A República dos medíocres: a ARENA entre nós

A República dos medíocres: a ARENA entre nós
(Arte Revista CULT)

 

Ao longo da década de 80 vários países sul-americanos atravessaram uma difícil transição política. Conhecida como a abertura democrática, países como Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Paraguai, e o Brasil articulavam, de diferentes maneiras, formas de deixar para trás a dolorosa experiência das ditaduras militares e reconstruir suas instituições políticas sob o manto da democracia liberal.

O caminho trilhado por cada nação foi definido pelas dinâmicas internas a cada regime militar, assim como pela sociedade civil organizada em cada caso específico. O Chile percorreu a transição mais lenta e controlada, pelo menos até recentemente. E os eternos hermanos do sul, ou Argentinos, sem dúvida, foram os mais corajosos ao enfrentar, desde o início do regime civil, de frente as atrocidades cometidas pela Guerra Suja imposta pelos seus generais ao seu próprio povo.

Sempre acomodatistas, as elites brasileiras, civis e militares, mais uma vez, encontraram uma forma bastante eclética e inovadora para transferir o mando político da nação das mãos dos generais de farda para os coronéis de terno. Adentramos a década sob a tutela de uma abertura lenta, gradual e segura, pautada portanto pelo temor de não balançar o coreto e pela necessidade, imposta do alto mas partilhada nas bases, de olhar pra frente.

Fazendo jus à nossa transição de mudanças negociadas – fomos a única nação do mundo que indenizou a metrópole pelas perdas com a nossa independência – criamos a jaboticaba de uma anista ampla e irrestrita, onde torturadores confessos ficavam imunes a qualquer possibilidade de punição, então e no futuro. Pior, como fizemos com os registros históricos da escravidão, apagamos os crimes do passado ao dizer que não deveríamos saber o que houve, que era melhor seguir adiante. Ora, pergunte a qualquer exorcista, quando os fantasmas do passado não são enfrentados de frente, continuarão a nos atormentar.

De fato, nunca tivemos coragem para dar início a um processo efetivo de investigação sobre os crimes do mais longo e tenebroso período de repressão militar de nossa história. Pelo contrário, contrariando os exorcistas de plantão, sempre preferimos crer que, por si só, tais eventos se dissolveriam no ar da democracia.

Preferimos nos encantar com as canções da transição, entoadas nos comício das Diretas, a compreender que sem um efetivo desmonte dos aparatos repressivos, e mais, da própria lógica da ditadura, estes continuariam entre nós, nos afetando, nos aprisionando, nos torturando para sempre. Essa lógica, perversa e destrutiva, se expressa perfeitamente no seguinte caso, quando, ao saber do sumiço de um vizinho em meio aos tais anos de chumbo, a dona de casa de classe média baixa preferia crer que a vítima era de fato a perpetradora de algo criminoso, consagrando tal entendimento na frase, tão comum até os dias de hoje, “se foi preso, algo fez por merecer”.

Além de um regime onde as vítimas eram vistas, não só pelo Estado, mas também pelos cidadãos de bem, perpetuadores não inocentes do sistema, como culpadas de algo, vivíamos também o perfeito regime dos medíocres no poder. Sim, tivemos tecnocratas qualificados nos gabinetes, algo que hoje parece até mesmo uma tenebrosa utopia, mas, em geral, quem azeitava as engrenagens de tudo, no dia a dia, eram os medíocres que ocupavam as vagas de prefeitos, vereadores, delegados, promotores e juízes do Brasil profundo. Tais operadores, tão úteis então como agora, eram os verdadeiros sustentáculos de um regime, mas acima de tudo, de uma lógica social e política autoritária, oligarca, racista, machista e truculenta.

Herdeiros disso tudo, ao longo da nossa vergonhosa transição, enquanto os holofotes focavam nas grandes articulações palacianas, pacotes econômicos heterodoxos, novos movimentos culturais nas grandes cidades etc, os valores autoritários que deram sustentação ao regime empresarial-militar de 1964 continuavam ferrenhamente presentes no tecido social das mais diversas parcelas da nossa população.

Que os militares continuassem a promover essa visão de mundo reacionária não é surpreendente para uma organização que, apesar de algumas mudanças formais, nunca teve, de fato, que rever seus valores. Que outros segmentos do Estado também a tenham mantido, ou mesmo cultivado, como o judiciário, tampouco surpreende, dada sua trajetória histórica oligarca e elitista. Que, mais recentemente, tais valores tenham sido fomentados por igrejas evangélicas reflete bem sua trajetória nas periferias das grandes cidades desde os anos 1980 até hoje, lucrando com o desespero dos mais fracos.

No parlamento, talvez a instituição mais permeável a mudanças e a refletir os novos caminhos percorridos pela sociedade civil, talvez fosse o caso de se esperar mais avanços. Foi aí que conseguimos escrever uma nova, corajosa e ambiciosa Constituição, refletindo o que de bom tivemos em nossa transição, a ativação, sem paralelos, dos movimentos sociais organizados.

Mas apesar dessas irrefutáveis conquistas formais, o fato é que nossas melhores inovações legais tiveram sempre muita dificuldade em serem implementadas. Além disso, subsumidos em um Congresso excessivamente numeroso, onde grandes debates tinham assento, mas também negociações clientelistas típicas de uma sociedade profundamente desigual e de mentalidade autoritária, continuávamos a ter um tal baixo clero perfeitamente mantenedor do sustentáculo provido pela ARENA no Congresso dos anos ditatoriais.

Conjuntamente com outra grande herança do regime militar, as milícias urbanas, esse baixo clero, liderado pelo seu guru máximo e viúva explícita da ditadura, JMB, se encontra também muito bem representado por figuras políticas como Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil. Na mesma direção, a lógica dos homens medíocres pauta hoje mesmo instituições vistas até então como centros de excelência, como o Itamaraty, e ministérios chave como o da Justiça e da Economia. Consagrando com chave de ouro, as duas casas parlamentares serão também comandadas por verdadeiros representantes do saudosismo da ditadura, qual sejam os membros do partido verdadeiramente herdeiro da mesma, o DEM.

Teremos assim, após uma das maiores manifestações eleitorais da história, um país comandado, em quase todas suas instituições, por perfeitas vivandeiras dos anos de chumbo. Teremos, pois, um presidente e seu vice que defendem abertamente torturadores, um ministro da Justiça defensor da aplicação da Justiça de forma vingativa e seletiva, um ministro da economia que assume o trabalhador como inimigo da nação, um ministro da educação defensor de um menor acesso ao ensino, e uma ministra dos direitos humanos que os vê como invencionice perigosa de subversivos pervertidos.

Após 30 anos de nossa Constituição Cidadã, chegamos a uma realidade distópica que faz jus à mediocridade da ditadura, sempre castradora de talentos e repressora de inovações. Efetivamente, nem mesmo os generais mais linha dura, como Costa e Silva e Médici, também medíocres e ideológicos como os atuais mandantes do país, teriam conseguido uma realidade tão perfeitamente tradutora dos nossos mais incrustados valores como a maior sociedade escravocrata da história.

Tais valores, tão arraigados e generalizados entre nós, talvez nem mesmo os melhores exorcistas consigam dar conta. Sem tentar enfrentá-los, contudo, é certo que jamais os eliminaremos do nosso meio, conforme o quadro atual demonstra de forma nítida e dolorosa.


Rafael R. Ioris é professor de história da Universidade de Denver.

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