Respirar, desejar, amar e viver

Respirar, desejar, amar e viver

A luta contra normas que restringem as condições básicas da própria vida

Patrícia Porchat

Judith Butler, professora do Rhetoric Department da Universidade da Califórnia, em Berkeley, é hoje conhecida como uma das principais teóricas nas áreas de gênero e sexualidade. Auto-intitula-se uma filósofa feminista e aceita ser identificada como teórica queer, desde que a teoria queer seja compreendida como uma teoria que se opõe a todas as demandas de identidade. Como, então, ser “filósofa feminista” e, ao mesmo tempo, opor-se a demandas de identidade? O movimento queer, na visão de Butler, diz respeito a poder se engajar em diferentes ativismos, sem a necessidade de um marcador de identidade para a participação política. Nesse sentido, Butler se engaja na militância feminista, na militância homossexual, na militância transsexual e na militância dos intersexo. Luta contra normas que, segundo ela, restringem as condições básicas da própria vida: respirar, desejar, amar e viver. 

Além de gênero e sexualidade, sua área de atuação abrange a teoria feminista, a psicanálise, a filosofia judaica, a ética, a política, além da filosofia continental dos séculos 19 e 20. Fez seu doutorado em Yale, em 1984, sobre o conceito de desejo na Fenomenologia do Espírito, de Georg Hegel, e nas apropriações desse conceito pela filosofia francesa. Até aquele ano, sua formação filosófica se concentrou em estudos sobre Karl Marx, Hegel, Martin Heidegger, Soren Kierkegaard, Maurice Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre e a Escola de Frankfurt, sem contar a leitura de Baruch Spinoza que a acompanha desde a adolescência. Aos poucos, tomou contato com a obra de Jacques Derrida e Michel Foucault e, ao sair de Yale, incorporou cada vez mais as teorias francesas, ao ponto de incluir um capítulo sobre Gilles Deleuze, Jacques Lacan e Foucault na revisão de seu doutorado para a publicação, em 1987.

Butler tem uma maneira peculiar de escrever. Cita diversos autores e invoca muitos conceitos de uma maneira que foge, talvez, ao rigor esperado de uma filósofa, o que lhe vale muitas críticas e alguns inimigos. Para ela, não se trata de uma filosofia nos moldes tradicionais. Trata-se de questionar o que a própria filosofia pode alcançar, que lugar tem junto a outras disciplinas, como atinge questões contemporâneas relativas à cultura, à política e aos movimentos sociais. Sua filosofia não se separa de sua militância.

Nascida em Cleveland, Ohio, Butler tem atualmente 51 anos. Sua família é oriunda da Hungria e da Rússia e ela se descreve como uma judia com uma herança psíquica de holocausto e vítima possível de violência por questões de gênero e de sexualidade. Sua obra caminha pelos temas do reconhecimento e do que é considerado humano. Em sua época de estudante, passava o dia na biblioteca e, à noite, freqüentava um bar de gays e lésbicas onde drags faziam performances. Em seus textos freqüentemente menciona situações de violência vividas por pessoas, algumas conhecidas suas, que não se enquadram no que ela chama de gêneros “inteligíveis”. “Gêneros inteligíveis” é um termo que cunhou para se referir aos indivíduos que mantêm uma coerência entre sexo, gênero, desejo e prática sexual.

Na esteira de Foucault, Butler situa “gênero” numa dimensão política. Foi a partir da publicação de Gender trouble, em 1990 (lançado no Brasil somente em 2003, como Problemas de gênero, pela Editora Civilização Brasileira), que Butler se tornou conhecida. Ela pretendeu mostrar que o gênero, pensado em sua estrutura binária estável é efeito de um poder invisível que o cria e o mantém. A idéia de uma coerência da identidade de gênero é desconstruída com base em duas questões: em primeiro lugar, a de que não há uma essência ou substância por trás do gênero. Em segundo, a de que se tomarmos figuras como transsexuais, intersexos, homossexuais, transgêneros e drags para refletir sobre questões de gênero, em vez de homens e mulheres, vemos se deslocar o problema da adequação a um ideal normativo, que exclui os indivíduos inadequados e os confina como “patológicos”, para um outro problema: o da definição do que é humano e de seu reconhecimento. Existe um perigo ao se definir o que é humano, diz Butler, pois a construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais ou menos “humano”, o inumano, o humanamente inconcebível. Butler tem um objetivo claro ao usar o conceito de gênero: quer dar conta do “abjeto”, termo que toma emprestado a Julia Kristeva. Trata-se de uma atitude política, de dar direito de cidadania ao inabitável, ao “invivível”, ao Outro que virou “merda”.

Butler propõe a idéia de que gênero é um ato intencional e performativo. São palavras ou gestos que, ao serem expressos, criam uma realidade. Esses atos, repetidos de uma forma estilizada, produzem um efeito ontológico, levam a crer na existência de seres homens e seres mulheres. Produzem uma ilusão de substância. Não há “ser”, não há um “fazedor”, não há um “agente” por trás do ato, não há unidade. O caráter ilusório do gênero é denunciado quando ocorre uma incapacidade de repetir, uma deformidade ou quando se trata de uma repetição parodística. Os gêneros são performances sociais. Não há originais e nem cópias. A aparente cópia não se explicaria com referência a uma origem. A origem perde o sentido porque o “homem” e a “mulher” de “verdade” têm de assumir o gênero da mesma forma: por intermédio da reiteração de atos. Através da idéia de “performatividade”, gêneros dominantes e não-dominantes (os que não se enquadram como “gêneros inteligíveis”) se encontram no mesmo patamar. Desfaz-se a necessidade de coerência interna às identidades sexuais e da classificação dessas identidades segundo graus de normalidade e patologia. Não há seres mais verdadeiros ou mais patológicos do que outros por se aproximarem ou se distanciarem de um ideal, seja anatômico, seja psicossocial.

Logo após a publicação de Problemas de gênero, Butler foi acusada de pressupor intencionalidade e voluntarismo na construção de gênero e de tomar as drag queens como paradigma da subversão de gênero. A denúncia de gênero como ilusão de substância, na interpretação de muitos de seus leitores, chegaria ao grau máximo com a paródia. Essa interpretação foi motivo tanto de sua enorme aceitação como de sua recusa em meios acadêmicos e militantes.

Em Bodies that matter (1993), seu livro seguinte, e mesmo em Undoing gender (2004), Butler se vê na necessidade de desfazer o equívoco. Esclarece que o potencial de subversão das paródias tem limites. Se em determinados contextos são disruptivas e perturbadoras, também podem ser incorporadas­ ­pela hegemonia cultural e difundidas de forma controlada. Para fazer frente ao poder, Butler considera que os efeitos incalculáveis da ação são uma parte de sua promessa subversiva, tanto quanto o são os efeitos planejados de antemão. Mas é na incapacidade da repetição ou na falha da repetição dos atos performativos que se encontra a abertura maior para a subversão de gênero.

A partir do lugar teórico que concede ao “corpo”, que excede as intenções do sujeito, pode-se compreender as possibilidades de transformação dos mandatos de gênero e das normas de produção de corpos-homens e corpos-mulheres. O corpo não acata completamente as normas que impõem sua materialização. Nesse sentido, o corpo resiste tanto às intenções do sujeito quanto às normas sociais. Butler admite que, até certo ponto, “somos dirigidos por aquilo que não conhecemos e não podemos conhecer e esta pulsão Trieb é precisamente o que não se reduz à biologia e nem à cultura, mas sempre o lugar de sua densa convergência” (2004, p.15). Butler abre espaço para a transformação individual e, conseqüentemente, social, quando diz que as normas não exercem um controle definitivo, ao menos não sempre. A psicanálise é invocada como uma teoria que mostra de que maneira a sexualidade falha em se conformar às normas sociais pelas quais ela é regulada.

Mas existe uma tensão em sua obra, que se revela ao tentar estabelecer uma ­ponte entre as teorias de gênero e a psicanálise. Butler tem dificuldade em conjugar intencionalidade e performatividade. Recebe críticas de feministas que temem justamente a perda da “agência”/atuação, pois com a performatividade, perde-se a noção de sujeito como um centro interior e organizador do gênero. Também se torna alvo fácil de críticas por parte de psicanalistas se em sua concepção de gênero predominar a idéia de um ato intencional.  Não quer abandonar a militância, mas tampouco ser ingênua em relação às descobertas psicanalíticas acerca da idéia de sermos dirigidos por algo que não conhecemos e não podemos conhecer, a não ser parcialmente. A pulsão não deve tornar-se obstáculo para uma ação política em defesa do abjeto.

Apesar de flertar com a psicanálise ao longo de sua obra, Butler questiona as noções de “simbólico”, “diferença sexual” e parentesco da psicanálise lacaniana, freqüentemente convocada para instrumentalizar as ações e decisões jurídicas nas reivindicações de legalização da união homossexual na França. Butler quis mostrar uma realidade mais complexa, discutindo a idéia de parentesco homossexual. Dessa forma, chegou ao questionamento da concepção de parentesco em Claude Lévi-Strauss e sua influência sobre a psicanálise. O pós-estruturalismo de Butler recusa as tentativas de totalização e universalização das explicações do parentesco, assim como a presença de oposições estruturais binárias operando de modo a organizar e, com isso, fazer desaparecer as ambigüidades e as nuances existentes nas relações humanas e na cultura de modo geral. Ela parece querer sugerir que a psicanálise estruturalista corre o risco de ser uma teoria que mantém o gênero em sua estrutura binária, reproduz de forma acrítica os regimes de poder que regulam gênero, sem se mostrar atenta às demais formas humanas e ao seu reconhecimento. A proposta de Butler à psicanálise é a de que esta repense sua noção de cultura a partir dos novos parentescos e dos novos arranjos sexuais.

Butler recusa uma concepção de Édipo clássica, baseada na via da identificação. Mas ao dirigir sua crítica a Sigmund Freud, Lacan e Lévi-Strauss, simultaneamente, move-se para uma posição de enfrentamento generalizado da psicanálise e incorre no risco de perda de parcerias, inclusive políticas. Talvez por consideração de seus interlocutores possíveis, na questão da união homossexual, manteve sua crítica no plano das problematizações dirigidas a Freud e a um Lacan dos anos 1950, que, naquele momento, incorporava a noção de inconsciente, via Lévi-Strauss, e desenvolvia o “simbólico” na esteira do estruturalismo. Butler não investiga as possíveis conseqüências do fato de que, na construção lacaniana, nos anos 1970, o “real” passa a ter precedência sobre o “simbólico”.  De fato, pode-se dizer que mesmo entre os psicanalistas, muitos ainda não o fizeram e, nesse sentido, contribuem para manter em suspenso a possibilidade de conceber um “simbólico” que, nas palavras de Butler, dê conta da complexidade de gênero em que sempre vivemos e permita àqueles que entendem seu gênero e seu desejo como não normativos possam viver e prosperar sem a ameaça de violência do mundo externo e sem o sentido de sua própria irrealidade, que pode levar ao suicídio ou a uma vida suicida (Butler, 2004, p. 219).

Vale ainda lembrar que Butler também tem escrito sobre questões éticas e políticas, como a do uso da violência pelos Estados Unidos como resposta aos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, assim como a do direito e responsabilidade de criticar as injustiças cometidas por Israel tanto quanto o anti-semitismo. Esses são temas de Precarious life: The powers of mourning and violence (2004).

Patrícia Porchat
é professora da Unip, autora de Freud e o teste de realidade

Deixe o seu comentário

TV Cult