Reorganizar a emancipação

Reorganizar a emancipação

Eduardo Socha

Seria impossível compreender as origens do brio revolucionário que circulava no ano de 1968 sem olhar detidamente para o quadro teórico da produção universitária no período. Circunstâncias políticas e sociais, relativamente exteriores ao ambiente acadêmico, certamente prepararam o bojo histórico necessário para a irrupção de um sentimento generalizado de inconformismo, levando estudantes e operários a ocuparem as ruas. No entanto, é preciso reconhecer que o substrato teórico capaz de impulsionar esse desejo de emancipação veio, em sua maioria, do contato com as idéias radicais de pensadores do meio universitário. É nesse sentido que poderemos entender como o nome de Herbert Marcuse (1898-1979) permaneceu tão ligado aos movimentos de 1968, a ponto de constituir um dos “3 M de 68” (ao lado de Marx e Mao) aos quais as inúmeras pichações nos muros de Paris e Berlim faziam referência.

A força disruptiva de seu pensamento, o engajamento político e a presença carismática como professor da Universidade de San Diego (Califórnia) tornaram o filósofo alemão uma das figuras mais citadas e conhecidas nos EUA, na Europa e também no Brasil. Que isso não nos iluda, porém, quanto à justa apreensão de suas idéias. Como lembra Jorge Coelho Soares, que participa deste dossiê, Marcuse virou “mercadoria de grande aceitação” no mercado dos bens simbólicos. O autor de Eros e Civilização, tomado por ideólogo da sociedade não-repressiva, converteu-se assim numa espécie de alusão prêt-à-porter para todo arroubo revolucionário caótico e para qualquer elogio ao irracionalismo. Na realidade, falava-se muito, lia-se pouco. O frisson marcuseano dos anos 60 e 70, assim como o brio revolucionário correspondente, acabou dando lugar, enfim, a uma certa negligência comedida nos anos 80. No próprio meio universitário, o pensamento pós-estruturalista e a segunda geração da Escola de Frankfurt assumiriam, por assim dizer, os postos de “teorias da moda” da filosofia continental.

Para além do Marcuse datado e reduzido a “filósofo da moda”, o dossiê desta edição procura esclarecer diversos aspectos de sua obra que lhe asseguram uma vigorosa pertinência intelectual nos debates contemporâneos. Questões ligadas à ecologia, à relação entre tecnologia ciência e política, à alienação do consumo, ao lugar privilegiado da arte, às políticas concretas de emancipação coletiva, e mesmo à crítica do marxismo soviético sempre fizeram parte do horizonte teórico de Marcuse, o que torna a releitura (ou ainda, a leitura) de sua obra mais do que necessária.

CULT convidou alguns dos principais especialistas brasileiros para introduzir, portanto, os tópicos fundamentais do pensamento marcuseano. Wolfgang Leo Maar oferece um resumo das motivações políticas do filósofo, comprometidas com a idéia indissociável de democracia e revolução; Robespierre de Oliveira fala sobre a releitura marcuseana da história da filosofia, visando à formação essencial da Teoria Crítica; Jorge Coelho Soares faz um balanço das diversas fases da recepção da obra de Marcuse no Brasil; Rodrigo Duarte mostra a evolução das suas reflexões na arte e na cultura; Marília Pisani sintetiza a crítica à razão instrumental e à pretensa   neutralidade do desenvolvimento científico e tecnológico. A interação dessas diferentes perspectivas poderá contribuir, assim, para uma análise mais ampla das experiências de 1968 e, sobretudo, para o reconhecimento das tarefas mais urgentes que os atuais desafios políticos nos impõem.

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