São Paulo e o modernismo

São Paulo e o modernismo

As vanguardas de um modo geral louvaram em verso e prosa a chegada da modernidade na paisagem urbana

Serafim Ponte Grande, personagem principal do polêmico romance de Oswald de Andrade, publicado em 1933 e escrito na década anterior, em toda a vida tinha amado apenas a amante Dorotéia e a cidade natal. São Paulo, ao contrário da paixão do debochado herói, permaneceu fiel não apenas ao seu criador, mas a muitos modernistas. Municiou-lhes com cenários variados que dariam belos mapas daqueles tempos, itinerários de marcos concretos da cidade. Alguns desaparecidos, outros, embora deformados, hoje ainda resistem. Talvez fosse interessante evocá-los nesta festa para lá de quatrocentona. Daria uma medida de como os paulistanos lidaram com o seu espaço urbano depois da reforma estética detonada em 22, e teríamos o trajeto dos seus principais personagens.

Num passeio imaginário pela história literária dos anos 20, do século passado, no velho centro, de imediato viria à memória o imponente teatro, palco das batalhas da Semana; atrás dele, o prédio do Esplanada Hotel, encantado pelo poeta na “Balada do Esplanada”; o viaduto de ferro dos poemas “Anhagabaú” dos dois Andrades; mais adiante, o Triângulo, comovidamente registrado em Paulicéia desvairada, o primeiro livro de poesia do movimento. Surgem também alguns letreiros fantasmagóricos, assinalando pontos de encontro de jornalistas, escritores e artistas no final do expediente, quer na porta das redações dos dois principais jornais da época, quer na Livraria Garraux, quer ainda no escritório do dr. Estevam, pai de Guilherme e Tácito de Almeida, outro espaço de reunião, onde os dois poetas gazeteavam o trabalho para, junto com o amigo Couto de Barros, planejarem novas revistas ou administrarem as existentes e desenharem belas capas como a de Klaxon.

A consciência de que São Paulo assumiria um papel renovador, calcado e muito no esforço sistemático da elite intelectual, começava a ser a tópica dos artigos estampados na imprensa, alicerces do novo movimento estético. Os textos preparatórios da Semana falam de uma nova Renascença, de “nova hora de Paris para a arte. Hora de Greenwich para a indústria, sem que se perca a latitude brasileira”, como queria Oswald. E Ribeiro Couto predestinava “uma nação em marcha a surgir”.

É evidente que as vanguardas de um modo geral louvaram em verso e prosa a chegada da modernidade na paisagem urbana e quase todos elegeram como tema preferido a cidade natal. Penso que em relação aos artistas paulistas esse fenômeno deu-se de modo diferente. Houve uma obsessiva e sistemática cruzada no sentido de fazer com que as mudanças virassem rotina e o orgulho entusiasta dos seus filhos fosse revertido em ações práticas, constantes e duradouras. Talvez essas sejam as marcas da postura desses intelectuais e ainda expliquem a disponibilidade de romancistas e poetas intrometerem-se em diversos empreendimentos, tais como: fundação de partidos políticos modernos e de periódicos, organização e medidas de racionalização de imigração, planos para museus, projetos de órgãos de preservação do patrimônio, esboços de escolas e universidades. Algumas dessas intervenções iniciadas durante os anos 20 foram gradativamente viabilizadas nas décadas seguintes.  O incentivo e o respaldo à série de iniciativas que tirasse do Rio de Janeiro a hegemonia cultural e econômica eram o norte desses modernistas aliados à oligarquia agrário-exportadora, ou mesmo dela provenientes. No começo não tinham no horizonte um projeto global de Brasil, a questão era construir um Estado pujante, desenhado a partir do “futurismo paulista”. Com o passar do tempo, a pesquisa sistemática de identidade nacional foi tomando corpo.

Em nome do engrandecimento deste “país virtual” até uma revolução foi estrategicamente planejada com a participação de modernistas do primeiro time, que não vacilaram em pegar em armas: o tão comemorado movimento constitucionalista de 1932, que, a pretexto de pressionar o governo central e exigir a democratização e a liberdade de imprensa, deu vazão ao ímpeto separatista dos paulistanos, numa frente ampla de artistas, oligarcas e tenentistas, em que a direita retrógrada pegou carona. Alguns intelectuais como Mário de Andrade fizeram mais tarde o mea-culpa por ter apoiado o movimento. Atitude esperada num poeta que escreveu o “Acalanto do seringueiro”, mas poucos ficaram distantes do sangrento conflito, como foi o caso de Oswald, talvez porque, na ocasião, estivesse também afastado dos antigos companheiros de festa literária.  

O surto de progresso que se alastrou pelo Estado parece ter ligação direta com a aliança entre empresários, políticos, escritores e artistas, na realidade iniciada por ocasião da Semana de Arte Moderna. Basta conferir a imponência social, financeira e econômica dos patrocinadores do evento e a simpatia discreta dos seus dirigentes políticos (prefeitos e governadores). Essa elite política compareceu em peso à abertura da Semana, no Municipal, surpreendentemente cedido para uma atividade de blasfêmia e ico-no-clastia em relação aos espetáculos até então consagrados nesse espaço.

Acionados pelos líderes modernistas, os chefes políticos locais apadrinharam novos artistas em dificuldades financeiras com bolsas de estudos no exterior e com a aquisição de suas obras. Praças e parques foram enfeitados com esculturas modernas. Teatros públicos abriram espaço para peças e recitais de vanguarda. Debates sobre a arquitetura de Warchavchik movimentaram a cidade e resultaram mais tarde em construções modernas. Círculos de conferências de nomes famosos com entrada paga foram montados a fim de revelar as novas idéias. Lembro as conferências do filósofo alemão Hermann Keyserling (autor de O mundo que nasce, um dos livros de cabeceira dos primeiros antropófagos); as palestras em homenagem a Blaise Cendrars, que gravou no poema “São Paulo” linda declaração de amor: “Adoro esta cidade/São Paulo está de acordo com meu coração/ Nenhuma tradição/Nenhum preconceito/Nem antigo nem moderno […]”; as do surrealista Benjamin Péret; as exibições da cantora de jazz Josephine Baker e da lírica Elsie Houston. Todos eles foram recompor-se do ritmo frenético dos salões paulistanos na fazenda Santa Teresa do Alto, de propriedade do casal ícone do Modernismo, outro ponto de encontro da moda e oportunidade para os estrangeiros conhecerem in loco a produção do “ouro negro”.

Longe de manterem relação com a chamada literatura sorriso, na moda entre nós no limiar do século passado, sobretudo no Rio de Janeiro, esses salões privados foram cenários animadores da modernidade cultural e artística da cidade, com pequenas galerias de arte moderna. Da avenida Higienópolis, da rua Conselheiro Nébias, da alameda Barão de Piracicaba, da rua Lopes Chaves, endereços emblemáticos do Modernismo, pipocaram idéias, poemas, romances, amores e negócios que agitaram a história local, sobretudo entre os anos de 1922 e 1929, antes da crise do café, bem como antes das cisões estéticas e afetivas.

Da mesma forma que a elite política e social, os principais jornais da cidade, de forma generosa, deram guarida aos primeiros textos irreverentes dos nossos modernistas anunciadores de mudanças na arte e por tabela nos hábitos da então pacata cidade. Merecem destaque a acolhida e a contribuição dos redatores do Correio Paulistano (órgão do Partido Republicano Paulista) e de A Gazeta. O Estado de S.Paulo, de modo discreto, não deixou de acompanhar “os futurismos da atividade”, como se referiam os modernistas a respeito das transformações da paisagem trazidas pela indústria e pela arte.

À guisa de balanço, arrisco a dizer que o Modernismo deu uma reviravolta na arte brasileira e muito mais em São Paulo, visível até hoje. Foi um movimento avassalador, impulsionado pelo boom do café e da industrialização, contribuindo para a fantástica expansão da cidade.

Maria Eugenia Boaventura
professora Titular de Literatura Brasileira e Teoria Literária na Unicamp. Tem vários estudos publicados sobre o Modernismo. Entre eles: A vanguarda antropofágica (Ática, 1985), O salão e a selva (Prêmio Jabuti em 1996, Ex-Libris/Unicamp), 22 por 22, a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos (Edusp, 2000). Organizou as edições de textos inéditos em livro de Oswald: Os dentes do dragão (Globo, 1990), Dicionário de bolso (Globo, 1991) e Estética e política (Globo, 1992); e de Mário Faustino: O homem e sua hora e outros poemas (Companhia das Letras, 2002) e De Anchieta aos concretos (Companhia das Letras, 2003)

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