Quando Hilda Hilst tentou falar com os mortos

Quando Hilda Hilst tentou falar com os mortos
A autora Hilda Hilst, nos anos 60 (Foto Jose Luis Mora Fuentes/Acervo Instituto Hilda)

 

Entre 1974 e 1978, Hilda Hilst (1930-2004) praticamente abandonou a poesia. A autora, então na casa dos 40, decidiu se dedicar a outro tipo de tarefa: o contato com espíritos. Munida de um gravador e de imensos fones de ouvido, ela caminhava pelo pátio da sua residência em Campinas, a Casa do Sol, fazendo perguntas para seus “amigos de outra dimensão”.

Três décadas mais tarde, durante uma visita à Casa do Sol em 2008, a cineasta Gabriela Greeb encontrou mais de 100 horas de gravação das tentativas da autora de comunicação com o além. Decidiu rodar ali mesmo um documentário sobre a faceta mística de Hilst – que, apesar de tantos terem considerado mera excentricidade, revela muito sobre questões que moveram a sua obra.

“Em seus escritos, Hilda demonstrou inconformismo com a finitude da vida, algo que aparece tanto na poesia, quanto na prosa e no teatro. É uma marca dela”, afirma Greeb, que trabalhou durante sete anos no filme Hilda Hilst pede contato, cuja estreia em festivais de cinema está prevista para março de 2018. Quando estudava no Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, Hilda costumava rezar na capela pedindo que fosse canonizada e se tornasse imortal.

Mais velha, a autora tinha convicção da existência da vida após a morte e buscava uma espécie de aval científico para essa certeza, afirma Leusa Araujo, amiga de Hilst. “Não era uma atividade religiosa, nem louca. Ela tinha método científico, baseava-se em experimentos realizados fora do país e se dedicava integralmente a isso”, afirma.

Tudo teria começado com a leitura de Telefone para o além (1964), do sueco Friedrich Jurgenson, que se dizia capaz de registrar vozes de espíritos com um gravador. Hilda tentava reproduzir os experimentos de Jurgenson todos os dias, por cerca de nove horas, e há registros de tentativas de contato com Clarice Lispector, Albert Camus e Cacilda Becker.

A escritora chegou a considerar aquela uma atividade ainda mais importante do que a sua própria escrita. A dedicação ao assunto era tamanha que, em 1977, participou do 5º Colóquio Brasileiro de Parapsicologia, e se correspondeu com universidades estrangeiras que estudavam o assunto, como a Universidade de Friburgo e o Instituto de Psicologia de Dublin. Encerrou as experimentações quando ouviu a frase “Hilda faz aborto”, o que interpretou como um pedido pelo fim das pesquisas.

Cena do filme 'Hilda Hilst pede contato', de Gabriela Gree, que chega em março aos cinemas (Foto: DIvulgação)
Cena do filme ‘Hilda Hilst pede contato’, de Gabriela Greeb, que chega em março aos cinemas (Divulgação)

Ouvir e ser ouvida

Além da busca por respostas para os mistérios da morte, estudiosos enxergam essas experimentações psíquicas como uma espécie de metáfora pessoal de Hilda em sua procura pelo outro: sabe-se que a autora se considerava pouco lida, quase nada compreendida pelos leitores e ignorada pelo mercado editorial. Ao se lançar nessas experiências, buscava um diálogo que não conseguia manter com o próprio meio literário.

“É simbólico que ela não buscasse fantasmas, imagens ou aparições, mas vozes: Hilda queria ter sua voz ouvida tanto quanto queria ouvir as vozes”, afirma Gabriela Greeb. Até 2001, quando a editora Globo comprou os direitos da sua obra, Hilst ressentia-se com o fato de seus livros só serem encontrados em sebos “ao lado de autores mortos”. “Escrevo livros que talvez sejam muito valiosos, mas que ninguém lê, que nada provocam, que não encontram nenhum eco nos outros”, lamentou-se em uma entrevista de 1977.

Doutora em Literatura Brasileira pela USP e co-autora do livro Por que ler Hilda Hilst (2010), Luisa Destri vê tais tentativas de comunicação com o além como mais uma forma de Hilda atingir “o outro”, algo que permeou toda a sua obra: primeiro quando deixou a poesia de lado para se dedicar ao teatro, entre 1967 e 1969 – período no qual escreveu oito peças, todas de cunho político em oposição à ditadura militar. Depois, quando estreou na prosa em 1970 com Fluxo-floema e, mais tarde, em 1990, ao inaugurar sua escrita obscena com O caderno rosa de Lori Lamby.

“Isso mostra o quanto ela estava acometida pela ideia de tocar o outro. E não deixa de ser uma pista sobre por que ela não estava simplesmente louca em suas buscas por diálogo. Hilda estava, de certa forma, longe da civilização, na Casa do Sol, mas sentia o desejo de interferir na vida pública”, afirma Destri. “Ela queria tocar o outro, chacoalhar suas convicções e fazê-lo se importar com temas que, na visão dela, eram importantes, como a morte”, diz Leusa Araujo.

Hilst achava estranho que as pessoas não se importassem com a finitude da vida – “a problemática mais importante do homem”, em sua opinião. “Eu proponho uma remodelagem”, disse ela, em entrevista de 1977, ao final de suas experiências com o além, “dirijo uma proposta diferente para atingir o outro, de acordo com uma visão que tenho dele, uma torrente: fazer com que o outro exploda, que seja obrigado a praticar por conta própria esse processo que é, ao mesmo tempo, de regresso e de autoconhecimento”.

No filme de Greeb, a primeira obra para o cinema sobre Hilda Hilst, aparecem depoimentos de Jorge da Cunha Lima, Gutemberg Medeiros, Dante Casarini, Olga Bilenky, entre outros amigos e estudiosos da obra da escritora, além de imagens de arquivo e dramatizações em que a autora é interpretada pela atriz Luciana Domschke. “A busca pelo além é uma busca pelo invisível, que é, essencialmente, uma busca poética”, afirma a cineasta. “Afinal, o que é a poesia senão algo invisível?”

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