A revolução cultural brasileira
A médica psiquiatra Nise da Silveira, que revolucionou o tratamento mental no Brasil (Foto: Divulgação)
O que aconteceu no país de Machado de Assis, Cartola e Nise da Silveira para que a defesa da tortura, a demonização da solidariedade e o ódio ao conhecimento acabassem naturalizados? O que tornou possível que ideias grotescas, racistas, homofóbicas e sexistas se tornassem novamente críveis aos olhos de parcela considerável da população, inclusive de alguns detentores do poder político, a ponto de serem verbalizadas sem qualquer pudor? Como figuras como Ustra, Hitler, Franco e Pinochet voltaram a ter admiradores no Brasil? A resposta a essas indagações parece estar ligada à ideia de que uma série de atores sociais deram início a uma espécie de revolução cultural. Uma revolução que retoma o sentido pré-revolucionário do termo: o de voltar às origens, o que, no caso brasileiro, significa uma volta a uma visão de mundo que reforça preconceitos e a desigualdade social.
Para alcançar os seus projetos políticos e satisfazer os seus interesses econômicos, um grande número de políticos, empresários, jornalistas, juristas, ideólogos e intelectuais foram, pouco a pouco, moldando uma visão de mundo em que os limites jurídicos e éticos ao exercício do poder passaram a ser percebidos como obstáculos a serem suplantados. Para a realização desses interesses pessoais tornou-se imprescindível afastar conceitos morais, jurídicos, religiosos e éticos presentes na sociedade e que impediam (ou, pelo menos, diminuíam) a exteriorização de atos preconceituosos e flagrantemente egoístas. Essa visão de mundo, difundida por políticos, influenciadores sociais e pela indústria cultural, fez do egoísmo e da violência virtudes, enquanto a solidariedade e o diálogo passaram a ser apresentados como fraquezas.
O retorno e a busca por hegemonia de uma visão de mundo que se mostra compatível com a ideologia escravagista, a heteronormatividade compulsória, o darwinismo social e a demonização do conhecimento permitiram refundar as relações sociais, a norma jurídica e a interpretação dos fatos, bem como relativizar a verdade e, inclusive, reescrever a história. Apenas a revolução cultural em curso permite, por exemplo, explicar a aceitação de teses como a da ausência do racismo ou a da “ditabranda” no Brasil (em outro texto, para esta mesma coluna, tratei do homus stupidus stupidus como o produto final dessa “revolução cultural”).
A tarefa dos “revolucionários culturais” foi facilitada no Brasil pela ausência de uma cultura democrática, pelo déficit educacional e por preconceitos enraizados na sociedade brasileira. Os preconceitos não surgiram agora, mas o dique de contenção normativo (ético, jurídico, epistemológico etc) foi aberto. Também o medo de perder privilégios (alguns, existentes apenas no plano imaginário) facilitou a transformação de pessoas comuns em defensores da barbárie. Um dos efeitos dessa “revolução” é o desaparecimento de qualquer sinal de solidariedade de classe ou de respeito à diferença. O outro é reduzido às imagens do “concorrente” ou do “inimigo”. Aumentam os atos de racismo e de machismo. O ódio vira mercadoria tanto nas redes sociais e nas ruas. A ode à ignorância substitui a vontade de saber.
É preciso, portanto, frear esse movimento de reafirmação do que há de pior na sociedade brasileira. Para tanto, uma nova visão de mundo precisa ser produzida. Não é fácil, mas em um país que conta com Fernanda Montenegro e Paulo Betti, Elza Soares e Chico Cesar, Zélia Duncan e Caetano Veloso, Tereza Cristina e Chico Buarque, Elisa Lucinda e Emicida, Alice Ruiz e Mano Brown, em meio a tanta gente espetacular que a verdadeira cultura popular produz, está longe de ser uma missão impossível.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano