Reflexões e ressignificações: os povos indígenas nos 200 anos da Independência

Reflexões e ressignificações: os povos indígenas nos 200 anos da Independência
Detalhe do Monumento ao Dois de Julho, na praça do Campo Grande, em Salvador (Divulgação/Prefeitura de Salvador)

 

Nos 200 anos da Independência do Brasil, impõe-se a pergunta: onde estavam os povos indígenas durante e depois da emancipação política do país? Como mulher de sangue indígena Tarairiú da Paraíba e etno-historiadora, afirmo que os povos originários estavam cotidianamente construindo agenciamentos e respostas políticas às tentativas do Estado português e depois do nascente Estado brasileiro de invisibilizá-los, subsumi-los e integrá-los ou exterminá-los fisicamente.

Desde o século 16 até os dias atuais, centenas de grupos étnicos indígenas foram caçados, escravizados, dizimados, forçados a migrações para biomas diversos, obrigados a atravessar fronteiras territoriais criadas imagética e politicamente pelos não indígenas para fugir das invasões violentas de luso-brasileiros em suas terras ancestrais. Os povos originários do território que viria a ser o Brasil souberam enfrentar seus inimigos, construindo estratégias de resistência e até acomodações necessárias à sobrevivência coletiva. Enfrentaram novas territorializações ainda mais recorrentes e intensas no pós-Independência, que continuam acontecendo até os dias atuais, diante do avanço de empreendimentos capitalistas em todas as regiões brasileiras.

Nos últimos 200 anos, muitos grupos indígenas usaram esconder e negar suas origens étnicas, passando a ser denominados ou se autodenominando “caboclos”, como um mal menor para sobreviver a perseguições e extermínios. Por exemplo, diferentes grupos étnicos indígenas no atual Nordeste do Brasil, ao longo de todo o período monárquico e sobretudo no pós-Independência, foram tanto invisibilizados pela legislação indigenista imperial como sistematicamente perseguidos por grupos interessados na exploração econômica de seus territórios, como pecuaristas, grandes e pequenos produtores de alimentos para exportação e subsistência, frequentemente com a anuência de presidentes de províncias, alinhados à elite escravagista. Estes últimos não reconheciam os direitos originários das terras indígenas e, como os demais cidadãos do Império brasileiro, acreditavam ter o direito de expropriar os povos originários dos seus territórios.

Da legislação imperial que, direta ou indiretamente, impactou a vida dos povos indígenas pós-Independência, destacam-se por exemplo: a Carta Régia de 13 de maio de 1808, que declarou “guerra ofensiva” contra os indígenas Kaingang do rio Doce e passou a permitir o cativeiro indígena por dez anos ou enquanto durasse a “fereza” e a “antropofagia” entre eles; a Carta Régia de 5 de setembro de 1811, que autorizou iniciar a guerra contra os povos Karajá, Apinajé, Xavante, Xerente e Canoeiro, que habitavam o norte da província de Goiás; o Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845, que transformou homens e mulheres indígenas em trabalhadores compulsórios em terras de antigos aldeamentos. Já a conhecida Lei de Terras, promulgada em 18 setembro de 1850, no contexto da interrupção do tráfico intercontinental de escravos africanos, foi feita para regulamentar a questão fundiária do Império, cabendo ao Estado delimitar as terras e distribuí-las – o que acabou por fazer, vetando o acesso à propriedade da terra à mão de obra livre migrada da Europa, de modo a favorecer dos “donos do poder” político e econômico vinculados à monocultura escravagista.

Intencionalmente, a Lei de Terras de 1850 contribuiu para diminuir as áreas indígenas e propiciou a ampliação das terras devolutas pertencentes ao Estado. O governo imperial privilegiou uma política agrária que distribuía terras para quem detinha o maior poder de compra e de especulação, com a recorrente justificativa de que as terras indígenas eram improdutivas e despovoadas.

Nos dados atuais, existem no Brasil cerca de 820 mil homens e mulheres indígenas e 305 grupos étnicos que se autoidentificam como povos indígenas, falantes de mais de 274 línguas distintas. Apesar de representarem apenas 0,43% da população, os povos indígenas estão presentes em 80% dos municípios brasileiros, habitando 1.290 terras indígenas, sendo 408 homologadas e 821 em vias de regularização e/ou reivindicadas. Demarcadas ou não, quase todas se encontram invadidas, depredadas e em processo de profunda devastação. A negação aos direitos étnicos e territoriais são a base de um projeto de setores da sociedade brasileira, apoiado em ações e omissões pelo Estado, que tem como meta principal disponibilizar os territórios ancestrais e os bens comuns neles contidos a esferas retrógradas do agronegócio, a madeireiros e ao garimpo ilegal. Isso tudo se tornou evidente durante a pandemia de covid-19, quando centenas de homens e mulheres indígenas perderam a vida por causa do descaso do Estado, pela ausência de implementação de políticas de saúde e sanitárias assertivas e pelo aumento descontrolado de invasores em territórios dos povos originários, noticiado cotidianamente na mídia.

A tudo isso, somam-se as contundentes ameaças à existência dos povos indígenas decorrentes da política de terras orientada pelo referencial jurídico do famigerado “marco temporal”. Ao propor o “direito às terras” somente para os povos indígenas que as ocupavam ou as disputavam, física ou judicialmente, até a data de 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, esse artifício atende diretamente aos interesses dos setores ruralistas. Se não for derrubado pelo STF, esse fatídico marco temporal afetará processos estagnados de demarcação de 310 territórios tradicionais e de outros 537 que não tiveram sequer providências de identificação, o que resultará em um aumento vertiginoso de enfrentamentos, mortes e expropriações de centenas de homens e mulheres indígenas.

Reafirmo com toda a força da minha ancestralidade Tarairiú do sertão da Paraíba que, nesses 200 anos desde a Independência do Brasil, a vida, a cultura, os conhecimentos e os saberes indígenas têm sido desrespeitados pelo Estado brasileiro. Para se mensurar o problema da não demarcação dos territórios indígenas, é preciso lembrar ainda a questão ambiental no contexto de aquecimento global em que vivemos. Onde vivem povos indígenas, a floresta se preserva e se renova. A extinção dos povos indígenas significa a extinção das florestas tropicais e, com elas, da própria vida no planeta.

Duzentos anos não definem nossa historicidade milenar. Não queremos comemorar essa efeméride, e sim ressignificar o nosso protagonismo em todo contexto histórico antes, durante e após a Independência, evidenciando que o Brasil é e sempre será terra indígena.

 

Juciene Apolinário é doutora em História (UFPE), pesquisadora CNPq e professora da UFCG.

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