O ruído dos rinocerontes
(Imagem: Albrecht Dürer)
Um horizonte impreciso contamina a vida individual e coletiva no país. Para ser sucinto, lembro aqui de apenas três dos grandes acontecimentos que nos atravessam: a invasão da Ucrânia pelo exército russo e suas implicações na economia doméstica da maior parte da população; o acordo mais ou menos tácito entre governantes e cidadãos que decretou a toque de caixa o fim da pandemia e de suas restrições, negligenciando as consequências possíveis de contaminação e adoecimento de quem acaba se expondo ao vírus; e, por último, aquela que é a cereja do bolo dos brasileiros, o período eleitoral com toda a sua carga conflitiva (e aflitiva!). Para piorar, no interior desse quadro geral cujos traços fortes nos servem de baliza, algo mais se destaca e chama a atenção: o ruído de rinocerontes.
O crítico literário e dramaturgo Eugène Ionesco, nascido na Romênia em 1909 e naturalizado francês, lançou mão da alegoria dos rinocerontes em sua peça intitulada Rhinocéros. Na obra, que se tornou a mais importante e conhecida de Ionesco, o sem sentido da vida se sobrepõe a qualquer tentativa de fundação de uma lógica subjacente à dinâmica das relações humanas. Trata-se de uma história passada numa pequena cidade interiorana, na qual os cidadãos, misteriosamente, vão se transformando aos poucos em rinocerontes e assumindo um comportamento bestial. Há entre as pessoas a hipótese de uma epidemia, a rinocerite, e a proliferação de rinocerontes nos domínios da cidade traduz o alastramento de um estado generalizado de ódio cujo contágio é irrefreável.
Apresentada pela primeira vez em 1959 na França, O rinoceronte é uma obra clássica do teatro que se convencionou chamar de “teatro do absurdo” pelos críticos da época. Boa parte dos temas trabalhados por Ionesco confirmam em nossos dias sua impressionante contemporaneidade, dentre os quais se destacam a presença insidiosa de um poder de massificação e achatamento de sujeitos reduzidos a uma dimensão ferina em seu comportamento; e a falência da linguagem não somente enquanto dispositivo de comunicação, mas como estrutura capaz de sustentar um pacto simbólico entre os humanos.
Em entrevista concedida pelo dramaturgo a Claude Bonnefoy, ele diz que a inspiração para a peça surgiu a partir da observação detida sobre o foro íntimo de amigos e intelectuais que se deixaram apanhar e seduzir pelos movimentos fascistas que invadiram a Europa na primeira metade do século 20. O aspecto do fascínio pela violência surge na peça como uma espécie de atração irresistível pelo estado feroz do animal sobre os personagens. Apenas um deles, o anti-herói Bérenger, um homem incapaz de se adaptar às regras e normas sociais, consegue resistir à força do ódio convertido em determinação absoluta. Todos os outros sucumbem à mutação, seja por sedução, adesão irrefletida, imposição ou simples desistência.
A dinâmica do contágio nos faz pensar num mecanismo de poder que captura o sujeito e toma corpo a partir da irrupção de forças internas disruptivas. Algo que não deixa de ser testemunhado com um elevado grau de estranheza e assombro, dada sua grande configuração delirante. Como resultado desta operação sobre os espíritos impulsionada pela máquina fascista, observa-se também a produção de subjetividades que se transfiguram numa grande metamorfose.
No que se refere à constatação da falência da linguagem de fazer valer um entendimento básico entre os sujeitos, a peça é bastante ilustrativa para os dias atuais. A questão, ao que parece, não é tanto a respeito da incapacidade dos falantes de apreenderem um sentido unívoco para suas ações e sentimentos num contexto dialógico, o que supostamente prejudicaria o exercício da comunicação entre eles. Nesse sentido, abre-se aqui um pequeno parênteses para destacar que a própria psicanálise questiona o ideal de uma fala transparente e sem desvios, já que a equivocação do sentido é própria ao campo da linguagem e de seu exercício (e a partir deste ponto de vista, o fracasso da comunicação está sempre à espreita). No âmbito da prática psicanalítica, a equivocação na fala é aquilo mesmo que dispara a busca permanente do sentido e nos faz tatear de modo incessante o corpo das palavras: assim se configura o jogo infindável do som e do silêncio que habita o coração desse espaço intersubjetivo.
A degradação apontada por Ionesco se deve a uma fratura no interior da estrutura da linguagem, reduzindo-a a meros pedaços estanques e inarticulados. O rinoceronte não fala, e de sua enorme boca cheia de dentes só é possível ouvir seu barrido e bufar. Nesse estado de coisas, onde o que está em jogo é exatamente aquilo que possibilita o funcionamento da linguagem, o elemento comum responsável pela ligação entre as partes – e a consequente fundação do pacto simbólico –, como uma rede ou teia lançada sobre o conjunto das coisas, encontra-se comprometido. E a implicação da alteridade a partir de um ponto de vista estrutural está completamente ameaçada, senão totalmente destruída.
Alguns anos antes de Ionesco, precisamente em 1954, Jacques Lacan ensaiava no espaço de seus seminários (posteriormente publicado com o título “Os escritos técnicos de Freud”) uma explicação possível para o que ele identificou como um mecanismo de “floculação difusa do ódio”. O ajuntamento ou coagulação de pequenas partículas de ódio no interior do corpo social, que segundo Lacan nos conferia o estatuto de “civilização do ódio”, adviria de uma correspondência entre a “objetificação do ser humano” característica do nosso modo de ser social com o “polo do ódio” que participa do jogo dialético de estruturação do Eu.
Nesta relação necessariamente conflitiva que constitui a estruturação fundamental do Eu, o afeto do ódio tem a sua importância na medida em que permite uma separação instituinte entre o Eu e o Outro. Acontece que, se no espaço da relação intersubjetiva o ódio é um elemento formador na medida em que a negação do outro permite a afirmação dos contornos mínimos do Eu, configurando o império do um, não haveria relação humana possível sem um polo oposto destinado a resguardar um terreno comum onde possam haver dois. A coexistência do par – e do múltiplo – se deve ao solo simbólico fundado pela palavra. E é exatamente aí que o estatuto da palavra enquanto fiador do registro simbólico se perde nos delírios fascistas do poder comprometido com a supressão da diferença.
Dois anos depois, no seminário dedicado ao tema das psicoses, Lacan constrói uma imagem (ou “apólogo”, como ele mesmo dizia) para dar a dimensão do caráter destrutivo que incide sobre as relações humanas quando se encontram privadas deste elemento simbólico terceiro – exterioridade irredutível –, único capaz de regular o espaço entre sujeitos para além da referência especular proporcionada pela imagem do outro:
Pensem nesses pequenos automóveis que se veem nos parques de diversões lançados a toda velocidade num espaço livre, e cujo principal divertimento é o de se entrechocarem. Se essas manobras dão tanto prazer, é que o lance de entrechocar-se deve ser alguma coisa de fundamental no ser humano.
A referência ao outro, quando restrita a um circuito dual e reduzida à dimensão imaginária é, segundo Lacan, uma suposição mítica, dado que “o comportamento humano não está nunca pura e simplesmente reduzido à relação imaginária”. No entanto, caso fosse possível, o resultado seria “uma colisão, um esmagamento geral”. As manifestações de ódio, em qualquer nível ou espaço considerado no âmbito da vida social, devem então sofrer algum enquadre pela dimensão simbólica que nos constitui. Ainda assim, é preciso dizer, mesmo nessas condições nas quais o “ser” do outro não possa ser destruído e eliminado pura e simplesmente sem deixar rastros e restos, observa-se nos ataques destrutivos a abertura de um campo de desinvestimento, rebaixamento, negação via palavra, reduzida a um grau mínimo de sentido, entre o xingamento e o barrido de um grito. Um trânsito perigoso no qual o esgarçamento da rede simbólica corresponde à miserabilidade da expressão da linguagem endereçada ao Outro.
É impossível não pensar que é exatamente este o quadro que enforma nosso presente imediato, de onde já se vê a poeira subir e os ruídos se intensificarem. O ódio no Brasil ganhou status de governo em 2019 e se profissionalizou através da atuação infame de obscuros gabinetes paralelos. A perseguição às diferenças e a transformação de adversários políticos em inimigos da nação impulsionam a produção desenfreada de fake news, assim como alimentam declarações absurdas de representantes oficiais. Tudo isso tendo ao fundo a implantação de um “estado suicidário”, denominação utilizada entre analistas da política para um modelo próprio de gestão neoliberal no qual o desmonte e a destruição das instituições republicanas andam juntos com a administração da morte de parcelas vulneráveis da população.
Mas se engana quem pensa que o espírito do fascismo está encarnado apenas num grupo de pessoas em espaços institucionais específicos. Seu espraiamento entre outras camadas “insuspeitas” da população faz dessa força destrutiva o alvo principal de uma luta permanente pela liberdade. Em “Introdução à vida não-fascista”, texto escrito para o prefácio do livro O anti-édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari, publicado em 1977 nos Estados Unidos, Michel Foucault elege o fascismo como o inimigo maior: “E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas –, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”.
A imagem de uma poderosa manada de mamíferos ferozes e imponentes vindo em nossa direção, levantando na paisagem uma nuvem espessa, crescente e insensata de poeira e sujeira, deve ilustrar algo que cedo ou tarde acaba por invadir a vida de cada um de nós: o discurso do ódio em suas múltiplas faces. E quando invade o interior de nossas casas, o animal berrante está muito longe de possuir as características de um bichinho domesticado. Tomemos o caso específico daqueles que se arriscam na escrita destinada a um público disperso em sítios da internet e das redes sociais: a depender da temperatura do assunto tratado, os rinocerontes correm e avançam livremente por entre as telas de computadores e celulares. Os comentários que preenchem o espaço reservado à “livre opinião”, com raríssimas exceções, dão mostras de que o teatro de Eugène Ionesco, naquilo que soube encenar como a fratura violenta dos laços sociais, manifestando desde a comunicação marcada pelo sem sentido até a expressão de comportamentos que traduzem a ferocidade animal impulsionada pelo ódio, representa hoje em dia a cena mais cotidiana de nossas vidas.
O gesto instintivo de recusa do outro pode ser visto do lado daquele que o executa como uma defesa psíquica impulsionada pelo medo (muitas vezes o pavor) de se identificar com a diferença. A fantasia que subjaz e impulsiona o afeto é a de ser devorado, invadido, roubado e contaminado pelo outro. A frase que resume a estratégia de defesa é: “isso não pode ser, precisa ser eliminado”. Quando entoada em coro, é o próprio barrido do rinoceronte que se pode ouvir. E é preciso dizer que absolutamente ninguém está completamente imune ao perigo desta mutação animal. Como bem disse o personagem Bérenger: “Os bons sujeitos dão bons rinocerontes”.
João Paulo Ayub Fonseca é psicanalista e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com tese intitulada “Arte é sangue, é carne – a riqueza e a miséria da palavra no romance de Graciliano Ramos”. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios, 2015).