Na casa de Hilda Hilst

Na casa de Hilda Hilst
Hilda, aos 69 anos, na Casa do Sol (Foto Pio Figueroa, Centro de Documentação Cult. “Alexandre Eulálio” / UNICAMP)

 

Leusa Araujo chegou até a porta do bar, mas não ousou entrar. Foi uma tremenda sorte. Lá dentro, acontecia o lançamento do livro de poesia Da morte. Odes mínimas que, mais tarde, terminaria interrompido abrupta e dramaticamente pela própria autora, Hilda Hilst. Notoriamente uma mulher de rompantes, de temperamento forte, ela decidiu encerrar o jantar comemorativo puxando a toalha da mesa, derrubando pratos, copos e talheres de todos, após ser provocada e ofendida por uma das convidadas. Talvez não fosse o momento ideal para o encontro.

A jornalista, à época com vinte anos de idade, fora pega de assalto pela prosa poética da escritora paulista. “Li Kadosh, primeiro livro dela que me caiu nas mãos e pelo qual me apaixonei; depois li Fluxo-Floema, o livro decisivo da minha afinidade com a obra. O efeito foi castrador: simplesmente parei de escrever. Precisava conhecer a mulher cuja obra estava mudando minha vida, mas chegando lá não consegui reunir coragem para entrar. Não me sentia convidada”, recorda Leusa – hoje, uma escritora com diversos livros publicados e 35 anos mais velha – em seu escritório na Zona Oeste de São Paulo.

Assim como Leusa Araujo, muitos outros leitores se aproximaram de Hilda instigados por sua obra, e acabaram ou morando em sua casa, em Campinas, ou tornando-se um grande amigo, visitando-a nos finais de semana. Não era fácil ser amigo de Hilda, já que sua sinceridade, às vezes áspera, poderia por tudo a perder. Ao mesmo tempo, não há um dentre os amigos entrevistados que deixe de citar generosidade e carinho como fortes características da escritora.

Ela mesma, nos anos 1980, anotara numa agenda a lista de seus melhores amigos – Leusa está nessa listinha. Essa agenda, que testemunha o ambiente intelectual, afetivo e, claro, às vezes tempestuoso, dos seus últimos anos de vida, esteve exposta na Ocupação Hilda Hilst, no Itaú Cultural, em São Paulo, e marcou o início de um parceria importante entre o Itaú Cultural e o Instituto Hilda Hilst. Essa parceria prevê a preservação do acervo da escritora, na Casa do Sol.

 

Hoje, a obra de Hilda Hilst está bem mais acessível aos leitores. Foi reeditada pela Editora Globo, com organização do crítico literário Alcir Pécora, e agora está nas mãos do selo Biblioteca Azul, da mesma editora, que promete, para o segundo semestre deste ano, uma edição de sua poesia completa e um livro que compila as cartas trocadas entre ela e o escritor Mora Fuentes, que chegou a morar na sua casa nos anos 1970 e ter um relacionamento amoroso com a escritora.

Além disso, ela também será tema do documentário Hilda Hilst pede contato, dirigido por Gabriela Greeb, e será interpretada pela atriz Tainá Müller, numa cinebiografia dirigida por Walter Carvalho. Mas quando estava viva, em pleno vigor intelectual, conseguir uma editora para seus livros era uma luta que envolvia quase todos seus amigos. E seus livros mais antigos só eram encontrados em sebos, como lembra Leusa Araujo.

O primeiro encontro entre ela e Hilda, de fato, aconteceu apenas em 1985, cinco anos depois do lançamento de Da morte. Odes Mínimas, quando a jornalista já havia lido tudo o que pudera encontrar da escritora pelos sebos da cidade de São Paulo. Sentindo-se mais preparada, decidiu fazer uma visita a Hilda em sua residência na cidade de Campinas, a Casa do Sol. “A simpatia foi imediata quando ela percebeu que eu havia lido seus livros, porque o assunto na casa era literatura e a obra da Hilda, prioritariamente”, conta. Logo, a escritora lhe propôs um trabalho: que ela escrevesse um texto introdutório para a reedição de sua prosa que estava sendo negociada com uma editora. O projeto, no entanto, não vingou.

A partir disto, Leusa começou a conhecer as dificuldades que a autora, apesar de adorada pela crítica, sofria em sua relação com o mercado editorial. A jornalista passou, então, a exercer informalmente um papel de agente literária, recebendo originais da escritora, divulgando seu trabalho em editoras e veículos de comunicação. Algum tempo depois, conseguiu contato com o jornalista Eugênio Bucci, que trabalhava como assistente de Caio Graco, diretor da Brasiliense, que foi então convencido a publicar, em 1986, a novela inédita Com meus olhos de cão acompanhada de outros trabalhos de prosa poética que já haviam sido publicados anteriormente.

O processo de edição do livro foi doloroso para Hilda, que se ressentiu com o tratamento de segunda classe dispensado pela editora. “Ela percebeu que o projeto estava acontecendo por causa dos amigos, que o Caio não se engajou. Acabou se indispondo com ele, que não foi visitá-la, não foi fazer uma corte que ela sabia que, por exemplo, a Lygia Fagundes Telles tinha com o Pedro Paulo de Sena Madureira. O Eugênio foi quem tocou tudo”, diz Leusa, que trabalhou no projeto junto com a jornalista e poeta Luíza Mendes Furia, outra amiga cujo nome consta na agenda da escritora.

Jardim da Casa do Sol, cujo paisagismo foi feito por Mora Fuentes nos anos 1980 (Foto Helder Ferreira)
Jardim da Casa do Sol, cujo paisagismo foi feito por Mora Fuentes nos anos 1980 (Foto Helder Ferreira)

Como Cassandra

Juntas, elas continuaram assessorando-a na gestão de sua obra, participando da revisão e preparação dos manuscritos de Sobre tua grande face, Amavisse –  que foi rejeitado pelo extinto programa Bolsa Vitae de Artes – e Alcoólicas, livros de poesia que foram  publicados pela editora Massao Ohno. Também estavam presentes quando Hilda decidiu que começaria a escrever pornografia. “Ela disse, certa vez, que precisava ganhar dinheiro, que iria virar uma escritora erótica e vender tanto quanto Cassandra Rios. Demos risada”, relembra Luíza. “Então ela escreveu O caderno rosa de Lori Lamby, me mostrou e eu disse: olha, Hilda, isso aqui é muito engraçado, mas não tem nada a ver com Cassandra Rios; tem você aqui. E ela concordou: ‘Também achei muito divertido, morri de rir escrevendo’.”

Quem dera todos possuíssem o mesmo senso de humor. As estripulias sexuais da personagem de oito anos de idade escandalizaram muita gente: o crítico literário Léo Gilson Ribeiro, por exemplo, cortou relações com Hilda e nunca mais voltou a escrever sobre ela, e o artista plástico Wesley Duke Lee recusou-se a ilustrar a obra. Por fim, o desenhista (e humorista) Millôr Fernandes aceitou a empreitada, mas nenhum editor se interessou em publicar o romance além de Massao Ohno, que já havia publicado diversos livros da escritora.

“O Massao era ótimo para publicar, mas não era um empresário, um grande distribuidor”, comenta Luíza. “Para se ter uma ideia, certa vez fui até o escritório da editora, que ficava  em São Paulo, na Rua da Consolação, buscar alguns exemplares de Lori Lamby para Hilda e, quando cheguei lá, não encontrei ninguém além de um cachorro. Eu entrei – porque estava tudo aberto –, peguei o pacote de livros e fui embora.”

Ainda em 1990, a editora Siciliano publica Contos d’Escárnio – Textos grotescos, mesmo ano em que o jornalista alagoano Jurandy Valença chega a São Paulo, aos 21 anos, com o objetivo de conhecer a escritora. Após três meses na capital paulista, ele conseguiu o número de telefone da Casa do Sol e chorou quando, na terceira tentativa, ouviu a voz de Hilda do outro lado da linha. Passou a frequentar o local todos os fins de semana até que, no ano seguinte, mudou-se para lá a convite da nova amiga, que lhe ofereceu três coisas: casa, comida e tempo. “Não tenho dinheiro para te oferecer, mas você vai entender que o tempo é bem mais valioso”, ela disse.

Ele se adequou à rotina da casa, onde viveu por quase cinco anos: “O cotidiano era voltado totalmente para a leitura. Ela acordava, tomava café, conversávamos sobre o que tínhamos lido. Ela lia em média de oito a doze horas por dia. Parava pra almoçar, voltava a ler de novo e às 20h ela parava tudo pra ver o Jornal Nacional e a novela das nove”.

Certa vez, ele leu para Hilda cerca de trinta poemas que havia escrito. Ela ouviu todos silenciosamente, fumando seus cigarros Chanceler, para só depois anunciar seu veredicto: “Ju, se você acha que é um poeta, você está totalmente equivocado. Tudo o que você leu aí é uma merda”. Enquanto ele se recupera do choque, ela vai até sua biblioteca e volta com três livros de filosofia – O livre arbítrio, de Schopenhauer, Temor e tremor, de Kierkegaard e Ecce homo, do Nietzsche. “Para ser um grande poeta, você não tem que se contaminar com  a poesia; você tem que ler filosofia, precisa entender o que é palavra, o que é pensamento”, sentenciou ela.

A artista plástica Olga Bilenky e seu filho, Daniel Fuentes, presidente do Instituto Hilda Hilst (Foto Helder Ferreira)
A artista plástica Olga Bilenky e seu filho, Daniel Fuentes, presidente do Instituto Hilda Hilst (Foto Helder Ferreira)

Durante os primeiros anos, ele mal saía de casa; apenas se dedicava à leitura, à escrita e aos afazeres domésticos – entre os quais, o trato da matilha que já contava com mais de sessenta cães. Com três anos e meio, começaram as brigas, especialmente quando ele começou a se relacionar com pessoas de sua idade. “A Hilda era taurina, extremamente possessiva. Ela perguntava: ‘Quem em Campinas é mais interessante que eu?’; ou então pedia que eu levasse as pessoas para casa. Só que havia três requisitos para isso: a pessoa tinha que gostar de cachorro, conhecer ela e ser culto.”

Em uma dessas reuniões, ele convidou Edson Costa Duarte, apelidado pelos amigos de “Morto”, que fazia mestrado sobre Clarice Lispector na Unicamp, e mais dois colegas. Estavam todos bebendo há algum tempo, quando Hilda disse que Edson era mau, horrível, que não gostava dele e queria que ele fosse embora de sua casa. Em seguida, foi dormir. “No dia seguinte, ela já era outra; disse que achava meu apelido um horror e que ia me chamar de ‘Vivo’”, recorda ele. “Pela primeira vez, eu vi uma pessoa que tinha um interesse genuíno pelo outro, uma pessoa de espírito largo. Quando ela me mandou embora e disse que estava com medo de mim, de alguma maneira ela se mostrou frágil também.”

Depois do primeiro mal-entendido, acabaram se tornando amigos. Vivo foi morar na Casa do Sol três meses depois e por lá ficou durante dez anos, fazendo companhia à escritora, ajudando-a na administração do lar e chegando até a organizar a parte de seu arquivo que foi vendida à Unicamp. Lá se aprofundou na obra de Hilda, que foi tema de sua tese de doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina. A mudança para Florianópolis, em 2002, também teve outro motivo: ele não queria acompanhar a morte da amiga. “Eu conheci uma Hilda no início dos sessenta anos, totalmente viçosa, sarcástica, virulenta na coisa da palavra, violenta às vezes nos atos. Não suportava vê-la tão debilitada”.

Tumor encapsulado

Os problemas de saúde de Hilda começaram a surgir na segunda metade dos anos 1990. A artista plástica Olga Bilenky, viúva do escritor Mora Fuentes – grandes amigos que moraram na Casa do Sol nos anos 1970 –, conta que ela e o marido estranharam o emagrecimento da escritora e levaram-a ao médico, que descobriu no pulmão de Hilda um tumor encapsulado. “O médico disse que a vida dela iria reflorescer depois de retirar o tumor, mas não foi isso que aconteceu. A partir desse tumor, que não foi a causa de nada, começaram a acontecer coisas: ela sofreu duas quedas e teve três isquemias cerebrais”, relembra.

Em fevereiro de 2004, aos 73 anos, a escritora  morreu por falência múltipla dos órgãos, após ficar 35 dias internada para a realização de uma cirurgia, devido a uma queda que lhe causou uma fratura no fêmur. Por causa da deficiência crônica cardíaca e pulmonar que sofria, Hilda não conseguiu “voltar” da anestesia. “Durante o Réveillon de 2004, ela começou a ficar meio torta e nós achamos que era o início de um derrame, levamos ela ao hospital e descobrimos que era uma infecção urinária. Ela voltou pra casa, olhou no espelho e disse: ‘Olga, eu estou ótima para tudo que está acontecendo’. De alguma forma, durante a noite, ela caiu, tropeçou num cachorro, talvez, e o fêmur dela quebrou.”

Segundo a artista plástica, a morte de Hilda foi um grande baque para Mora Fuentes, que voltou a morar na Casa do Sol nos últimos anos de vida da escritora para ajudá-la. “A morte dela foi para ele o que a dele foi para mim. Foi outro grau de perda diferente do meu, porque eu amei muito a Hilda, mas ele e ela tiveram uma profunda harmonização. Foi um grande encontro mesmo, sabe? Eu não teria conhecido a Hilda não fosse o Zé (Mora Fuentes), mas ele a teria conhecido. Foi uma grande amizade apesar de eles serem um o contraponto do outro, como Hillé e Ehud”, diz ela, fazendo referência aos personagens da novela A obscena Sra D, que ela acredita que Hilda tenha escrito baseada na relação com o amigo.

Há alguns anos, Olga voltou a morar na Casa do Sol, onde, desde 2005, funciona o Instituto Hilda Hilst, fundado por ela e Moura Fuentes, a quem Hilda deixou parte da propriedade. A Daniel Fuentes, filho do casal que cresceu visitando e passando férias na casa de Hilda, ela deixou os direitos autorais de sua obra completa. É ele também que preside o Instituto desde a morte do pai, em 2009, além de gerir e divulgar a obra da escritora. “Minha função foi construir uma lógica econômica racional para a preservação e divulgação desse legado todo. Com direitos autorais você pode fazer como todo mundo faz no Brasil, que é uma gestão passiva, um escritório onde você administra contratos por demandas que vêm de fora. Óbvio que fazemos isso também, mas não é nem dez por cento do trabalho”, completa.


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