O republicanismo de Rui Costa em questão

O republicanismo de Rui Costa em questão
(Foto: Joédson Alves/AB)

 

Farinha pouca, meu pirão primeiro? Se não há filé para todos, garante-se primeiro o da família?

Lembro-me bem quando, em 2009, um Sarney impressionado com a repercussão da nomeação de um ex-namorado da neta para um cargo no Senado confronta o jornalista que o entrevistava com surpreendente candura: “Se a sua netinha lhe pedir um favor, você vai negar?”.

Dez anos depois, em 2019, coube a Jair Bolsonaro, no episódio da tentativa de indicação de Eduardo ao cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos, lapidar em duas sentenças o neonepotismo da nova política. “Se eu puder dar o filé mignon para o meu filho, eu dou”, disse. E completou: “É filho meu, pretendo beneficiar, sim”.

Pois bem, o governo Lula está vivendo o seu primeiro dilema relacionado ao princípio patrimonialista “minha família primeiro, a República que espere na fila”, cuja solução encaminhada até agora em nada difere do que fizeram Sarney e Bolsonaro.

Há um cargo vago para conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia e a esposa de Rui Costa, ex-governador da Bahia e homem forte do governo Lula, é a candidata da situação e, portanto, a favorita à eleição pela Assembleia Legislativa. Uma candidatura que foi bancada, articulada e promovida pelo marido, ministro da Casa Civil.

Pelo visto, não havendo cargos nem filés para todo mundo, então vamos garantir pelo menos o da família: é sua esposa e pretende beneficiá-la, sim. Essa é a mensagem, tão familiar aos maus costumes patrimonialistas, da Bahia Colônia à época de ouro do carlismo, e que acaba de ser reapresentada dessa vez pelo Partido dos Trabalhadores.

“Vou negar ao namorado da minha neta, ao meu filho ou à minha esposa um filé mignon?”, indaga em coro a longa linhagem do vergonhoso patrimonialismo brasileiro.

Claro, todos sabemos que, se forem procurar por genitores, esposos e outros parentes de políticos nos bem remunerados cargos vitalícios dos tribunais de conta do país, os encontraremos aos montes. E, considerando apenas este governo que inicia, a mulher de Rui Costa seria tão somente a terceira esposa de ministro a assumir um cargo num desses tribunais. Temos um camarote VIP reservado apenas para esposas de altos dignitários, ao que parece.

Em todos esses casos de “cargos poucos, minha família primeiro”, as justificativas se apoiam sempre em dois argumentos. O primeiro diz que o membro da família a gozar do privilégio é, na verdade, dotado de alta competência e que, portanto, não seria justo que o vínculo ao político-parente lhe retirasse uma oportunidade e um direito.

O argumento é normativamente fraco, uma vez que, se o admitíssemos, os esposos, os filhos e os pais de mandatários com grande poder político passariam a gozar de injustas vantagens competitivas diante de outros cidadãos. O que viola frontalmente a norma da igualdade política, essencial à democracia liberal. Por isso o nepotismo é proibido. Ou todos são politicamente iguais, inclusive nas oportunidades de acesso a funções públicas, ou isto não é uma República.

Além disso, o argumento é empiricamente inaceitável: a esposa de Rui Costa é enfermeira, o que lhe daria competências especiais para funções tão complexas e méritos particulares para desfrutar de cargo de remuneração semelhante ao de ministros da Suprema Corte, além de ser casada com o ex-governador?

O segundo argumento é do mais puro realismo político: “todos fazem isso, por que só eu não posso?”.

Este argumento é inaceitável por três razões.

Antes de tudo, é inaceitável de uma perspectiva moral. São valores republicanos a transparência pública, a impessoalidade, a honestidade, a convicção de que o Estado pertence aos cidadãos, seus soberanos, e não aos detentores de mandatos. Não há um único valor republicano que se possa apresentar em defesa do privilégio concedido ao esposo de um governante no acesso a um cargo público, ainda mais a um cargo desta natureza.

Em segundo lugar, o fato é inaceitável do ponto de vista dos compromissos de honra que o governo Lula assumiu com a sociedade brasileira. E Lula assumiu inequivocamente alguns compromissos desta natureza quando saiu pedindo aos brasileiros uma oportunidade para voltar à Presidência da República em um país cindido ao meio, em que parte considerável da maioria que não queria Bolsonaro era reticente quanto a permitir o retorno do PT ao Governo Federal. Um desses compromissos – implícito, mas nem por isso menos solene e importante – foi certamente o de restaurar os bons modos republicanos da Administração Pública depois que a canalha bolsonarista transformou a República num cabaré.

E, de fato, foi assim. Nos anos Bolsonaro, patrimonialismo correu solto, interesses privados do governante e de sua gangue demitiram e contrataram, criaram e destruíram no Setor Público, conforme os fluxos da sua conveniência; o princípio “os meus garotos primeiro” costurou conluios, impôs sigilos centenários, barganhou cargos em troca de proteção; por fim, a rachadinha, a corrupção e a advocacia de interesses privados na Administração Pública se tornaram rotina numa Presidência sem apetite para governar, mas voraz no que se refere ao favorecimento da família e a torrar a grana pública em cartões corporativos.

Mas o que tem a Bahia a ver com o Brasil e por que isso afetaria o novo governo? Ora, Rui Costa não é um peão qualquer no novo governo. Foi escolhido como o superpoderoso chefe da Casa Civil justamente para representar a cara do novo governo em face das instituições da política e da opinião pública. E trouxe no seu patrimônio a Bahia como estado-vitrine que se manteve bozo-free durante a longa noite que convulsionou e degradou o país nos últimos sete anos.

Rui Costa, portanto, faz parte do compromisso de honra assumido por Lula de deixar no passado o nepotismo bolsonarista e reconstruir em bases republicanas o governo do país. Como pode, logo ele, ser protagonista da mais vergonhosa das sarneyzadas já no terceiro mês do governo?

Em terceiro lugar, se esse fato vier a se concretizar, será o mais completo desastre político em termos estratégicos. Como o chefe da Casa Civil poderá ter moral para bater o pé em defesa de padrões republicanos na negociação com os interesses claramente patrimonialistas e clientelistas dessa nova legislatura no Congresso Nacional, sendo que ele próprio partiu de uma violação do padrão republicano em benefício de sua própria casa?

“Esse moço aí, enchendo a boca para falar de República, moralidade pública, interesse da sociedade e impessoalidade, é o mesmo que colocou a esposa enfermeira num tribunal de contas na Bahia, num cargo vitalício e com salário de mais de 40 mil mensais?”, dirão. Alterando o ditado, eu diria que o papel que Rui Costa exerce no Governo Federal exige não só que ele fale republicanamente: ele precisa ser republicano. O que não será o caso, se o previsível acontecer.

Pessoalmente, vou manter até a próxima semana a dúvida sobre se Rui Costa vê ou não algum problema em violar um padrão republicano para favorecer a sua própria família, e, pensem nisto, a um ponto que nem Bolsonaro chegou com a nomeação do próprio filho.

Há ainda tempo de voltar atrás. Não me parece possível que alguém da linha de frente de um governo de reconstrução dos bons modos republicanos no Estado brasileiro queira comprometer a própria biografia e o próprio governo por um cargo e um contracheque. Afinal, esse será um Rubicão que, uma vez ultrapassado, muda, se não a natureza, pelo menos a qualificação moral dos envolvidos.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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