Religião como crítica: a hipótese de Deus

Religião como crítica: a hipótese de Deus

Luiz Felipe Pondé

A cotidianeidade social cria uma ética do medo, ao converter a angústia, provocada pelo abismo transcendente, em uma ansiedade banal e (…). Mas ela cria também um fenômeno novo, no qual o medo está ausente e que lhe é mesmo claramente inferior: a  banalidade. Seu perigo  toma de surpresa inevitavelmente o mundo banal, e quando este é atingido, a  liberação do pavor não se realiza por um movimento para o alto, mas sim como queda. A banalidade marca uma instalação definitiva na região inferior, onde não somente a nostalgia de um mundo supremo e a angústia sagrada diante do transcendente não existem mais, mas onde o  próprio medo falta. A montanha desaparece do horizonte para sempre, deixando somente uma superfície infinita. A banalidade dissimula o trágico e a angústia da vida; nela, a cotidianeidade social, cuja origem remonta ao pecado, perde a lembrança dessa origem. Ela é plenamente satisfeita e goza da superfície do não-ser; ela marca uma rejeição definitiva na superfície, uma cisão radical com o substrato do ser, o terror de qualquer retorno a uma profundidade. (…). A liberação compreendida comum alívio de todo o fardo da vida, como obtenção do contentamento, engendra inevitavelmente a vitória da banalidade, pois dela resulta um abandono da profundidade e  da originalidade, em favor do aburguesamento.
Nicolas BERDIAEV
De la Destination de l’Homme – Essai  d’étique paradoxale
L’Age de d’Homme, Lausanne, pgs. 232/234.

A crítica “óbvia” do XIX
O século XIX marcou profundamente o entendimento que hoje temos da religião. Esse entendimento se caracteriza por uma suposta atitude crítica que teria, finalmente, levado a religião para um lugar no qual não mais produziria nada em termos de valor cognitivo. Religião como ópio, alienação, forma dissimulada de hierarquia política, ressentimento dos fracos, projeção da figura paterna ou daquilo que de “melhor” existe no ser humano – projeção essa que teria como desdobramento a perda da capacidade de atuar esse “melhor” pelo fato de colocá-lo fora de si –, enfim, como um modo de funcionamento marcado pela carência noética. Em uma palavra, sintoma psicológico, social, moral, econômico ou político. Arriscaria dizer que, mesmo entre muitos intelectuais que hoje se dedicam à atividade de “cientificamente” compreender a religião, esse  diagnóstico se mantém. No que se refere ao dito senso comum, o fenômeno religioso cresce – fala-se num “retorno do religioso”. Tal crítica diria que esse fato se dá porque não teríamos conseguido erradicar suficientemente as causas dessa síndrome indesejável. Penso que essa crítica hoje já atingiu a condição, entre uma certa casta intelectual ilustrada, de uma platitude, ou seja, de uma banalidade “inteligente”. Uma conseqüência direta desse fato, entre outras, é um evidente analfabetismo filosófico-religioso devido ao fato, afinal, de que definir religião como sintoma humano não é um grande diferencial propedêutico, na medida em que o animal humano parece se definir pelo funcionamento sintomático generalizado (o tema da disfunção a priori do ser humano ao qual voltaremos na seqüência). Mesmo a psicologia profunda freudiana atesta esse fato: o homem é um animal doente. Quanto ao pesado resíduo contextual que expulsa a religião de um universo purista platonizante, também não se constitui em um diferencial significativo na medida em que não há no mundo humano nada que não se afogue em alguma espécie de carga contextual. O repouso na suposta evidência dessa crítica leva-nos a uma objetividade duvidosa, na medida em que passa-se a supor (ingenuamente, no mínimo) que o terrorismo cético (esse modo fundamentalista de praticar epistemologia) tem como vítima privilegiada os objetos da religião, “aderindo felizmente” aos demais objetos da cultura humana, o que é um evidente erro de repertório filosófico, erro esse encontrado mesmo entre vários ramos das práticas em ciências e nas atividades intelectuais afins, sendo a própria epistemologia a busca de responder a essa agressão cética feita a condição de agente noético do ser humano.

Entendo que o núcleo duro dessa crítica reside na percepção de que as diversas formas culturalmente instituídas de religião têm como foco unificador a atividade produtora de fantasmagorias (as divindades e suas distintas formas de socorro existencial) que visam acalmar o terror da contingência natural no ser humano – contingência essa materializada nas diversas manifestações  localizadas de infelicidades. Essa definição da “essência” da religião enquanto  sensação e resposta a essa ameaça é partilhada mesmo por grandes estudiosos da religião como Mircea Eliade. Sacrifícios ou liturgias, qualquer modo que seja de praticar religião teria como raiz essa desestruturação existencial profunda causada pela contínua exposição do homem à sensação de fratura ontológica evidente e a necessidade de enfrentá-la. Isso é, em parte, verdade, mas o modo de abordar esse processo é que normalmente é mal colocado: o homem em geral vive sob esse terror, alguns rezam, outros resistem e pensam, outros simplesmente mentem. No meio intelectual, grande parte hoje só mente, ainda que de modo sofisticado.

Uma outra forma de desqualificação da religião, desta feita, mais especificamente, da sua face filosófica, seria a prática teológica enquanto atitude cognitiva naïf:  a submissão da razão à fé e a definição do pensamento religioso como uma espécie de racionalidade interna à dogmática ou como emanação racional desta mesma dogmática. Um exemplo disso é a típica busca de sustentação teórica da existência de Deus. Evidentemente que não pode haver virtú noética no pensamento religioso sem o reconhecimento básico de que Deus não é uma variável passível de controle epistemológico; portanto, parece-me que qualquer tentativa de compreender a validade noética da religião não passará jamais pelo desgaste inútil de uma “prova ontológica” ou, mais na moda atualmente, uma “prova ética quanticamente validada”. Esta, na realidade, é ainda mais miserável noeticamente do que a medieval (refiro-me à  teologia escolástica que “provaria” Deus), na medida em que não passa de simples desconhecimento das estruturas conceituais finas da mecânica quântica, desconhecimento esse que acaba sendo instrumentalizado como modo retórico de manobrar a fragilidade do receptor da mensagem “redentora” via acomodação de restos das ciências naturais duras à agenda teológica auto-ajuda.

Ambas acusações, de agenciadora de fantasmagorias ou de desgaste intelectual em nome dessas mesmas fantasmagorias,  são modos distintos de uma mesma realidade: a religião seria uma forma de wishful naïvité a serviço de uma pragmática rude de sustentação humana diante da agonia essencial. No caso da luta pela prova racional da existência de Deus, essa atitude  instrumental desesperada se localizaria no fato de que Deus seria o argumento sustentador do caráter absoluto desejado por nossas respostas “salvíficas”, enquanto modo de enfrentamento do fracasso ontológico evidente e da violência relativista (e violência relativista implica um alto grau de probabilidade niilista, mesmo se levarmos em conta as ginásticas de um relativismo “benigno”, em favor do “inclusionismo das diferenças”).

Não acho que devamos tomar essas aproximações como termos que esgotam o pensamento religioso. Nem tampouco as ditas manifestações culturais religiosas instituídas são a religião na sua totalidade. Para dialogarmos com o pensamento religioso temos que ouvir o continente intelectual que é esse corpus, e não apenas reduzi-lo ao seu formato mais evidentemente condicionado pelas demandas pragmáticas desesperadas do ser humano. Aliás, contrariamente ao que possa parecer, não aceito a idéia de que seja o pensamento religioso aquele que detém o monopólio do imperativo pragmático de engenharia psico-social da sobrevivência. Penso que, na realidade, todo (pedagogia, psicologia, ciências sociais etc.) o pensamento ocidental vem se preparando para uma virada pragmatizante, virada essa que pode ser tomada ora como pura miséria noética (pensamento rude modelo “auto-ajuda”, “parente próximo” da revolta religiosa contra o naufrágio da existência), ora como manifestação de um certo ceticismo de fundo, às vezes construtivo (dimensão epistemológica consistente do modo pragmático de pensar, que tem um longa tradição, desde os céticos gregos, passando por Montaigne e Bacon, chegando à reflexão utilitarista e epistemológica de viés pragmatizante propriamente dita, essa mais contemporânea).  Resumindo:  o terror é condição geral do ser humano e o modo “medroso” de enfrentá-lo não é necessariamente religioso, muito pelo contrário.

Abandonando o senso comum
Minha hipótese é que compreender a religião (fora do entendimento do senso comum, e repito, a crítica do XIX é senso comum, com todas as características de relaxamento nóetico que a postura do senso comum produz) implica muito conhecer aquilo que esses homens e mulheres produziram como esforço intelectual diante das várias dimensões da existência humana (incluindo aí, e isso é fundamental, toda a história filosófica das controvérsias epistemológicas; por isso, para começo de conversa, compreender o que é religião implica sólida formação epistemológica). A hipótese de que religião é essencialmente alívio da condição humana via instrumentos metafísicos inconsistentes é simplesmente falsa historicamente e filosoficamente. É falsa por no mínimo duas razões: primeiramente porque a realidade noética da religião (grosso modo, filosofia da religião) não pode ser definida como, simplesmente, um corpus constituído por instrumentos inconsistentes de socorro existencial. Só a falta de repertório justifica tal suspeita, senão má fé. Segundo, porque esse traço “instrumental metafísico inconsistente” (a “covardia religiosa”) não é de modo algum monopólio da filosofia da religião; ele é, aliás, habitué dos modos anti-religiosos de esclarecimento filosófico em geral (incluindo aí todas as formas distintas de ciências humanas desejantes) a serviço da chamada emancipação moderna – o humanismo moderno é uma forma de metafísica (ou fantasmática) mitigada, nada há que prove um a priori com relação à viabilidade da espécie humana. Afirmo que a maioria das militâncias contemporâneas em ciências humana é escrava desse a priori  fantasmático: não é outra a razão da recusa contínua de modos de pensar que são supostamente “pessimistas” e indesejáveis, já que causariam uma depressão (na crença emancipatória) facilmente utilizável pela máquina reacionária.

A hipótese de Deus (e suas categorias associadas) não é um mero recurso repressor do terror cosmológico. Ela é, ao contrário, um campo noético de elaboração do pathos essencial do Homem e de seu estatuto de mera dança macabra entre os átomos, dança essa que acaba por lançá-lo à condição de uma referência vazia. O humanismo narcísico moderno (que não  sabe o que fazer com essa angústia) produziu uma das maiores fantasmagorias já existentes, fantasmagoria essa que implica um gigantesco desgaste noético para sustentá-la, desgaste esse que nos coloca o risco de que em breve a condição humana de agente cognitivo seja reduzida à atitude pragmática rude do modelo auto-ajuda disfarçado em discurso pseudoscholar: a “mística” da suficiência ontológica do ser humano (projeto humanista de emancipação) é uma formação reativa ao terror da contingência (esse atavismo humano), e não uma teoria produto de uma base empírica que a verifica – o que a faz irmã do que na religião é tomado pela crítica do XIX como carência noética devido à covardia metafísica. Dito de outra forma: essa fantasmagoria humanista não tem nenhuma virtú noética auto-evidente, trata-se na realidade de uma agenda emancipadora que teme a mesma coisa que o religioso atávico teme: o Homem parece ser ontologicamente uma aporia. Minha hipótese é que o corpus filosófico-religioso é, de certa forma, mais capaz de enfrentar esse pesadelo porque carrega em si uma atividade crítica profunda com relação à condição humana e cosmológica, crítica essa que a maior parte do pensamento não-religioso emancipador não sustenta porque está comprometido com a viabilidade ontológica da existência humana (do contrário se faz niilista, por isso esse espetáculo risível das éticas ao portador atualmente, tentando produzir imperativos categóricos eficientes para recursos humanos…). A hipótese religiosa não é simplesmente a da existência de Deus, mas também um olhar agressivo sobre a crença naïf na viabilidade do Homem que sustenta o lugar de causa suficiente de si mesmo. Como Deus é uma variável sem controle epistemológico, o embate racional não deve se dar no nível da  tentativa vã de sua comprovação, nem no do discurso do que se chama “redenção” ou “salvação” – tentativas essas que alimentam a inconsistente crítica do XIX, e que por isso mesmo geralmente soçobram no mar do pragmatismo rude auto-ajuda –  mas colocando a atividade noética diante do abismo, realizando o caráter escatológico presente na razão humana: não é só Deus que é uma fantasmagoria cognitiva, o Homem como entidade ontológica diferenciada e axis mundi moral também o é, e o pesadelo materialista (para alguns, e não necessariamente só os religiosos, não é outra a razão que leva muitos religiosos a darem as mãos a não-religiosos na ladainha assustada anti-darwinista e contra a  agressividade biotecnológica) está aí para reafirmar essa condição  vaga do ser humano.

A hipótese de Deus implica (historicamente e filosoficamente) um método de Deus, método esse (que resumidamente poderíamos dizer que se trata de uma exegese da existência humana a partir “do ponto de vista de Deus”, como fala Heschel em sua obra The prophets, Perennial Classics) que tende a se reduzir na exata medida em que o corpus em questão cede a acordos propostos pelo terror da contingência, acordos esses que abraçam toda e qual forma de recurso pragmático degradado, pouco importando se acomoda compromissos teológicos ou não. Esse  método se constitui na profunda e (muitas vezes) insuportável crítica que encontramos em grande parte do corpus filosófico-religioso que se abate sobre o conceito de humano e de cosmos natural (ou natureza), isto é, sobre a idéia de suficiência ontológica – alguns autores chamam isso de “crise profética”. Não é por acaso que a teologia mística (esse núcleo duro da religião) tem um momento duramente desconstrutivo da fisiologia antropológica e cosmológica anterior ao instante extático em si, normalmente sendo este segundo instante impossível de se manifestar sem o momento desconstrutivo que lhe condiciona.

Assim sendo, conhecer religião de modo consistente demanda um diálogo com seu corpus de modo não expropriador de seu conteúdo. Para tal, faz-se necessário deixar que suas categorias tenham voz, e não lançar sobre elas pobres esquemas redutores produzidos em áreas que lhe são estrangeiras. Este “teste de consistência noética” se faz na medida em que pensamos a religião a partir de suas próprias categorias (“direito” lógico comum em qualquer área do saber), e mais, à medida em que pensamos o mundo a partir de categorias religiosas, e aí tentamos ver se seu produto é uma fantasmática inconsistente ou um discurso articulado, capaz de criar algum ruído no debate humano (minha tese é de que justamente esse ruído, e não seus projetos redentores, é que é a raiz reativa do consenso analfabeto com relação ao corpus filosófico religioso: esse ruído é insuportável). Isso é religião como crítica, não  só no sentido de uma crítica as coisas do mundo, mas também no sentido de  religious criticism como em literatura: indaguemos sua virtú enquanto argumento e enredo (suas categorias estruturais e dinâmicas), que descrevem o drama essencial do ser humano. Neste sentido, descobrimos, por exemplo, que nem todo conceito de Deus é um recurso instrumental rude, e que muito da trama religiosa se dá fora (e mesmo em clara oposição) ao campo de ação dos recursos pragmáticos de sobrevivência – ao contrário do forte viés instrumental que se abate sobre as teorias tardias de emancipação, herdeiras do terror da contingência reprimido (a banalidade alegre ao qual faz referência Berdiaev na citação de abertura desse texto). Neste movimento, percebemos que a radicalidade da hipótese do Homem como aporia ontológica se revela como forte recurso argumentativo próximo ao ceticismo, operando como “teste” para o suposto incontrolável viés pragmático rude e alienante de toda e qualquer articulação noética dentro da religião. É aí, no confronto com a hipótese da aporia, que todo e qualquer pensamento radical deve se dar.

A hipótese religiosa da “desgraça” ou a categoria da disfunção essencial
Uma característica central do pensamento religioso é a categoria da disfunção essencial do ser humano (face dinâmica da aporia e que no cristianismo recebe o nome de “desgraça”) e, em alguns casos, do cosmos em si, o que eleva essa hipótese a um estatuto de maior agressividade noética. O combate a esta hipótese está no coração da idéia de emancipação moderna, na medida em que seu caráter a priori parece nos levar para o campo das essências “malditas” que tanto serviram a esquemas  políticos de heteronomia. Não aceito a idéia de que essa categoria da disfunção demande um ideal delirante de “função perfeita” do qual seria deduzido. Ao contrário: escatologicamente falando, é a perfeição que dura pouco em se falando do humano (e não só humano, mas em toda forma de vida), sendo a disfunção que se impõe como realidade dominante e perene. Essa categoria reúne em si a família de manifestações comumente identificadas como o fracasso da fisiologia. O termo “a priori aqui nos remete para a repetição contínua do fracasso no tempo, daí podermos afirmar que essa repetição cria em nós um hábito cognitivo (Hume) de tomá-la como a priori. Não há qualquer necessidade de um recurso a essências puras a priori. O sucesso da unidade viva – esse conceito relativo a um estreito espaço geográfico e de tempo na história da matéria – é a exceção e não a regra.

Nas origens do cristianismo encontramos uma das mais agressivas heresias de sua história. Evidentemente, a categoria de heresia no cristianismo é, de certa forma, construída a partir daí. O choque entre aquele cristianismo que se tornará hegemônico (judaizante) e essa forma “estranha” de cristianismo (o gnosticismo não é só historicamente cristão) se dá ao redor (entre algumas outras questões) do estatuto teológico do Deus hebreu: é ele Deus? Alguns cristãos gnósticos como Marcion e outros levantam a possibilidade de que  Jesus foi enviado por um outro Deus, por pura misericórdia. Para além da estranheza reputada a esses cristãos anti-judaizantes, vale a pena perceber uma raiz essencial de sua recusa do Deus hebreu: esta postura é conhecida como acosmismo, e apesar de que alguns poucos scholars questionem a legitimidade de tal postura como sendo exageradamente tomada como majoritária entre essas “seitas do demiurgo”, não há dúvida de que em muitos dos textos de Nag Hammadí  (conhecidos como “Evangelhos Gnósticos”) o acosmismo (não há uma verdadeira ordem cósmica, mas sim uma organização perversa ou nenhuma ordem) surge. A tese central é que o mundo tal como se apresenta não pode ser fruto de um Deus bondoso. No mínimo ele é incompetente. A idéia varia entre uma semi-divindade criadora (o Demiurgo do Timeu com ares hebreus), perversa e invejosa, e uma semi-divindade que desconhece sua própria origem e suas competências. Em alguns textos da chamada escola valenciana (Valentinus, gnóstico alexandrino dos primeiros séculos da era cristã), a criação se dá por um movimento de uma das emanações (Sofia) do Deus verdadeiro, muitas vezes identificado como Pai silencioso ou desconhecido, que, tentando conhecer esse pai impossível de ser conhecido mesmo por ela, gera uma crise no Pleroma, espaço “sobrenatural” dessa divindade não criadora do universo, e dessa crise  surge seu filho, produto de sua agonia, que se materializa em matéria úmida e disforme, e que pensando ser o Deus único, por desconhecer o Pleroma “acima dele mesmo”, e por trazer em si a marca da híbris materna, cria um cosmos demente: uma metáfora que com freqüência se repete é a do escândalo ontológico. Sua criação é marcada, por exemplo, pelo fato de que os seres, para existirem, devem se devorar uns aos outros, gerando um cosmos afogado em uma dor insuperável. Para esse acosmistas, não há nada a celebrar na vida natural, uma vez que a própria reprodução da vida gera nada além do que mais poeira a ser devorada por outras formas de poeira. A mitologia gnóstica é riquíssima, mas dela nos interessa somente essa interpretação que, buscando compreender como uma criação pode ser assim tão miserável, funda uma crítica cosmológica inigualável: toda a idéia de ordem conhecida é desqualificada, atitude essa que beira um certo anarquismo avant la lettre. Essa atitude radical coloca o gnóstico – que é aquele despertado (pela gnose em si) do sono no qual se encontram as outras vítimas desse cárcere que é o universo – numa posição de lidar com uma verdade que é em si insuportável: nada no cosmos  tem valor, e quando tem, é negativo. Não pode haver modo mais violento de recusa de toda ordem conhecida. “No princípio era a crise”: essa é sua hipótese de uma cosmogonia agônica (alguns “evangelhos” nos falam da agonia como matéria-prima da qual é gerado esse filho-demiurgo) – uma divindade  perversa ou incompetente reina sobre o Universo, e nós somos suas vítimas indefesas. Nenhuma das formas conhecidas de crítica chegou a tamanha violência: o único absoluto atuante é contra nós. Como amar tal espetáculo de dor? O gnóstico não pode se iludir com o que vê, a vida é um engano, e nós somos esse engano feito carne: a corruptibilidade é  figura máxima desse engano. É claro o pessimismo e a idéia de aporia. Esse anarquismo religioso não pode resistir à “perseguição” do cristianismo “oficial”, na medida em que é arredio à institucionalização e vê o cosmos como algo que, de tão precário, não deverá durar. A tendência é um baixo investimento na vida cotidiana, o que leva a um mal estar social e psicológico difuso. Essa “dúvida hiperbólica” cósmica e existencial fará uma profunda marca no cristianismo, na medida em que uma certa descrença na validade do  mundo perseguirá o cristianismo como um fantasma indesejável. A falência da “forma do mundo” aqui é clara, falência essa que no luteranismo será muitas vezes tematizada.

Pode-se pôr em dúvida esse dualismo teológico, mas a base da observação desde onde, supomos, poderia surgir tal religião acosmista, é de uma precisão inquestionável, ainda que infeliz: nada no cosmos parece se manter, e se tudo permanecesse poeira silenciosa seria “melhor”, na medida em que a dor, então, não seria a verdadeira vibração cósmica (Cioran, esse  bogomilo – heresia gnóstica balcânica dos sécs. IX e X – extemporâneo, identifica isso com a idéia de que nascer é um inconveniente). Esse olhar “cruel” sobre a existência produz um modo de lucidez  assustador, aquele tipo de lucidez que tanto incomoda os necessitados de uma agenda pragmática de sobrevivência, porque diviniza o desinteresse por essa mesma sobrevivência. O acosmismo como categoria religiosa permanecerá ativo toda vez que a religião cristã ensaiar um olhar ontológico crítico sobre as coisas. Claro que esse acosmismo dinâmico (ativo noeticamente) ao longo dos séculos foi em grande parte domesticado, mas em parte permanece presente em cada instante no qual o pensamento religioso não se deixa enganar pelo programa instrumental de fuga do terror da contingência. Na realidade, a intuição gnóstica essencial é que a batalha é inglória porque arrastamos a inviabilidade da criação em nós, somos essa inviabilidade que atingiu o estado da fala – em linguagem atual, esse erro cósmico estaria presente, por exemplo, na fúria evolucionista e, nessa medida, o demiurgo gnóstico seria um conceito de Deus que carregaria um sentido dramático consigo muito próximo a um universo como palco de uma competição infinita. No ser humano esse erro cósmico se tornou capaz de ter consciência de que é ontologicamente um erro. A dor aqui atinge seu grau agudo: a idéia de que o ser humano é o único “bode” (ser trágico) consciente do sacrifício infinito que se desenrola. E mais: ao contrário dos anseios de acalmar os deuses via sacrifício de inocentes (animais indefesos, crianças, mulheres virgens etc.), esse Deus criador da gnose se delicia com o sacrifício contínuo que é toda a criação. Essa imagem do cosmos como um altar contínuo não pode ser acusada de “irreal”: a própria história da matéria viva verifica essa dissolução contínua. A hipótese da disfunção estaria aqui na sua configuração mais violenta: disfunção cósmica. Mas a disfunção aparece em outros cenários que, ainda que menos abrangentes, nem por isso são menos significativos em termos de tocarem a realidade humana de modo empírico.

A língua hebraica tem uma característica interessante – entre tantas outras –  que é a inversão no sentido da leitura de quase todas as letras.  Essa inversão (hipoukh), quando aplicada à palavra (isto é, à letra que começa a palavra) RouaH (espírito), resulta HOuR, buraco, vazio, vacuidade. Desta forma, no texto religioso hebraico, a menção da palavra “espírito” é acompanhada de seu fantasma, o vazio. A interpretação “epistemologizante” do judaísmo – interpretação essa obviamente consistente, basta lembrarmos de toda a tradição talmúdica, cabalista e mais recente, em autores como Benjamim, Heschel, Levinas, Dascal, Draï, entre outros – nos remete à idéia de que pensar religiosamente é essencialmente pensar a possibilidade e a forma do pensamento (e portanto, do conhecimento) no confronto com o vazio. Aí esta o poderoso caráter escatológico tão temido do pensamento religioso, sua liberdade intratável de se mover em relação íntima com a contingência geral. Um dos desdobramentos mais claros do analfabetismo filosófico-religioso contemporâneo é a incapacidade de percebermos o estreito e necessário entrelaçamento de religião e epistemologia. Quando se pensa religiosamente, pensa-se epistemologicamente. O contrário, de certa forma, acaba ocorrendo, mesmo que com categorias cripto-religiosas (as questões primeiras e últimas): o ceticismo e a sofística (“nomes” epistemológicos para a idéia de miséria cognitiva) acabam por demandar critérios pragmáticos como “última saída”  diante da condenação à doxa inconsistente. A relação entre ceticismo e mística (desconstrução ontológica de base, como disse acima), a teologia negativa e a crítica à capacidade referencial da linguagem ou o efeito do conceito de Transcendente como produtor de esvaziamento dos conteúdos noéticos são campos filosóficos ricos a serem explorados. O erro está em se recobrir o pensamento religioso com sua figura do senso comum – esse erro foi imortalizado pelo preconceito, por exemplo, de grandes autores como Rabelais e Russel com relação à filosofia medieval, essencialmente religiosa, por isso mesmo abissal – isto é, com seus recursos pragmáticos de socorro existencial referidos acima ou sua especulação supostamente inútil.

O “outro lado” do espírito é o vazio. Essa intuição de base no texto religioso hebraico nos fala – aliás, como toda a narrativa do Bereshit (Gênesis) – do tema da circularidade e da chamada “queda” como um movimento em direção ao estado no qual o destino humano (e de tudo mais) é o de ser objeto da fisiologia e sua catabólise contínua. Essa é uma face importante na hipótese de Deus. A idéia de poeira nada mais é do que a insustentabilidade essencial (devido à circularidade): somos apenas um estágio na cadeia alimentar e inventamos sentidos para negar isso. Fugindo do confronto com sua realidade de “caído” na fisiologia do Nada, o casal mitológico não age diferente dos homens e mulheres atuais, na medida em que o projeto humano (que recusa o problema posto pela hipótese de Deus) parece ser o de se convencer de que construirá um mundo no qual, se pelo menos não se dissolve a aporia ontologicamente, consegue-se eliminá-la do imaginário e do pensamento via os mesmos instrumentos pragmáticos de socorro que dizem causar a alienação noética da religião: o programa de emancipação moderna, baseado no mito da natureza humana suficiente, necessariamente desaguou na deficiência noética (Pascal sabia disso e nós, pós-modernos, vivenciamos isso), devido ao desgaste que é imposto ao pensamento a fim de que este não perceba o inevitável, isto é, que tudo que diz respeito ao Homem é circular (parte do Nada e volta a ele) e de que a vida em si não passa de um ponto de vista dentro da matéria infinita, como nos diz, de certa forma, o Bereshit. Nesse sentido, vivemos um gigantesco projeto, alimentado por um ceticismo experimentado como trauma inconsciente, e que determina a agenda atual como a de submissão da atividade noética humana ao programa de emancipação reduzida à noção de felicidade e de auto-estima: já que conhecimento é (antes de tudo) poder (foucaultismo), a militância cognitiva é o novo “paradigma” nas ciências humanas em geral. Se não há verdade, e se tudo é relativo (circularidade), tudo é permitido. Essa realidade já está posta na letra do texto hebraico: não há como escapar ao niilismo como fantasma do espírito caído. Não é outra coisa que Dostoievski discute no seu “ensaio” Os Demônios: o niilista exterior Petrushka e o niilista interior Stravoguin representam a modernidade exatamente como esse movimento de radicalização da percepção de que o ser humano quando busca dar “nomes” às coisas, saindo da posição ontológica de guardião (ser habitado pela hipótese de Deus), para a de dono do mundo (causa suficiente e eficiente de si mesmo), o que contempla é o Nada que o corrói. O Homem não é capaz de sustentar o lugar da referência, quando isso acontece, e ele não mente em nome da auto-estima, ele acaba por se perceber como uma referência vaga. O campo noético fundado por uma reflexão religiosa não denegatória se dá conta daquilo que Karl Barth, teólogo luterano, se refere como o fato de que a religião descreve a situação de uma crise essencial da condição humana: pecado, desgraça, queda (formas distintas de declinar a categoria da disfunção), em nada facilitam a condição humana, mas impõem uma percepção empiricamente verificável para o intelecto humano. Em uma palavra: a religião não é sinônimo de carência noética, pelo contrário, ela se revela como uma noésis insuportável para um homem viciado em fórmulas que o encantam. Por isso Barth se refere à religião como o momento da cultura no qual a civilização e sua irmã, a barbárie, se vêem ambas questionadas na sua fundação: a realidade da religião, nas palavras de Barth (Carta aos romanos), é o instante no qual a “forma do mundo” é posta em crítica e através dessa crítica sua essência disforme e doente se revela. O mundo não tem forma porque ele não se sustenta, é um esboço no vácuo, por isso deve-se falar aí em teologia da negatividade: só uma negatividade contundente com relação à fantasmagoria centrada na suficiência humana e à sua forma efêmera pode dar início a um olhar verdadeiro sobre a condição humana e cosmológica. A emancipação moderna necessariamente teme isso, pois sua raiz não é uma crítica total à forma do mundo, mas um movimento tímido que visa na realidade o alívio do desespero ontológico: daí não haver saída senão no pragmatic turn em curso. É isso que diz Berdiaev, esse dostoievskiano, na citação de abertura desse pequeno ensaio:  nossa aposta é pela sociedade do contentamento (busca de instrumentos silenciosos de mentira ontológica), e isso não é só a opção dos leitores confessos de auto-ajuda, é a escolha de uma época. O terror do abismo transcendente, esse outro nome para o vazio como alterego do espírito, porque não é enfrentado, leva a angústia religiosa humana (o terror da contingência) ao lugar de um pavor a ser negado a qualquer custo. O “aumento” de conhecimento nos últimos séculos e a clara guinada da ciência em direção a sua fundamentação enquanto tecnologia (Bacon) não é outra coisa, ao olhar da tradição hebraica ou cristã, do que uma tentativa de resolver o vazio ontológico e epistemológico no qual o Homem moderno descobriu (contra sua vontade) habitar. Uma resposta a essa hipótese (e suspeita) religiosa deve ser dada no plano noético, enfrentando-se as categorias da própria filosofia da religião, e não reduzindo-as às outras categorias para “facilitar” o debate,  movimento esse que nada mais ilumina do que nosso contínuo movimento em direção “às regiões inferiores do espírito” (isto é, mais próximas ao Nada): quantas vezes devo repetir que vou vencer… para vencer? (em breve, pouco restará da pedagogia senão a neurolingüística “libertadora”). A religião enquanto pensamento não é prisioneira de um programa assustado em favor da “redenção”, o projeto ingênuo de emancipação é que agoniza em um pesadelo no qual a verdade ontológica do Homem – essa referência vazia – habita como um fantasma hamletiano. A hipótese de Deus não deve ser  provada – erro escolástico –, ou simplesmente reprimida, negando a ela o socorro noético, mas enfrentada nos termos em que se revela: uma indagação vertical acerca da aporia que é o humano.

Luiz Felipe Pondé
filósofo, professor da pós-graduação em ciências da religião e do Departamento de Teologia da PUC/SP, da Faculdade de Comunicação da FAAP e professor-pesquisador convidado em mística medieval da Unversität Marburg (Alemanha); autor, entre outros títulos, de O homem insuficiente – Ensaio de antropologia pascaliana (Edusp),  Crítica religiosa a um humanismo ridículo: Uma introdução à filosofia da religião em Dostoiévski (Editora 34; no prelo) e Conhecimento na desgraça (Edusp; no prelo)

(1) Comentário

  1. Há, realmente, uma profunda ignorância sobre o que é religião. Essa ignorância é estimulada e serviu aos propósitos do projeto da modernidade. A modernidade, resultado de um longo processo a partir do renascimento (que resulta de outros processos), teve como marco a tomada do poder político pelos comerciantes e seus pares, que já detinham o poder econômico. Na atualidade, na modernidade tardia, chega-se ao auge do projeto então inaugurado – tudo vira mercadoria, inclusive o “eu”. Esse foi o sonho dos mercadores. A miragem de uma sociedade saudável, erigida com base na ciência e na razão, foi a ideologia utilizada para o que o sonho se tornasse realidade.
    Criticam-se, com base na ciência e nas formas empobrecidas de razão, as manifestações ignorantes (no sentido literal de ignorar),secundárias, da religião – adaptadas aos diversos graus de apreensão da vida – deixando-se de lado, também por ignorância, ou, em outros casos, por má fé, a sua essência, que se constitui em uma ameaça a qualquer projeto de natureza reducionista.
    Consideremos, por exemplo, o que é a essência da religião do ponto de vista da Vedanta, que é o ápice do conhecimento védico.
    Para se compreender o que é a essência da religião, diz a Vedanta, é preciso, em primeiro lugar, ver claramente a limitação de todo conhecimento. Ou seja, deve-se compreender a natureza, os limites e o alcance do conhecimento. Não há, jamais, conhecimento completo. Toda e qualquer teoria tem de deixar de lado o que, para o propósito daquela teoria, é considerado irrelevante. Posteriormente, uma nova teoria engloba o que para a anterior era assim considerado, e deixa de lado o que é agora, para a nova teoria, considerado não relevante. Isso se repete ad infinitum.
    Uma vez que se compreende isso claramente, dá-se um salto para uma posição corajosa – todo o conhecimento se refere a “aquilo que não é realmente”. As idéias, as teorias, as representações, as construções mentais, os conceitos, não abrangem, jamais, a totalidade do objeto sob estudo. A idéia que faço daquilo a que chamo de “árvore”, por maiores que sejam os meus conhecimentos de biologia, de botânica, de química e de física reunidos, não abrange, e nunca o fará, a totalidade daquele ente.
    Quando o objeto de estudo sou eu, o mesmo acontece. O que é, em mim, que percebe as idéias, os sentimentos e o corpo? O intelecto, que é apenas um aspecto de mim, não pode abranger a totalidade do que eu sou. Idéias, teorias, conceitos, jamais abarcarão a minha totalidade. Eu, porém, já sou a totalidade de mim mesmo.
    O que propõe a Vedanta? Que, vistas claramente como são, sempre incompletas, as idéias, incapazes de conter a totalidade do que sou, se aquietem como consequência dessa própria compreensão. Isso é o que a Vedanta chama de silêncio. Não estando mais distorcida pelo que não é, pelos conceitos, a verdade do que sou se torna evidente. Aquietando-se o que não sou, fica apenas o que verdadeiramente sou. Toda avaliação é sempre incompleta. Tomar a avaliação pelo que realmente é, é viver na ilusão. A palavra sânscrita “Maya” significa “medir”, “avaliar”. Não sou dois, um que é o sujeito do conhecimento e outro que é o seu objeto, um para conhecer o outro. Ver é Ser, como diz a Vedanta. Ver o que se é verdadeiramente é ser isso. E “isso” está além da conceituação, além da medida. É atemporal e imensurável. É a Verdade.
    Esse é o repouso, essa é a paz. Essa é a essência da religião.

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