O gozo e o mal: além do princípio de nomear

O gozo e o mal: além do princípio de nomear

 

 

Aos olhos de Jacques Lacan, o intelectual de esquerda seria uma espécie de bobo. O termo inglês fool, segundo ele, cumpriria melhor a função de definir esse lugar. Inocente ou parvo, sua boca diz verdades, que são toleradas, mas mantêm-se inoperantes. O de direita, por sua vez, seria um canalha confesso. Não deixa de notar que, quando reunida, a canalhada da direita espalha igualmente suas tolices. Ou seja, a foolery do intelectual de esquerda emerge na lamentável imbecilidade dos canalhas agrupados.

Após essa subdivisão que acaba por colocar as diferentes posições em um mesmo conjunto – pouco importa se de esquerda ou de direita, ambas estão, para Lacan, em torno da tolice –, o psicanalista declara em O seminário, livro 7 A ética da psicanálise:

Freud talvez não fosse absolutamente um bom pai, mas, em todo caso, não era nem um canalha, nem um imbecil. É por isso que se pode dele dizer estas duas coisas desconcertantes em seu vínculo e em sua oposição — ele era humanitário — quem irá contestá-lo ao examinar seus escritos? — e devemos levar isso em consideração, por mais que esse termo seja desacreditado pela canalhada da direita, mas, por outro lado, ele não era em absoluto um parvo, de maneira que se pode igualmente dizer, e para tal temos os textos, que ele não era progressista.

Deus está morto, eis a verdade freudiana na leitura de Lacan. Todavia, ainda que desfeita, a interdição, erguida pelas leis de Deus, perpetua-se. O gozo segue tão proibido quanto antes. Revela-se enquanto mal. Na versão de Freud em O mal-estar na civilização, o mal articula-se em relação ao próximo. Como forma de gozo, afasta-se das “boas almas”. E, como se sabe, a orientação do gozo está na compulsão à repetição de um trauma, que se dá além do princípio de prazer. Jacques Lacan reproduz as letras freudianas com acréscimo de alguns breves comentários:

Aqueles que preferem os contos de fadas fazem ouvidos moucos quando se fala da tendência nativa do homem “à maldade, à agressão, à destruição, e, portanto, também à crueldade”. E não é só “O homem, com efeito, é tentado a satisfazer no próximo sua agressividade, a explorar seu trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apropriar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo”.

Interessante destacar a expressão tendência nativa colocada no trecho acima. Deixemos provisoriamente esse ponto de lado. Antes dele, vale lembrar que, ao recuperar a problemática do “amor ao próximo”, levantada por Freud em O mal-estar, Lacan evoca o mal nas obras de Marquês de Sade. O mal, transfigurado a partir da ausência de Deus, coincide com as dores de uma determinada espécie de prazer. Jacques Lacan diz que o moralista tradicional se empenha em atar um nó impossível entre bem e prazer. Conjugar este com aquele, porém, seria parte de uma cilada: “Quem é que, em nome do prazer” pergunta provocativamente Lacan, “não afrouxa desde o primeiro passo um pouco sério em direção a seu gozo? Não é o que todos os dias sentimos de perto?”.

Seguindo ainda os passos de Freud, Jacques Lacan se posiciona de forma contrária às correntes filosóficas que condicionam a moral ao hedonismo. Formula, assim, outras questões perturbadoras: o bem seria realmente capaz de sustentar o mandamento Amarás teu próximo como a ti mesmo? Como querer incondicionalmente o bem ao próximo? O próximo pode ser um mal ao representar a aniquilação de minha própria existência. Além disso, insiste, o amor é um trabalho libidinal precioso e “não vou dá-lo inteiramente a cada um que se apresente como sendo o que é, só porque ele se aproximou”. Trata-se de um bem que não há como ser simplesmente distribuído a quem quer que seja.

Vendo-as por outro prisma, as formulações freudianas também recebem uma crítica de Lacan. Ele percebe que não se trata de conservar o amor enquanto um bem, como se faz em relação a algum tipo de propriedade privada. O bem, é verdade, se mostra de modo altruísta. Amar ao próximo, contudo, não é exatamente essa espécie de manifestação. Daí advém o famoso axioma lacaniano: “Amar é dar o que não se tem”.

Em nome do amor ao próximo muitas formas de maldade se tornaram justificáveis. E, com isso, o psicanalista francês percebe que o mal habita o sujeito em seu gozo, ou seja, o mal está naquilo de que ele não ousa se aproximar. Assenta-se no próprio sujeito em sua relação com o Outro. Defendendo-se de seu próprio mal, arma estratégias psíquicas que dirigem a agressividade contra si mesmo. Nessa operação, emerge uma Lei incontornável, cujas origens não são identificáveis. Em O seminário, livro 7, A ética da psicanálise, Lacan aborda esse lugar ao tratar da Coisa [das Ding], parcela inabsorvível ou indigesta de cenas traumáticas. Sabe-se que Jacques Lacan considera impossível atingi-la, tocá-la, penetrá-la; bordejá-la torna-se, então, função da linguagem.

É necessário, todavia, acrescentar duas notas a esse grande esquema lacaniano. Em primeiro lugar, não é uma questão qualquer saber de que modo se encadearão os significantes em torno da Coisa e quais exatamente serão eles. Em segundo, seria preciso perguntar-se se, de fato, a Coisa mantém-se intacta e impenetrável ou se chegou o momento de também abalar essa verdade lacaniana.

Nesse ponto, abala-se a tendência nativa do homem à maldade, à agressão, à destruição, e, portanto, também à crueldade. Esses elementos não são características que se expressam de maneira espontânea, como ocorre com alguns fenômenos da natureza. Homens e mulheres manifestam raiva e revolta em momentos específicos, nos quais conformações de poder e força estão situadas. Essa dimensão sincrônica da linguagem exige que se incluam afetos de raiva, prazer e destruição no corpo da história e dos significantes que a articulam. É exatamente em tal dimensão que um(A) intelectual de esquerda pode ser incompatível e, por conseguinte, incomparável ao intelectual de direita.

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Um(a) intelectual de esquerda

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Talvez a tolice identificada por Lacan no intelectual de esquerda esteja em sua aposta utópica, isto é, em sua tentativa de lançar-se em um além-realidade. Sua seleção de significantes insistentemente nega a força que opera na realidade e da qual ele mesmo é refém, ainda que enfaticamente a recuse. De outro lado, em sua vertente aparentemente colada à realidade, o intelectual de direita converte-se em um naturalista, o que não deixa de ser uma ideologia que paira sobre a materialidade e apaga qualquer ponto de fuga das presumíveis leis da natureza. O intelectual de direita, em suma, seria aquele a eleger significantes que justificam artifícios e armas que reiteram o status quo e sua hábil adaptação àquilo que se apresenta.

Jacques Lacan lança algumas de suas ideias sem expor seus meandros. Pode-se apenas deduzi-los. É possível supor, então, que, se algo difere o conjunto de significantes entre ambas as posições, há uma coincidência entre os dois lados: a ilusão. A realidade nunca se apresenta sem faíscas que a neguem radicalmente e o trabalho exaustivo que a direita faz ao recusá-las apenas oblitera defensivamente caminhos do desejo. De outro prisma, dificilmente argumentos de esquerda, que dilatam tais faíscas descolando-as do suposto mundo palpável, sustentam os pés daqueles que caminham pelas estradas deste mundo. É evidente que figuras incansáveis de esquerda, como Rosa Luxemburgo ou Karl Marx, mantiveram-se rentes à materialidade ao redigirem seus pensamentos. Mas a regra está longe de corresponder ao fôlego de alguns personagens dessa ala, como foram esses dois e outros no outro século.

Nas décadas mais recentes, o feminismo marxista e o feminismo negro mergulharam nas formas e mediações do trabalho da mulher nas sociedades patriarcais e extraíram cadeias e cadeias de significantes inéditos. É uma questão se tais significantes seguem apenas bordejando a Coisa. O que tem se apresentado nas formulações feministas parece estremecer certos pilares do edifício teórico-clínico freudo-lacaniano. A constituição da matéria ou do vazio impenetrável da Coisa (das Ding) torna-se parte da construção do discurso dominante. Vejamos essa hipótese com mais vagar.

O léxico judaico-cristão do bem e do mal impregna a ética lacaniana. A tendência nativa do homem à maldade, à agressão, à destruição, e, portanto, também à crueldade é uma formulação que isola e abstrai esses afetos de suas configurações históricas específicas, tornando a teorização psicanalítica da pulsão de morte uma espécie de versão secularizada do mal. Isso fica muito claro quando se compara o lugar dado por Jacques Lacan ao das Ding, que coordena o caráter repetitivo de determinados significantes em torno dele, à definição do Inferno em Dr. Fausto, de Thomas Mann. Esta sai da boca do dito-cujo, que tenta convencer Leverkühn a vender sua alma.

A volúpia secreta, a segurança, do Inferno, consiste justamente no fato de ele ser indefinível e conservar-se impenetrável às tentativas da língua; consiste no fato de ele limitar-se a existir. […] [No Inferno] se acaba tudo — não só a palavra indicadora, mas tudo, tudo, simplesmente; […] é penoso falar dessas coisas que se passam muito além e fora da língua […]. Não se esqueça o imenso suspiro de volúpia, que se intromete, pois um tormento sem fim, ao qual não se estabeleceu o limite de uma remissão do sofrimento, de um colapso, de um desmaio, degenera em vez disso em vergonhoso prazer, e assim se explica que aqueles que disponham de alguma noção intuitiva falem da “volúpia infernal”. Mas a isso se liga o elemento do sarcasmo e da extrema desonra, que se une à tortura; pois esse deleite infernal, que equivale ao mais miserável escárnio pespegado ao desmedido sofrimento, é acompanhado por gestos ofensivos dos dedos e relinchos de gargalhadas. […]

Parte da “tortura” e do “vergonhoso gozo” dos condenados ao abismo infernal “consiste na obrigação de inventarem insultos especialmente abjetos” ao Outro. Não é a injúria compulsiva o que vemos na disputa entre membros da esquerda e da direita? É bem verdade que esses significantes também devem ser considerados em sua dimensão histórica e não como parte de uma performance vazia. De todo modo, verga-se para outros lugares quando a disposição é a de ler e escutar mulheres, feministas marxistas e feministas negras, ou outras populações historicamente oprimidas. Com elas, temos que invadir e mergulhar nas formas históricas e concretas confinadas em das Ding.

Quando estava à beira da morte, Audre Lorde concluiu “minhas omissões ganharam relevância sob uma luz impiedosa, e o que mais me trouxe arrependimento foram os meus silêncios”. A morte é o “silêncio definitivo”, e não o mal ou o gozo pulsional. Sim, pois o pedaço inabsorvível pode ser incessantemente penetrado e traduzido. É o que fazem, evocando o nome próprio que as situa, certas mulheres. Trata-se de um movimento difícil e dolorido, do qual não se esquivam.

Nesse sentido, talvez seja possível dizer que tanto O intelectual de esquerda como O de direita limitam-se a bordejar a Coisa como esquiva defensiva. Aqui o substantivo homem, empregado na frase de Lacan A tendência nativa do homem à maldade, à agressão, à destruição, e, portanto, também à crueldade como denotativo de humano, pode assumir feições um pouco mais palpáveis de gênero. Como uma criança assustada, o intelectual de esquerda não é capaz de encarar os afetos destrutivos que integrariam uma transformação genuína. Elabora teoricamente o eterno sonho de mudança, sem ousar invadir aquilo que efetivamente poderia realizá-la. O de direita, por sua vez, respeita o mal como uma entidade natural ou sobrenatural, da qual seria impossível escapar. Alia-se cegamente ao ponto opaco e arma sua batalha de guerra contra tudo que possa penetrar e dissolver essa zona que supõe imodificável.

Audre Lorde e outras mulheres, porém, escolheram percursos diferentes. É o que se vê nesse pequeno depoimento em A transformação do silêncio em linguagem e ação:

[…] [A] cada palavra verdadeira dita e a cada tentativa que fiz de falar as verdades das quais ainda estou em busca, tive contato com outras mulheres enquanto analisávamos as palavras adequadas a um mundo no qual todas nós acreditávamos, superando nossas diferenças. […]Quais são as palavras que você ainda não tem? O que você precisa dizer? Quais são as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si, até adoecer e morrer por causa delas, ainda em silêncio? Para algumas de vocês que estão aqui hoje, talvez eu seja a expressão de um dos seus medos. Porque sou mulher, sou negra, sou lésbica, porque sou quem eu sou – uma poeta negra guerreira fazendo o meu trabalho, então pergunto: vocês têm feito o trabalho de vocês? E é claro que tenho medo, porque a transformação do silêncio em linguagem e ação é um ato de revelação individual, algo que parece estar sempre carregado de perigo. Mas minha filha, quando contei para ela qual era o nosso tema e falei da minha dificuldade com ele, me respondeu: “Fale para elas sobre como você jamais é realmente inteira se mantiver o silêncio, porque sempre há aquele pedacinho dentro de você que quer ser posto para fora, e quanto mais você o ignora, mais ele se irrita e enlouquece, e se você não desembuchar, um dia ele se revolta e dá um soco na sua cara, por dentro”.

 

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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