Quando tudo parece já ter sido perdido

Quando tudo parece já ter sido perdido
Grafite na rua Guaicurus, Belo Horizonte, do projeto 'Profeta Gentileza' (Reprodução)

 

Era julho, quando estive pela primeira vez em Belo Horizonte, Minas Gerais. Já havia ouvido falar muito bem da cidade, principalmente pelos amigos mineiros mais próximos que sempre se referiram a ela como a melhor cidade do Brasil. Coisa de mineiro, talvez. De fato, esta fama se confirmou. O motivo de minha ida a Beagá, como é carinhosamente chamada pelos seus, foi um congresso científico. Entretanto, como todo bom congressista faz, sempre há um dia da semana de congresso destinado única e exclusivamente para o lazer. E naquela cidade mineira não poderia ser diferente, tirei a sexta-feira para conhecê-la com um amigo que, embora não fosse mineiro, me apresentou a cidade como se fosse.

Saímos pelo centro em direção a Santa Tereza e Beagá me ia sendo apresentada através da história das principais construções, sua arquitetura, o estilo art déco de alguns prédios, com certo charme envolvente que o clima da cidade proporciona. Caminhávamos pelo viaduto Santa Tereza, construído sobre as linhas de trem, quando notamos o trânsito de carros completamente congestionado e um aglomerado de pessoas mais à frente. A avenida estava interditada pelo corpo de bombeiros e sobre um dos arcos da ponte um homem ameaçava se jogar sobre os trilhos que passavam por debaixo dela ou sobre a própria avenida. Beagá parou. Não somente o trânsito de carros e de trens paralisou como também muitas pessoas pararam para assistir àquele episódio.

Interrompemos nosso passeio. A primeira coisa que me veio à mente foi “não, não é possível que esteja diante disso”. Estava eu preparado para ver alguém se matar? Logo naquela cidade que estava acabando de conhecer? Embora a ideia de presenciar um suicídio me fosse totalmente avessa, eu parecia ter sido tomado, como a multidão ali presente, por um desejo de ver o desfecho daquilo. Não sabia se o que me chamava mais atenção era o fato em si, um homem qualquer em cima do arco de uma ponte ameaçando se jogar, ou a reação das pessoas diante de tal fato iminente. As reações eram diversas.  Havia os passantes que pararam, tiraram o celular do bolso e começaram a filmar a cena; havia aqueles que saíram de seus carros para poder também registrar o momento; os que, em choque, não tiraram as mãos do volante; e aqueles para quem a vida parecia não poder parar e a buzina era a única coisa ao seu alcance.

Fiquei observando aquilo por alguns poucos minutos e tudo o que eu conseguia fazer era transitar meus olhos entre as telinhas dos celulares das pessoas à minha frente captando aquela cena, na qual o homem, em pé sobre o arco da ponte, era focalizado pelas câmeras. Alguns até tentavam fazer uma aproximação na imagem o que a deixava pixelada a ponto de me fazer pensar que o que importava ali fosse, talvez, menos a qualidade das imagens registradas do que captar o momento preciso em que o homem finalmente tomasse a decisão de interromper a própria vida e a dos outros voltasse a seguir o seu fluxo.

“O que fazia todos estarem ali, parados, sustentando a câmera captar aquela cena?” – me perguntava. Parecia completamente estranho que as pessoas se dispusessem a registrar um momento como aquele. Um momento que ainda não veio e pelo qual todos esperavam. Até aquele dia nunca havia me perguntado qual seria a sensação de esperar a morte do outro chegar, sobretudo quando se está diante da sua iminência. O que passava pela cabeça daquela multidão? O que sentiam diante da vulnerabilidade de alguém que ruma para a sua própria destruição? O que faziam aquelas pessoas enquadrarem na tela de um telefone celular o registro de uma vida prestes a ser levada ao seu fim?

Fiquei pensando que talvez o que mantivesse aquela multidão esperando fosse a certeza antecipada de uma vida que terá sido. “Ele vai se jogar, ele vai se jogar” – possivelmente pensassem. A certeza antecipatória sobre o que terá sido revela o que o público já espera: que um homem qualquer, cujo nome sequer sabemos, tire a sua vida. Que a vida daquele sujeito deixe de existir me parece ser o que nossa sociedade toma como natural. A questão que me persegue é: seria aquela vida lamentada publicamente, caso viesse a ser perdida? Ou melhor: seria aquela perda reconhecida publicamente como uma perda de fato? Imaginemos que ele se jogasse, qual seria a reação da multidão que o assistia? Subiriam o vídeo no Instagram e seguiriam caminhando como se nada tivesse acontecido? Qual seria a legenda? Os comentários? Que apelo teria aquela vida perdida?

Volto a me questionar. Em que consistia a certeza antecipada da multidão? Algo que terá sido? Algo que terá sido vivido? Penso que não. O que me parece é que aquela vida sequer é apreendida publicamente como uma vida de fato. Não me parece que as pessoas que estavam ali filmando estivessem sensibilizadas pelo que viam. Penso que estivessem, provavelmente, mais preocupadas em registar o fim de uma vida que não importa socialmente do que com as motivações que o levaram a estar ali.

“E aí, se joga ou não?” Essa parecia ser a pergunta que circulava de boca em boca. Entretanto, a questão era que nem os lábios se mexiam. Nenhuma palavra parecia bastar naquele momento. Assistiam a tudo aquilo como se estivessem em um filme mudo. O som frenético das buzinas querendo fazer inutilmente o trânsito fluir foi, gradativamente, perdendo o fôlego e dando lugar ao silêncio da espera. De súbito, parecia não haver mais som algum. A cena parecia ter sido congelada. As pessoas paradas, em silêncio, segurando seus celulares com a câmera voltada para o homem, os carros parados, o trem estacionado, e os bombeiros debruçados sobre os arcos estendendo as mãos em direção ao homem em um cuidadoso e meticuloso gesto de salvação cuja frase proferida bem poderia ser: “venha, desça, não se mate, estamos aqui para te salvar!”, não fosse o silêncio que se impunha e impedia que qualquer som circulasse naquela atmosfera que se tornara vazia, extremamente rarefeita. Senti-me imerso em um vácuo. O silêncio era eloquente.

Já eu… eu era incapaz sequer de me mover. Era tanta informação e tantos sentimentos que tampouco sabia se ficava e me rendia ou se seguia em frente. Era insanidade ficar ali. Ficar significava me confrontar o tempo todo com a possibilidade cada vez mais iminente de ter a cena daquele corpo caindo captada – não pela câmera – mas pela retina, pois o registro desta é que fica, perturba, persegue. Receava até mesmo a reação das pessoas se isso de fato acontecesse. A multidão sendo plateia daquela cena me afligia. Já conseguia imaginar o corpo caindo em queda livre e o som das vozes que parecem não sair das bocas pasmas diante de tal cena. Não, definitivamente, eu não era obrigado. Resolvi seguir.

Embora eu me sentisse covarde o suficiente para não permitir que aquele futuro antecipadamente desejado pela multidão não fizesse parte da minha experiência, segui com meu amigo caminhando, perseguido pelo desconforto de não estar ali para ver o que aconteceria àquele homem. Ora, o que poderia eu fazer? Permanecer me faria ter controle sobre sua decisão? Absolutamente nada estava sob meu controle. Mas tampouco me somaria à multidão hipnotizada pela espetacularização de uma cena como aquela. Seguimos, mas o caminhar se tornara já um pouco denso e meus passos já não tinham a mesma leveza da contemplação da cidade que me era apresentada antes. O ar pesava. Definitivamente, conhecer Beagá se tornou algo bem impactante.

A história poderia ter terminado por aí, e eu não saberia tão logo o que teria acontecido àquele homem. Teriam os bombeiros conseguido salvá-lo? Teria ele, finalmente, tomado a decisão de se jogar? Seguimos caminhado em direção à Santa Tereza arrastando esse sentimento. Falávamos sobre como o suicídio é um tabu em nossa sociedade a partir do que muitas matrizes religiosas afirmam. A conversa rumava a uma discussão metafísica. Meu amigo, praticante do hinduísmo e eu, do candomblé, começamos a falar sobre as consequências, segundo nossas vivências e crenças, de se interromper aquilo que é considerado o fluxo natural da vida, os desdobramentos de se tirar a própria vida, em uma compreensão orgânica do mundo.

Enquanto caminhávamos e tentávamos digerir aquilo, um conhecido seu passou e comentou que o homem que estava sobre a ponte havia passado por ali horas antes, totalmente transtornado, gritando que iria se matar porque a travesti o havia abandonado. Seguiu comentando que o homem dizia que já não tinha casa, não tinha emprego e que, agora, sem a travesti não tinha nada a perder e que ele iria se matar. O que parecia estar se tornando um passeio acompanhado de uma conversa abstrata ganhou novos contornos. Tivera eu esta informação momentos antes quando me deparei com aquela cena na ponte e o enquadramento que eu faria dela seria outro. Aquele homem não estava ali à toa e sua motivação em se suicidar me trazia, pelo menos, duas reflexões.

A primeira delas é que aquele homem era um morador de rua e sem trabalho. Ao contrário de muitos que pararam para filmá-lo, ele não podia contar com uma rede institucional de apoio e proteção que lhe garantisse as condições mínimas de sobrevivência. Moradia e trabalho são duas condições básicas que um Estado democrático e de direito pode e deve oferecer aos seus cidadãos. Não ter onde morar e não ter um trabalho é indicativo, não de uma incompetência ou incapacidade daquele que está nesta condição, mas sim da condição da maximização da precariedade politicamente induzida pelo próprio Estado. Pensar que no contexto brasileiro as populações que mais sofrem com essa condição maximizada de precariedade é a população negra (dentre os indígenas, quilombolas, e a lista segue extensa) aquele homem sobre a ponte, negro, mal vestido, e sem as condições mínimas de ter uma vida digna não poderia representar outra coisa senão mais uma pessoa esquecida pelo Estado, exposta à violência de toda natureza e, sobretudo, exposta à morte.

Aquela vida sobre os arcos da ponte era uma vida esquecida pelo Estado em sua multiplicidade: esquecida pela sociedade, por nós mesmos, pela mídia, pelas instituições de proteção, de apoio, educacionais, etc. Talvez o único momento em que o Estado tivesse se lembrado de sua existência fosse aquele em cima da ponte. Talvez as poucas horas em que esteve ali, parado sobre os arcos, decidindo se punha fim à própria vida ou não, talvez aquele fosse o único momento em que ele tenha se sentido vivo de fato. Prestes a morrer e, no entanto, mais vivo do que nunca. Como é sentir isso? E por que as pessoas pararam? Por que os carros pararam? Para que veio a mídia? Para quê veio o Estado? Os bombeiros? Os transeuntes todos? Teria o homem, naquele último momento, tido a sua vida reconhecida publicamente como uma vida vivível, como uma vida digna de ser vivida?

Não, me parece que ainda assim, não. Parece-me que mesmo aqueles que passam como invisíveis em nossa sociedade, quando se dispõem a tirar aquilo que lhe é de último e máximo valor, mesmo assim são percebidos como um incômodo. Ao que me parece, Beagá parou por um momento não porque se chocou com a iminência daquela perda, mas porque aquele homem, ao tentar se matar publicamente, interrompia o fluxo da cidade. Beagá parou não porque ele não poderia morrer, mas porque ele não poderia morrer na contramão, atrapalhando o tráfego, parafraseando Chico Buarque. Esse talvez fosse o incômodo.

Beagá não me parece ter parado para lamentar publicamente – ainda que de forma antecipada – uma vida que estava prestes a ser perdida. Primeiro porque dificilmente a maior parte dos que estavam ali, assistindo e espetacularizando aquela cena, se importavam com aquela possível perda. Queriam mesmo é que ele se resolvesse logo e liberasse o fluxo natural de suas vidas que, estas sim pareciam estar presas, paralisadas no tempo, na dependência de sua escolha. O que tal homem fizera naquela tarde de sexta-feira foi mostrar, talvez pela primeira vez, que ele existe. E que sim, o tempo da cidade estaria, ainda que por poucas horas, condicionado à sua decisão. Se jogar ou não talvez não fosse meramente uma escolha individual, mas implicação de que o nosso tempo presente se rendesse ao seu futuro, ao seu porvir. Afinal, dar fim à sua vida no espaço público implica revelar que sua vida está ontologicamente implicada na vida do outro, que vivemos todos em uma ontologia social de interdependência, na qual as vidas estão complicadas. Por que seria natural que nossas vidas seguissem o fluxo e a dele fosse interrompida de forma breve e súbita?

A segunda reflexão é que o abandono por parte do Estado, por meio da complexa malha que o compõe, ainda que o tenha colocado em uma condição de maximização da precariedade, não fora o suficiente para fazê-lo desistir de viver. Para quem sequer é visto como alguém em nossa sociedade, invisibilizado por uma série de opressões e violências, sentir-se amado pelo outro talvez seja o respiro diário, a razão de acordar todos os dias. O que nos definiria como humanos senão o amor? Ainda que tal homem fosse considerado pela sociedade como menos que humano, amar talvez fosse, para ele, seu último vestígio de humanidade. O que o mantinha vivo. Viver na rua, sem trabalho, exposto às mais variadas ameaças e violências parece ser umas das maiores crueldades que criamos. Entretanto, a possibilidade de vir a perder aquilo que parecia ser a sua única razão de viver, que estava além de qualquer valor e importância foi a gota d’água. Não há nada capaz de nos manter vivos, em pé, comendo, andando quando parece já não haver nem amor. Seria esse o seu sentimento em cima daqueles arcos? Seria essa a sensação de alguém para quem tudo parece já ter sido perdido?

Fico imaginando se aquela que parece tê-lo deixado voltasse naquele momento e lhe estendesse as mãos, em vez do Estado. Ela seria, talvez, a única capaz de fazê-lo sair dali. A travesti. Possivelmente, a única para quem ele era, de fato, alguém. Não surpreende que a única que talvez conhecesse seu nome e sua história fosse, também, uma figura extremamente marginalizada em nossa sociedade, uma travesti. Para ele, talvez mais insuportável que ter sido abandonado pelo Estado e pela sociedade foi ter sido abandonado por alguém, também como ele, já quase sem nenhum valor social. Para onde teria ido a travesti? O que lhe tinha acontecido? O que causara o rompimento dos laços entre aqueles que se reconheciam como vidas dignas de serem vividas e, mais importante, de serem amadas? Aqueles a quem, única e exclusivamente, se conheciam e se reconheciam como gente. Talvez o que fizesse tal homem suportar uma vida invisível fosse o fato de que, para ao menos uma pessoa, ele não fosse totalmente invisível. Ele existia.

Fico pensando o que se passava em sua mente enquanto estava sobre os arcos. Talvez seu último desejo antes de decidir se matar fosse ter a sua vida reconhecida, publicamente, como uma vida que foi vivida, como uma vida que teve uma história, uma história de amor que o fazia viver. Talvez aquelas poucas horas em que permaneceu sobre a ponte fosse também seu desejo inconsciente de ser reconhecido ao menos uma vez pela sociedade que o invisibilizara, como um ser cuja vida valeu a pena ter sido vivida, a despeito de toda dor e abandono.

Deixei Beagá naquele mesmo dia e soube pouco depois, por notícias, que os bombeiros conseguiram, depois de algumas horas, convencê-lo a não se jogar. O Estado parece ter salvado aquele que ele mesmo abandonara. A multidão deve ter ido para casa frustrada, afinal o que mais esperava não aconteceu. O tal homem não se jogou, ninguém pode fazer upload dessa tragédia no Instagram. Nada se compartilhou, nada se comentou nas redes, exceto uma notícia em um site da cidade no qual o rapaz foi noticiado como sem identificação. Devem ter ido embora desapontados e com o sentimento de terem perdido algumas horas de suas vidas, ao fim e ao cabo, seus olhares pareciam estar mais preocupados com a cena em si do que com o sofrimento daquele homem. É certo também que parte daquela plateia talvez tenha realmente se sensibilizado com sua dor, mas isso não apaga o fato de que foi preciso ele demonstrar publicamente sua falta de seguir vivendo para que o notassem. Sobre o homem, nunca mais tive notícias. Não sabemos se segue vivo, se continua sem emprego ou se ainda mora na rua. Mas se um dia eu tivesse a chance de encontrá-lo, gostaria mesmo é de saber como vai seu coração, se anda amando, se anda amado, pois essa parece ser a única forma de continuar existindo.


VINÍCIUS SANTIAGO é doutorando no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Pesquisa políticas de resistência à violência de Estado e é apoiador e militante da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência do Estado do Rio de Janeiro

(2) Comentários

  1. Texto sensível, profundo e claríssimo sobre o valor do humano e do amor que deveria nos aproximar a todos. Parabéns, Vinícius Santiago!

  2. Vi, temos opiniões bem divergentes sobre diversos assuntos..rsrsr.. No entanto, não posso deixar de comentar sobre o texto. Dois aspectos: a sensibilidade a flor da pele com relação ao sentimento do próximo, e o texto muitíssimo bem escrito. Parabéns, e na minha humilde opinião de prima, acho que você seria um escritor muito bem sucedido (não só financeiramente, pois sei que não é primordialmente isso que busca). Um escritor que conseguiria atingir as pessoas pela forma como escreve. Parece que vemos sentimento na ponta dos seus dedos… Prima Mara

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