenceu do contrário.

Uma situação íntima, confidencial, repetida em intermináveis variações, aparentemente não combinava com a reputação do autor, fundador da interpretação dos sonhos. Tentou-se evitar destruir sua poderosa estatura e influência, especialmente porque este não era mais o período preliminar dos anos 1890. Agora o autor das cartas já era “Sigmund Freud”.

Sociedade complexa

Contudo, a correspondência deve ser lida de uma perspectiva diferente da psicanálise que surgiria depois. As cartas de amor foram criadas na turbulência da era pós-vitoriana.

Para nós, 130 anos depois, elas servem como um poderoso testemunho de uma sociedade complexa, organizada segundo regras estritas, que se abria mas que ainda permanecia fechada.

Este é o primeiro volume de cinco planejados. O leitor finalmente é admitido e rapidamente transportado como se lesse um romance.

O relacionamento entre “Sigi” e “Marthachen” tem sua própria história dramática. A novela epistolar existiu desde Rousseau, com Julia ou a Nova Heloísa (1761). As “cartas de noivado” são até certo ponto uma inversão realista dela.

Consistem em roteiros mais leves ou pesados que giram em torno da vida cotidiana. Seguem um anseio de realidade imediata, que, por sua vez, se enquadra em um contexto multifacetado e uma unidade espiritual única.

Essa conversa entre companheiros de jogo demonstra um método de ambos os lados; esse é o bom Freud, de nosso ponto de vista contemporâneo.

Nas primeiras cartas o encontramos como alguém que não conhecemos, como um Freud diferente, que talvez seja mais facilmente entendido como alguém que procura, encontra e planeja a si próprio, questionando a si mesmo e a sua parceira.

Ler as cartas nos faz conhecer a força de sua personalidade, seu domínio das situações difíceis, das pessoas e da psicanálise.

Ao longo dessa história às vezes dramática, a “confiança” surge como um motivo central; algo se estabelece que permite a união e a solidariedade.

Esta última pede uma análise minuciosa das circunstâncias que a cercam, como, por exemplo, os conflitos desafiadores com a mãe (o pai havia morrido) e o irmão, o homem da família, todos vivendo em um pequeno espaço e com suas respectivas doses de neurose.

Escrevendo um romance

Freud descreve essas coisas como episódios de uma novela, e escreve como se fosse autor, e não personagem central. Também se poderia facilmente descrever isso como a composição de um épico. Uma conquista foi feita, linhas foram traçadas. Então surgem os problemas: a batalha pode começar.

O escritor põe-se à prova, como em uma obra literária. Nessa correspondência, suas representações são brilhantemente elaboradas.

Freud sabe contar histórias e é hábil em todas as situações em termos de estilo e composição. A estreita conexão entre suas capacidades linguísticas e seu talento natural para a psicologia, ainda não desenvolvido, fica evidente aqui.

Muitas vezes, ele escreve as cartas em sua mesa de trabalho no laboratório, interrompendo experimentos
zoológicos ou médicos. Uma correlação ideal desenvolve-se entre a precisão do discurso científico focado em um objeto de estudo e seu talento artístico apartado do trabalho profissional.

Freud também escreve as cartas para si mesmo. O olhar ousado, livre, penetrante do cientista junta-se a seu amplo conhecimento da tradição cultural, ou de múltiplas tradições, como base para a verdadeira assimilação.

Portanto, o que temos à frente é um documento emocionante, altamente revelador, que também é uma prosa magnífica.


Jean Bollack, é filólogo, filósofo e autor da biografia Jacob Bernays – Un Homme entre Deux Mondes [Um homem entre dois mudos, 1998]. Este artigo foi publicado no Süddeutsche Zeitung

(3) Comentários

  1. A surpresa das cartas não vem dos costumes da época, mas sim da racionalidade expressa, mesmo para enaltecer o sublime ato de amar. A comparação com velocidade da luz, o uso de produtos químicos e outras alegorias científicas dão o tom. Gostei da abordagem da Cult e estou ansioso para ler a obra original desse Freud missivista.

  2. Estamos acostumados a ver o autor por trás da obra. Talvez as cartas representam uma das pouquíssimas oportunidades de ver pessoas como Freud nus, desarmados, viscerais, assim como acontece com Drummond, em recente publicação epistolar.

  3. Fiquei curioso que foi divulgado aqui no site e na revista dessa edição da Cult que já foi lançado o “Obras Psicológicas de Sigmund Freud – Escritos sobre a Sociedade e Religião (3 volumes)”, e essa informação não consta no site da Imago, aliás, não consta também nenhuma previsão sobre o lançamento desse novo eixo temático das atuais traduções de Freud por essa editora. Desta forma fica difícil saber em que momento que poderemos esperar esses 3 volumes anunciados na revista Cult.

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