Quatro ou cinco coisas que eu sei sobre fake news
(Foto: Reprodução/Revista Cult)
Há ainda quatro ou cinco coisas que eu penso sobre fake news e que as pessoas geralmente não destacam. Vou resumi-las abaixo.
A falta de consenso não decorre da falta de um conceito, mas do excesso de partidarismo
O consenso sobre o que fazer com fake news cessa imediatamente assim que as pessoas são chamadas a identificá-las. Quer dizer que quase todo mundo considera que fake news são uma coisa negativa, que fazem mal à democracia e que, portanto, alguma coisa precisa ser feita para evitar que continuem perturbando a vida pública nesta proporção, o que significa que é fácil concordar sobre uma definição mínima do que são falsas informações.
A paz acaba apenas quando começa o partidarismo, isto é, quando se revela um alto nível de adesão e comprometimento de uma pessoa com posições políticas em disputa. Ou seja, quanto mais intenso for o partidarismo de alguém, mais essa pessoa diverge dos não partidários na identificação de que informações são realmente falsas.
Pesquisadores, jornalistas e magistrados geralmente não capturam um fato básico, isto é, que existe uma definição epistêmica – na falta de um nome melhor – de fake news e uma definição política. Na primeira, a falsidade da informação é julgada a partir da relação entre o fato relatado e o relato que, pretensamente, o reflete. Se a informação foi inventada ou distorceu o fato, ou dá conta dele com parcialidade a fim de produzir um efeito político, temos fake news. E isso, naturalmente, é errado.
No segundo tipo de definição, a do partidário, a incorreção da informação é julgada a partir da relação entre o fato relatado e os interesses do “nosso lado”. Se considerarmos que a informação colocará os neutros ou a opinião pública em geral contra nós, temos fake news. E isso, evidentemente, está errado.
Assim, as pessoas hoje se distribuem ao longo de um espectro que tem em um polo quem adota uma compreensão epistêmica do que seja uma falsa informação e, no outro polo, quem adere a um conceito autorreferente de fake news.
Quanto mais partidária for a pessoa, isto é, quanto maior o compromisso das pessoas com algum dos partidos, movimentos e facções que compõem a sociedade, maior a sua adesão a uma compreensão de fake news como o tipo de “news” que “nos prejudica”. É por isso que “fake news” veio a se tornar uma atribuição que pode ter uma aplicação completamente invertida. De forma que para um partidário do trumpismo, por exemplo, quem publica fake news é a CNN e não a Fox News, os sites de “verdades alternativas” que nós, os “epistêmicos”, acreditamos que fabricam e distorcem notícia em moto contínuo para abastecer as campanhas de manipulação e enganos.
Do mesmo modo, para um partidário do bolsonarismo, quem publica fake news é a Folha de S.Paulo, o Estadão, o Globo, o Jornal Nacional, não o WhatsApp dos contratados do Gabinete do Ódio ou do Gabinete Paralelo da Pandemia, que trabalham incessantemente para abastecer de “verdades alternativas” as redes da extrema-direita pelo Brasil.
No caso da definição partidária, ainda se fala de verdade, claro, mas não é a definição aristotélico-tomista de verdade (adæquatio intellectus et rei), em que o verdadeiro decorre da adequação entre o relato e as coisas. Os hiperpartidários adotam uma noção algo religiosa de verdade como revelação, não através de uma divindade onisciente que entrega a verdade ao profeta, mas através do líder tribal, que a entrega aos seus seguidores. Os líderes da seita, oniscientes, revelam aos discípulos toda a verdade de que eles precisam saber, e estes a devem aceitar sem inquirir de onde ela vem ou como ela se prova.
O importante não é o nome, mas o significado e o referente
Há uma falsa controvérsia sobre o nome do fenômeno, como se chamá-lo de fake news, desinformação ou fraude informacional mudasse qualquer coisa. O fato é que há grupos e partidos políticos neste momento em qualquer lugar no mundo, fabricando e distribuindo, digitalmente, informações incompletas, tendenciosas ou falsas a fim de confundir ou enganar os outros.
Como quer que se chame, trata-se de: 1) informação fabricada com base em parcialidades, distorções ou completa invenção; 2) com o fim de enganar ou confundir o público; 3) para, em seguida, levar as pessoas a tomarem uma determinada posição ou agir de um certo modo, em conformidade com os interesses do fabricante da informação.
Mas antes que alguém diga, com razão, que coisas assim sempre existiram, sugiro acrescentar o elemento nº 4: Trata-se de informação fabricada digitalmente e para a disseminação digital. Fake news, portanto, é uma expressão que se restringe a um tipo específico de informação falsificada para manipular e enganar as pessoas, aquela que só poderia existir em sociedades que se informam, se relacionam e praticamente vivem em extrema conexão digital.
Isso tem duas consequências inesperadas. A primeira é que fake news, portanto, é só um nome para um fenômeno bem conhecido nos seus traços e intenções gerais – a manipulação e o enganos por meio de informações -, mas que é completamente distinto por sua natureza eminentemente digital.
A segunda consequência é que, paradoxalmente, prestar atenção excessiva ao especificamente digital (viralização, velocidade e alcance da disseminação, capilaridade etc.) pode distrair daquilo que há em comum entre as fake news que estão afogando a democracia e a vida pública mundiais de 2018 para cá e as práticas de disseminação de informações falsas para manipular e enganar.
Nunca se trata apenas de fake news
Nenhum gabinete do ódio ou estrategista de comunicação da extrema-direita ou de qualquer facção política extremista vive de um só produto. Os extremistas não vivem da monocultura de fake news, como a bibliografia parece sugerir.
Antes de tudo porque em uma estratégia de manipulação ninguém pode recorrer apenas a informação falsa. Isso não seria eficaz. A coisa só funciona se houver um coquetel bem dosado de meias verdades, verdades e mentiras. Na vida real, o que temos então nas estratégias de comunicação baseadas em manipulação e enganos é uma mistura de falsas informações, outros tipos de informação, falsas narrativas de conspiração, narrativas discutíveis, em suma, de qualquer tipo de relato narrativo ou descritivo. Pois os meios importam, sim, mas muito mais importante são o fim a que que servem: assassinar reputações, satanizar adversários, semear o pânico moral, criar distração, lapidar identidades tribais, assediar adversários, destruir a credibilidade de instituições, motivar os partidários.
Além disso, não há apenas informações falsas digitais. Viram o quanto a Secom de Wajngarten gastou com influenciadores de televisão e rádio, além de youtubers, podcasters e outros influenciadores digitais para repetirem as “verdades da tribo”? Viram a importância de médicos em carne e osso (os doutores cloroquinas) para assegurar a autoridade epistêmica tribal para as teorias da conspiração e as falsas informações então distribuídas?
No esforço para manipular e
enganar, mais é sempre melhor
e redundância não é desperdício.
A manipulação é multiplataforma, o ambiente de comunicação é o da integração de meios, os agentes envolvidos podem ser criaturas digitais, evangelistas políticos de carne e osso, robôs e Inteligência Artificial. O segredo não está na monocultura de fake news, mas no monopólio do mercado de distribuição de informação e no domínio dos vários tipos de recursos envolvidos.
Adeus marketing político, bem-vinda propaganda de guerra
A concentração da atenção nas fake news como criaturas digitais ou antidemocráticas não devem nos fazer perder de vista o sentido do seu emprego pela extrema-direita mundo afora.
Desde 2016, há um novo modelo de comunicação estratégica, digital e de extrema-direita, que não apenas colheu grandes êxitos eleitorais, como também produziu um enorme estrago na vida pública e na democracia, como presenciamos no Brasil nas eleições de 2018 e na tragédia sanitária de 2020 e 21. Adotando esse padrão, formulado por pessoas como Dominic Cummings, o roteirista do Brexit, ou Steve Bannon, o estrategista de comunicação de Trump, ídolo de Eduardo Bolsonaro, neste momento há grupos e partidos políticos em qualquer lugar no mundo fabricando e distribuindo, digitalmente, informações incompletas, tendenciosas ou falsas a fim de confundir e manipular os outros.
Isto posto, é comum a objeção de que a disseminação de mentiras sobre adversários e inimigos são comuns à propaganda de guerra, mas também à comunicação política.
Está certo, mas é preciso distinguir a disseminação de informações falsas como recurso eventual e como um processo permanente. No caso da guerra, independentemente dos regimes políticos envolvidos, a manipulação e os enganos direcionados ao público doméstico, aos neutros e aos inimigos, tudo isso pode ser justificado. O problema é quando a manipulação e o engano se transformam em um comportamento permanente, não na guerra, mas na política doméstica.
Quando isso é limitado a episódios, temos a política suja, parte da campanha negativa ou de ataque, que já é por si deplorável. Mas a fase da estratégia de comunicação digital no modelo Cummings-Bannon é a da guerra total, em que o padrão da propaganda bélica substitui o bem-comportado modelo do marketing político.
Propaganda de guerra significa que não há escrúpulos morais que não possam ser transpostos, que não há ação que não se justifique em função da nobre meta que é derrotar um inimigo maligno e perigoso. Sobretudo, significa que enquanto o inimigo não for aniquilado não há descanso nem tréguas.
Além disso, o modelo das campanhas de guerra baseada em manipulação e enganos que começa em 2016 opera em dois fronts ao mesmo tempo. No primeiro, trata-se da guerra de informação em um cenário específico: um país. Identificado os inimigos, os neutros e os nossos, trata-se de demonizar e desmoralizar os primeiros, de causar pânico moral nos segundos ou de seduzi-los, e de integrar e mobilizar os terceiros.
Mas há ainda outra frente, o das instituições da defesa e da garantia da verdade, que, por sua própria natureza, continuarão a opor resistência às investigas propagandísticas voltadas a manipular e enganar. De forma que, ao mesmo tempo em que se combate a guerra de informação contra os inimigos eleitorais (a esquerda ou os liberais, por exemplo), é preciso desbaratar os inimigos institucionais
Há que se destruir as bases das instituições epistêmicas das democracias liberais para assegurar as condições para a existência e a sobrevivência em longo termo da extrema-direita. É então que a máquina de propaganda dos estrategistas de comunicação do trumpismo e do bolsonarismo, por exemplo, passaram a trabalhar para sabotar, por meio de mentiras e teorias da conspiração, a confiança em todas as instituições liberais. O propósito é inocular reiteradamente o ceticismo e a desconfiança contra elas, é invalidar, por difamação e satanização, todas as autoridades epistêmicas que ameaçam a legitimidade e a plausibilidade da extrema-direita.
Uma sociedade que atribui credibilidade ao jornalismo, aos intelectuais, aos professores, à universidade e à ciência, e que os têm em alta conta, não abre espaço para fake news, teorias da conspiração e para a verdade “revelada” e imune a fatos e evidências dos líderes tribais. Eis por que é fundamental que a confiança nessas instituições precisa ser destruída com método e sistema através de uma estratégia de comunicação.
Uma sociedade que confia no STF como intérprete legítimo e autorizado da Constituição não admite que as regras que ordenam a vida pública se dobrem ao arbítrio das facções políticas. É preciso então uma campanha sistemática para deslegitimar a Suprema Corte e os seus juízes, pelo menos enquanto não se conseguir substituir “esses juízes que estão aí” pelos “nossos juízes”.
Uma sociedade que confia na lisura das urnas recusa as ideias de complôs eleitorais e de manipulação de voto quando uma facção política é derrotada nas urnas. É preciso, então, um esforço deliberado de comunicação para levar as pessoas a desconfiarem inteiramente do processo eleitoral.
Não é que haja método no caos, é que não há propriamente caos. Há uma estratégia de comunicação baseada no modelo da guerra total, que batalha em duas frentes simultâneas, gerando a impressão de um frenesi incompreensível de agendas, movimentos e pânico. Há uma ordem, contudo, e uma lógica, pois é preciso ao mesmo tempo ganhar do inimigo político e do inimigo institucional, posto que uma vitória não se sustenta sem a outra. Ao olhar bem, entretanto, veremos tratar-se sempre de uma velha conhecida, que antigamente respondia pelo nome de propaganda, só que vestida para a guerra digital.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)