Racionalidade e religião em tempos de crise

Racionalidade e religião em tempos de crise
É preciso reconhecer que as religiosidades tradicionais do ocidente estão em crise (Foto: Adrien Olichon/Unsplash)

 

 

O sonho da razão produz monstros
Goya

Aristóteles definiu o espanto (thauma) como o marco zero da filosofia, espanto cuja origem se dá diante de um estranhamento. Do estranhamento se segue o surgimento de uma disparidade de argumentos frente à existência de um mesmo fenômeno e da indecisão sobre qual deles abrigar, sob qual ponto de vista adotar, sobre que entendimento acolher e/ou elaborar. O espanto é um pathos, uma afecção que se deixa convocar por um apelo, que não vem exclusivamente de fora, mas da interação entre o fora e o dentro. Um apelo de superfície donde se verifica a interação entre os espaços dos corpos em busca de algum tipo de harmonização, de afinidade. O espanto, no entanto, não é algo que assalta o pensamento e o abandona em seguida, como uma senha para se entrar em uma sala de cinema. Ele é renitente porque lida com a matéria da qual o mundo é feito em sua multiplicidade e, por isso, não cessa numa vida filosófica, o que também impõe ao filósofo uma permanente disposição em olhar o mundo sob variada ótica, conforme sua multiplicidade. O espanto é, portanto, o motor filosófico, aquilo que mobiliza o pensamento sob pena de sua mortificação. Dessa maneira, os filósofos são animais habituados ao espanto, por vezes até mesmo tirando desse modo de vida algum sustento material.

Por isso, é quase com alguma naturalidade que em momentos de crises mais aparentes sejam eles, os filósofos, convocados a falar, a exporem suas “visões de mundo”, suas filosofias, por assim dizer. E assim como noutros tempos, de outras crises, os filósofos têm sido chamados, também agora, a se posicionar diante da pandemia. Mas o que os autoriza a dizer o que quer que seja sobre a realidade? O que credencia um filósofo? A história da filosofia nos ensina que ao menos dois elementos suplantam os enunciados filosóficos: a disposição para com a verdade e o uso rigoroso da razão. De Plotino a Schopenhauer, de Averróis a Cioran, é a razão a matéria que estrutura o pensamento filosófico, ainda que seja para apontar os seus próprios limites. Quando o obscurantismo, o negacionismo e o irracionalismo entram por uma porta, a filosofia sai por outra. E espera-se que o inverso também ocorra.

Antes de avançarmos, é importante lembrar que o pensamento filosófico se move lentamente. Ele depende de ruminação, de meditação. Sua tessitura não se deixa perfazer num lance de dados, de modo que emitir algum juízo sobre a pandemia, assim como pede o momento – e mesmo a convocação para a elaboração deste texto –, estando todos nós e também os filósofos, humanos que são, no “olho do furacão, exprimir qualquer análise pode ser tarefa fadada ao fracasso. Não é que o filósofo se dirija, por princípio, a outro tempo que não o seu, mas a emissão de enunciados filosóficos costuma cobrar a cautela que se choca com a rotina imediatista de nossa época. Desde os primeiros sinais da pandemia no oriente e também entre os países europeus, antes ainda da deflagração de enorme número de infectados entre nós americanos, diversos autores têm se arriscado em precipitar não só diagnósticos sobre a gênese histórica do vírus Sars-Cov-2, mas também prognósticos sobre procedimentos morais e políticos a serem adotados pelas comunidades expostas a ele. Com o passar dos meses, os desdobramentos da crise têm feito alguns desses autores preferirem jamais terem escrito uma única linha a esse respeito. Evitemos mais frustrações, mas não nos esquivemos de apontar algum caminho para onde se possa olhar, ainda que de forma vacilante. Se o uso da razão é elemento fundamental do discurso filosófico, parece-me produtivo no momento lançar alguma luz sobre o seu desenvolvimento e tentar compreender de que maneira se nos faz imprescindível, sobretudo, em momentos de crise como o que atravessamos.

O filósofo Max Horkheimer (1895-1973) definiu a racionalidade a partir de duas dimensões que chamou de subjetiva e objetiva. Referiu-se, desse modo, a duas formas de agir da razão, por assim dizer. A dimensão subjetiva é definida como a ação racional que classifica, infere e deduz; aquela que se relaciona“essencialmente com meios e fins, com a adequação de procedimentos a propósitos mais ou menos tidos como certos e que se presumem auto-explicativos. [A dimensão subjetiva] concede pouca importância à indagação de se os propósitos como tais são racionais”.

Já a dimensão objetiva da razão exprime não somente a força da mente individual, mas também do mundo objetivo, as relações entre os homens e as classes sociais; os homens e as instituições; os homens e a natureza e as suas próprias manifestações. Essa dimensão, segundo o filósofo, praticamente dominou os grandes sistemas filosóficos da história do pensamento, ao menos desde Platão até Hegel. Foram sistemas que procuraram abranger a totalidade de “todos os seres, incluindo o homem e seus fins [e] o grau de racionalidade de uma vida humana podia ser determinado [para estes sistemas] segundo a harmonização com essa totalidade”, segundo Horkheimer. A estrutura objetiva determina a avaliação do pensamento e da ação individual e diz respeito ao destino de todos os seres, incluindo aí o homem. Se a dimensão subjetiva é aquela que utilizamos no manuseio de um instrumento, na aplicação de um saber, numa tecnologia, é importante que se diga que a dimensão objetiva não a exclui, apenas a considera como sendo uma expressão parcial e limitada de uma razão mais geral.

Como se pode ver, as duas dimensões da razão descritas por Horkheimer se apresentam de maneira interdependente e suas duas formas de ação configuram, no fim das contas, uma única razão dotada de certa plasticidade. No momento em que vivemos talvez não haja melhor exemplo para se pensar tal aspecto plástico da racionalidade do que a necessidade de uma vacina contra a Covid-19. De maneira objetiva não podemos deixar de avaliar a premência da elaboração de uma vacina capaz de imunizar a humanidade, prioritariamente, em escala planetária. Sua utilidade biológica espraia-se no âmbito político, moral e econômico para além das fronteiras, de uma maneira formidável, e só à custa da negação da vida alguém contestaria tal afirmação.

Potencialmente, a produção de uma vacina neste momento tende a resultar de forma objetiva em um tipo de harmonização entre os homens e a natureza. Entretanto, a mera avaliação objetiva dessa utilidade não é capaz de fazer frente à pandemia que se arrasta nos últimos meses pelos continentes. Isso significa dizer que sem a ação subjetiva da razão não nos encontraremos em condições mínimas de presumir a existência da vacina. Ou seja, sem um pensamento que classifica, infere, deduz, quer dizer, sem a adição da dimensão instrumental da razão levada a cabo, a vacina jamais poderá aflorar entre nós. Portanto, sem se ocupar do conhecimento das leis gerais que regulam a natureza, tal como o fazem os cientistas, e sem o aparato técnico necessário para a obtenção da vacina, estaremos fadados a um desacordo, talvez irreparável, entre a humanidade e a natureza.

Retratos de Vilém Flusser, 1988-89 (Foto Ed Sommer / Divulgação)
Para Flusser, a religiosidade consiste na nossa capacidade de captar a dimensão sacra do mundo (Ed Sommer)

Então o que explica certa rebelião contra a racionalidade e, especialmente, contra o desenvolvimento das ciências nos dias em que vivemos? Desde que a pandemia foi declarada pelas autoridades internacionais da área da saúde, observamos uma série de resistências ao que se tem entendido como razoável na direção do combate ao vírus. Medidas de distanciamento social, fechamento de fronteiras, quarentenas, uso de máscaras e mesmo os avanços nas etapas dos testes de vacina têm sido sistematicamente contestados, e até rechaçados, não apenas por autoridades do campo da política, mas também da medicina, do senso comum, de grupos religiosos e, em menor medida, por setores da imprensa. Práticas das mais esotéricas vêm sendo alardeadas como promessas de cura à revelia do que informam as mais sofisticadas e avançadas experiências científicas. Notícias falsas difundidas nas redes mundiais de computadores dispersam tais promessas que abusam das mais singelas e elementares formas do pensamento, enfim, um vasto repertório de negação do que informam as ações racionais ligadas à comunidade científica vem sendo proclamado em praça pública.

Ao olharmos a história do ocidente, percebemos que se voltar contra a racionalidade, os filósofos e os cientistas não é uma prática exclusiva do nosso tempo. Sócrates e a cicuta, Giordano Bruno e a fogueira, Galileu e a condenação da Santa Igreja, os exemplos poderiam se estender ao longe e, sem dúvida, as razões que levaram cada um desses pensadores à desdita carregam especificidades. Entretanto, podemos destacar que as formulações teóricas desses pensadores desancam verdades enraizadas nas culturas em que viveram e que foram postas à prova pelo pensamento racional, gerando incômodo aos que, de alguma maneira, detinham o monopólio de uma suposta verdade.

Como já observado, a racionalidade, em seu pleno funcionamento, depende da sua mobilidade plástica por onde aciona suas duas dimensões, a subjetiva e a objetiva. No entanto, Horkheimer observa uma hipervalorização da dimensão subjetiva no mundo moderno, o que ele entende decorrer de uma instrumentalização da razão para que se atinjam os fins mais imediatos em detrimento dos fins mais gerais. Esse uso parcial da razão alcança os diversos setores da cultura, incluindo a economia, a moral, a política, a ciência, e a religião. Dadas as frequentes incursões de membros de comunidades religiosas, amalgamados a figuras da classe política, em clara rota de colisão com as estratégias racionais de combate à pandemia de Covid-19, adotadas pelas autoridades sanitárias internacionais, creio ser oportuno me deter um pouco, sob uma perspectiva filosófica, sobre o fenômeno da religiosidade entre nós.

Atento aos fluxos que mutilam o exercício pleno da racionalidade, Vilém Flusser (1920-1991), em seu pequeno livro Da religiosidade, observou que não é “da crítica da religião que devemos esperar um esclarecimento do fenômeno religioso”. Uma crítica assim feita não nos conduz ao cerne do problema, mas para aspectos periféricos do fenômeno religioso. Assim procedendo, poderíamos chegar às estruturas de poder da religião, aos atores que a constituem, às suas engrenagens econômicas, às suas edificações arquitetônicas, aos seus constructos literários, entre outros elementos. Ou seja, incorreríamos numa apreensão parcial do fenômeno e não chegaríamos ao que o constitui propriamente. Embora variável e mesmo instável, recorrer à nossa própria vivência interna da religiosidade talvez seja, segundo o autor, o único caminho capaz de nos conduzir ao fenômeno da religiosidade, e é esse o procedimento que ele adota em sua pesquisa.

max horkheimer
Horkheimer observa uma hipervalorização da dimensão subjetiva no mundo moderno (Reprodução)

Para Flusser, a religiosidade consiste na nossa capacidade de captar a dimensão sacra do mundo, que é uma competência humana, embora não comum a todas as pessoas. Segundo suas palavras, o indivíduo religioso apreende o mundo, a morte e as coisas de forma opaca, porque são manifestações que nunca lhe parecem inteiramente explicáveis; nunca inteiramente claras e distintas o suficiente ao seu entendimento. Mais contundente em certas épocas e sociedades e menos em outras, o fato é que embora possa haver pessoas sem o menor vínculo religioso, não é possível encontrar épocas e sociedades inteiramente desprovidas de religiosidade.

Certas épocas e sociedades são mais férteis religiosamente, enquanto outras, como a nossa – que ele chama de “sociedade tecnológica” –, reprimem a capacidade individual para a religiosidade. Como consequência dessa repressão, surgem, por um lado, religiosidades deformadas tal qual o paganismo da Alemanha hitlerista e, por outro, “pseudo–religiosidades como o endeusamento do dinheiro ou do Estado”. Para Flusser, tanto as religiosidades deformadas quanto as pseudo-religiosidades se configuram como formas inautênticas e perversas de religiosidade em clara oposição com a capacidade genuína de captar a dimensão sacra do mundo.

Essa capacidade revela o mundo e nossa vida dentro dele como realidade significativa, isto é, como realidade que aponta para fora de si mesma. Esse significado que o mundo e nossa vida dentro dele têm é chamado “o sacro”. A profundidade do significado, a extensão do sacro, dependem da nossa capacidade para a religiosidade, segundo Flusser.

A capacidade para a religiosidade se apoia fundamentalmente na fé como um artigo de fidelidade ao significado transcendente do mundo e da vida contra toda evidência clara e distinta em contrário. Também as obras resultam em favor do significado transcendente, sendo as duas, fé e obra, derivações de um mesmo ímpeto em desafio ao absurdo da existência do mundo e da vida. O absurdo da religiosidade joga, portanto, com o absurdo do mundo profano em resposta a este. Walter Benjamin (1892-1940) formulou essa ideia nos termos de um embate da religião contra o mito. Segundo ele, as religiões carregam consigo um desafio ao destino; constituem-se como livre resposta à natureza inexorável e ameaçadora do mito arcaico e violento. Para Benjamin, a religião se apresenta como movimento de abertura e restauração que não pode ser vista como fonte de opressão, mas como uma resposta livre, à revelia do mito, e é daí que resulta a sua criatividade e consequente diversidade. Segundo essa interpretação, há, portanto, um logos na religiosidade que rivaliza com o mito e o horror que este encerra. Quando se verifica um déficit religioso, é porque se verifica um déficit criativo, imaginativo.

As religiões tradicionais do ocidente são o ambiente onde a religiosidade dos ocidentais, em grande parte, funciona, por onde os religiosos se movem, mas é preciso reconhecer que essas instituições estão em crise e, desse modo, são incapazes de satisfazer a religiosidade de maneira genuína. Os movimentos históricos e políticos de buscar consumar unidades religiosas hegemônicas contra uma possível irreligiosidade que se avoluma entre os diversos países constituem, segundo Flusser, um gesto fadado ao fracasso, na medida em que desagrega a criatividade e a diversidade, próprias das religiões, e apenas acirram a decadência dessas instituições religiosas como castelos de areias. Por outro lado, as religiões inautênticas – tais como as já mencionadas deformações do paganismo da Alemanha hitlerista e o endeusamento do dinheiro e do Estado – se apresentam como sintomas de falta de saúde, uma espécie de raquitismo espiritual, em suma, como sintoma da incapacidade de significar, levando à abertura de caminhos frustrantes como o do endeusamento de pretensas figuras míticas, ligadas ao ambiente político, ou de seitas extravagantes.

Pensando em consonância com os autores mencionados, a religiosidade dos nossos tempos teria sofrido uma inflexão para a política, a economia e a tecnologia e, no entanto, se mostrou incapaz de responder aos anseios religiosos autênticos. Mito, mito, mito, ouve-se em toda parte com babas de repugnância pela vida. A interpretação de Horkheimer e a de Flusser nos convidam a pensar numa fratura que parece se mostrar de maneira irremediável entre a nossa condição humana e o mundo, fratura esta que antecede o atual momento pandêmico, mas que atualmente se agrava com a sua negação. A questão que se coloca, portanto, é a de como lidar com essa fratura.

Os filósofos apontam respectivamente para a apropriação integral da razão e o restabelecimento, no âmbito da religiosidade, da capacidade de significar o mundo e impor-lhe, ainda que pelas vias do absurdo, algum sentido significativo. As duas vias trilhadas pelos autores incidem numa contundente crítica às formas de vida no presente no que ele tem de meramente instrumental e esgotado significativamente. Pelo que se vê, ainda que de maneira vacilante, a produção de uma vacina que nos imunize contra a Covid-19 – que inclusive já se anuncia em países como a China, Rússia e os Estados Unidos – não poderá nos livrar do espanto que nasce do apelo para que possamos encontrar algum tipo de afinação entre nós e entre nós e o mundo. E tudo indica que a filosofia ainda possa ser útil nessa empreitada, por mais provisórias que sejam as linhas filosóficas escritas em tempos de crise.

Rodrigo Araújo é professor de Filosofia do IFBA, campus Simões Filho, e doutor em Filosofia pela UFBA.


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