A República contra-ataca

A República contra-ataca

 

Caros leitores do site da Cult, esta é a ducentésima coluna que publico neste espaço. Sim, são já 200 semanas por aqui. Não poderia deixar de agradecer a todos vocês que me aguentaram e me fizeram companhia por mais de quatro anos, justamente os quatro mais difíceis anos desde a redemocratização do país. Espero lhes ter ajudado a entender o tamanho da encrenca que é a política nacional, ao mesmo tempo em que confesso que o esforço sistemático de fazer uma coluna semanal me ajudou a observar com mais atenção e independência o experimento político chamado Brasil. Muito obrigado a todos.

Feito o registro, vamos ao destaque da semana política.

Nesta semana, o ministro Alexandre de Moraes tomou posse do cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral e a cerimônia de sua posse foi o ato político mais concorrido do ano. Estavam lá os chefes de todos os Poderes da República, o procurador-geral, os ex-presidentes Sarney, Lula, Temer e Dilma Rousseff, sentados, por incrível que pareça, lado a lado, 22 governadores, quase cinquenta embaixadores. Em suma, foi por uma hora uma assembleia do centro do poder político-institucional brasileiro.

Certamente, meu amigo, nem você nem eu imaginaríamos, em 2017, que aquele ministro indicado por Temer viria a ser um dos homens mais temidos, odiados e cortejados da República neste ano eleitoral e do Senhor de 2022. E cuja imagem é tão distinta para os diversos públicos que até parece não se tratar da mesma pessoa.

De fato, para os bolsonaristas, como o dizem explicitamente, o homem é o carrasco da democracia brasileira, um liberticida que se move com particular sanha contra a liberdade de expressão da extrema-direita, um violador do devido processo legal, um ditador de toga que quer prevalecer sobre os desejos e intenções do presidente eleito da República. Por outro lado, para a multidão dos apavorados com a fúria antidemocrática de Bolsonaro e da ponta de lança do bolsonarismo, entre angustiados com esse inverno de quatro anos que custa a passar e temerosos com o que acontecerá com a nossa jovem democracia em outubro, Moraes tem representado algum alívio.

Os sitiados pelos grandes cartéis de fabricação e tráfico de fake news, teorias da conspiração, discurso de ódio e sedição contra os outros Poderes da República, os que assistem impotente ao moto-contínuo das usinas de golpes e ameaças de desrespeito ao resultado das urnas, esses têm no ministro com cara de bruxo de Harry Potter a última reserva de força capaz de enfrentar os comensais da morte que tomaram o Poder Executivo, pelo voto, e compraram o Poder Legislativo federal, por meio de orçamentos secretos e outras práticas inconfessáveis.

A cerimônia da posse de Moraes só pode ser bem compreendida por contraste com outra reunião, acontecida há algumas semanas. Aquela em que Bolsonaro convocou embaixadores ao Palácio para atacar o coração da Justiça Eleitoral. Na ocasião, o presidente disse com todas as letras que não há eleições limpas no Brasil, e que as urnas eleitorais não apenas são fraudulentas como têm sido sistematicamente operadas contra ele. Isso sem qualquer prova, baseado apenas no seu poder de difamar autoridades, mentir sobre o processo eleitoral e desacreditar as eleições vindouras sem sofrer as punições cabíveis em uma República plenamente funcional.

A única função prática que se pode imaginar daquele ato foi a construção de uma base de alegações para um desfecho em outubro em que o desrespeito do resultado das urnas só poderia caso o presidente perca a eleição.

Pois bem, esta semana fez-se da cerimônia de posse de Alexandre de Moraes no cargo de maior autoridade eleitoral do país um desafio à ameaça bolsonariana e uma demonstração de força. Força tanto do TSE quanto da República que acorreu em peso à convocação do ministro. De fato, para juntar Temer e Dilma no mesmo recinto só mesmo um apelo republicano a algo que está em jogo e que é muito maior que os ressentimentos políticos. Mesmo os mais profundos.

Para que praticamente todo mundo que conta no Estado brasileiro tivesse parado tudo para ir assistir a uma posse banal em um cargo rotativo de presidente do TSE, só mesmo a percepção de que nada havia de propriamente banal naquele ato específico e nas atuais circunstâncias, que era preciso estabelecer uma nova linha de frente na guerra entre a democracia que se quer preservar e quem ameaça tomar o poder na marra se o resultado das eleições não lhe entregar o que deseja.

Assim, mesmo o presidente da República se viu forçado a ir à cerimônia, posto ante o dilema de ter que engolir uns sapos a assumir o custo de bancar uma ruptura com a Justiça Eleitoral às vésperas das eleições mais decisivas que teremos desde a redemocratização. Ele foi. Constrangido, parecia atado, impotente, à cadeira que lhe deram ao lado dos presidentes (e inimigos) do TSE e do STF, enquanto um auditório francamente hostil aplaudia o ainda mais hostil discurso de posse de Alexandre de Moraes.

Que, na verdade, disse tão somente o básico da vida republicana: que a liberdade de voto é base da democracia, que a liberdade de voto depende de informações honestas que permitam aos cidadãos tomar decisões bem-informadas, que informações honestas não são compatíveis com fake news e, por fim, que fake news não podem estar ao abrigo do direito à liberdade de expressão. E acrescentou que as urnas eletrônicas, como sabem até as emas de Brasília, são um instrumento sólido e confiável e um orgulho da nação. Esse bê-á-bá republicano, contudo, a julgar pelas caretas e pelo sorriso amarelo, deve ter entrado como ferro em brasa nos ouvidos do torturado presidente da República.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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