A questão militar e a realpolitik de Lula

A questão militar e a realpolitik de Lula
Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 contra a ditadura militar. ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ

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Lula disse que está mais preocupado com a tentativa de golpe de janeiro de 2023 do que com o golpe de 1964. Não quer “remoer o passado”: “os militares, hoje no poder, eram crianças naquele tempo”. Parece haver um ato falho na frase de Lula – os militares no poder. Talvez o inconsciente de Lula explique a sua realpolitik.

Lula é um quando trata de questões como essa no plano interno e outro no plano externo. Em viagem à Argentina reuniu-se com as Mães e Avós da Praça de Maio. Escreveu então nas redes sociais que o encontro o deixou emocionado e que elas eram uma “inspiração na defesa da democracia na América Latina”. Mas os familiares de vítimas da ditadura militar brasileira aguardam há meses uma audiência.

O último ato de Bolsonaro na presidência da República extinguiu a Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos, instituída no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas Lula não assina o decreto para reinstalá-la, encaminhado pelo ministro Silvio Almeida no início do governo.

Lula condenou o genocídio que Israel está perpetrando em Gaza, sem deixar de apontar corajosamente os métodos nazistas. Mas é indiferente quando se trata dos crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura militar, assim declarados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em decisão de 2010, ignorada em seu segundo governo e por Dilma Roussef enquanto governou.

Lula trata do tema com a dignidade que ele merece no plano externo, mas no interno, como pequena política. Como se estivesse, digamos, negociando cargos ou verbas com o centrão. E por isso impediu atos oficiais nos 60 anos do golpe para não abespinhar os militares e entendeu conveniente declarar que não remoía o passado.

O 8 de janeiro não foi raio em céu azul. Remete ao tuíte do então comandante do Exército, general Villas Bôas, em 2018, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula no STF. Dizia que o Exército compartilhava do “anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantinha atento às suas missões constitucionais.”

O habeas corpus foi negado por 6 x 5, ou 7 x 5 se computarmos o voto do general, sacando Lula das eleições e pavimentando o caminho de Bolsonaro para a presidência. O termo chave na contingência daquele momento, impunidade, entrou no texto por sugestão do general Tomás Ribeiro Paiva, ora Comandante do Exército. O mesmíssimo general que, dirigindo a Academia de Agulhas Negras em 2014, permitiu que Bolsonaro, já em campanha, discursasse na cerimônia de formatura de cadetes: ”nós temos que mudar este Brasil, tá ok? Alguns vão morrer pelo caminho, mas estou disposto em 2018 a tentar jogar para a direita este país”.

O 8 de janeiro remete ao tuíte de Villas Bôas de 2018 que remete a 1964. É irrelevante que os generais de hoje brincassem de bolinha de gude em 1964. Foram educados na cultura ideológica amplamente hegemônica nas Forças Armadas, produto da guerra fria, produto do alinhamento aos interesses do imperialismo norte-americano, com elementos de fascismo – a divisão da sociedade em amigos e inimigos e a ideia de que essa divisão deve ser tratada como guerra interna.

Sendo uma guerra no interior da sociedade, as Forças Armadas passam a ter a tarefa de combater o “inimigo interno”, que bem sabemos quem são: esquerda, forças progressistas, forças populares, forças anti-imperialistas. Tudo que pudesse ser posto em uma ampliada categoria “comunismo”. Essa ideologia permeou a série de tentativas golpistas ao longo dos anos 1950 e início dos 1960 que culminaram no golpe de 64.

Os crimes contra a humanidade perpetrados por ditaduras militares no cone sul são consequências do método dessa guerra interna. Credita-se aos militares franceses a sistematização desse método, desenvolvida na guerra de independência da Argélia. A tortura para obter a informação, assassinatos e desaparecimentos. Os franceses o transmitiram aos norte-americanos e aos militares latino-americanos. A partir da Escola Superior de Guerra de Paris foi absorvido pela Escola Superior de Guerra brasileira.

A responsabilização dos perpetradores dos crimes contra a humanidade argentinos, uruguaios e chilenos teve o efeito de provocar uma ruptura. Aqui isso não ocorreu. Nossas escolas militares permanecem difusoras de noções que refletem os valores da guerra interna, da ideologia da guerra fria, que ainda é útil a certos interesses e sempre pode ser sacada pelas classes dominantes.

Todas as oportunidades para esse acerto de contas com o passado foram desperdiçadas. O STF julgou válida a Lei de autoanistia imposta pela ditadura em seus estertores. O Estado brasileiro ignorou a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determinava a persecução penal dos perpetradores. Está paralisada no STF há doze anos outra Ação de Descumprimento de Preceito Federal que pede o cumprimento dessa decisão da Corte Interamericana. Dilma Roussef recebeu o relatório da Comissão Nacional da Verdade e o ignorou.

Foram oportunidades para começar a construção de uma sociedade democrática longe da ameaça de fuzis. Para desestruturar a cultura ideológica das Forças Armadas. A intentona golpista de Bolsonaro somente foi possível porque comandantes militares formados nessa cultura em boa parte a apoiavam. O 31 de março de 1964 e o 8 de janeiro de 2023 foram episódios da mesma série histórica.

Apesar de brincarem de pega-pega em 1964, chefes militares estavam a postos e sequiosos para reeditar a ditadura. Escapamos de sangrar – literalmente – nas mãos de um celerado fascista defensor declarado da tortura e do assassinato político por um fio. Carece de prova que os que não aderiram ao golpe e o impediram estavam tomados pelo espírito legalista e democrático e não pelo receio de perder suas carreiras caso o golpe não vingasse. Toda a História recente desmente a primeira hipótese.

A realpolitik de Lula é temerária. Não será ela que nos tirará dessa espécie de purgatório da democracia em que vivemos desde que os militares deixaram o poder. A complacência e o temor encorajam aventuras futuras porque, como se sabe desde sempre, não existe vácuo de poder. Como também existem aventuras golpistas que talvez não encontrem obstáculos em oficiais receosos.

Marcio Sotelo Felippe é advogado, ex-Procurador geral do Estado de São Paulo, pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito.


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