“Qual Estatuto da Família? Em defesa dos direitos e da pluralidade”
Está em curso, em nosso país, uma onda conservadora que tem estimulado uma modalidade de “pânico moral” nos debates públicos sobre gênero e a sexualidade.
Segundo este conceito, notabilizado pelo sociólogo Stanley Cohen, pânico moral ocorre quando “uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge para ser definido como uma ameaça aos valores e interesses sociais, a sua natureza é apresentada de uma maneira estilizada e estereotípica pelos mass media; barricadas morais são fortalecidas […]; peritos socialmente acreditados pronunciam os seus diagnósticos e soluções; modos de coping são desenvolvidos ou (mais frequentemente) é procurado refúgio nos já existentes; a condição desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se menos visível”.
Após uma intensa campanha dos setores religiosos evangélicos fundamentalistas pela “cura gay” contra a “pervertida” comunidade LGBT, foi a vez de a Igreja Católica mobilizar seus diferentes grupos internos em uma cruzada contra a inclusão do combate à discriminação por gênero, identidade de gênero e orientação sexual nos planos de educação por todo o país.
“Cura gay” e a luta contra a “ideologia de gênero”, ambos os termos oportunisticamente concebidos por esses religiosos conservadores, são duas faces da mesma moeda do pânico moral que tenta frear as conquistas do respeito à diversidade e estigmatiza as demandas dos movimentos LGBT e feminista.
Estatuto de uma única família: o PL 6583/2013
Outro, agora, parece ser o foco dos arautos do pânico moral: a aprovação do “Estatuto da Família”, nome generoso dado ao PL 6583/2013 por seus entusiastas e que, atualmente, encontra-se em trâmite no Congresso Nacional.
Este PL apresenta uma regulação bastante regressiva e pretensamente exaustiva das relações familiares, sexuais e afetivas em nosso país. De início, define família como a união entre um homem e uma mulher ou ainda a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Além disso, impõe diretrizes para a atuação estatal e suas políticas públicas nesse campo. Exemplo disso é a instituição obrigatória da “Educação para família” nos currículos do ensino fundamental e médio, além da obrigatoriedade da celebração do Dia Nacional de Valorização da Família nas escolas. Ademais, cria os Conselhos da Família, “órgãos permanentes e autônomos” para “tratar das políticas públicas voltadas à família e da garantia do exercício dos direitos da entidade familiar”.
Em primeiro lugar, tal projeto, se aprovado, consistirá em perigoso precedente de invasão do Estado e seus instrumentos regulatórios na esfera da autonomia privada e das liberdades individuais, dimensões protegidas em mais alto valor por nossa Constituição de 1988.
Além disso, a compreensão essencializada e imutável de família adotada nesse texto legal como “união entre um homem e uma mulher” parece remeter à matriz patriarcal romana, na qual mulher, filhos e escravos se submetiam ao poder paterno, que detinha o direito de vida e de morte sobre todos.
Além de total anacronismo, tal compreensão afronta diretamente a interpretação conferida à Constituição pelo Supremo Tribunal Federal que, em maio de 2012, julgou procedente a Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 (ADPF 132), que foi ajuizada pelo governador do estado do Rio de Janeiro com o objetivo de equiparar as uniões civis homoafetivas das heterossexuais, conferindo-lhes os mesmos deveres e direitos. O Conselho Nacional de Justiça também regulamentou o tema, conferindo-lhe maior concretude e efetividade.
Os critérios fundamentais para o reconhecimento da união homoafetiva são “durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família”. Ou ainda “notas factuais de visibilidade, continuidade e durabilidade” e “existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum e a identidade de uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade”, conforme trechos dos votos dos Ministros.
Assim, os fundamentos jurídicos dessa decisão foram, basicamente, os princípios da igualdade, da não discriminação, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica e da razoabilidade ou da proporcionalidade.
Contudo, se, mesmo com a resistência e a mobilização da sociedade civil organizada, for aprovado este PL, não caberá outra alternativa à Presidenta Dilma senão vetá-lo ou então à Suprema Corte senão declará-lo inconstitucional, por afrontar diretamente a proteção dos direitos já garantidos pelo STF e pelo CNJ.
Famílias: uma palavra que só existe no plural
Como apontou Engels em seu clássico livro “Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, a família é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema.
Assim como os modos de vida e de organização da sociedade mudaram, também a figura da “tradicional família” passou por importantes transformações em relação aos sistemas de parentesco, às formas de matrimônios, à gestão dos patrimônios, às possibilidades de dissolução e reconstrução dos laços, à gestão dos desejos e dos afetos.
Hoje, em nosso país, há famílias nucleares (com mãe, pai e filhos), ampliadas (com terceiros de fora dessa estrutura nuclear), recompostas, monoparentais, homoparentais, dentre outras.
Foi a estrutura tradicional da família, como meio de reclusão e caixa de ressonância do mundo social, que produziu toda a sintomatologia das neuroses e de outros distúrbios psíquicos como constatado, há tempos, pela psicanálise. Não há o que temer em sua reinvenção.
Outros estatutos da família estão em trâmite também no Congresso para dar guarida à diversidade. Por exemplo, o PL 470 de 2013 do Senado Federal, que consagra a proteção da “família em qualquer de suas modalidades e as pessoas que a integram”, prescrevendo que “todos os integrantes da entidade familiar devem ser respeitados em sua dignidade pela família, sociedade e Estado”.
Não há razão, assim, para que o direito exclua essas diferentes formas de convivência, de afeto e de arranjos familiares. Desse modo, não cabe ao direito senão adequar-se à rica realidade das famílias contemporâneas, que não podem ser reduzidas a uma estrutura patriarcal, nuclear com finalidade meramente procriativa e de gestão de patrimônio.
As conformações familiares devem ser uma opção de convivência sujeita à inventividade múltipla e infinita de seres humanos capazes e maiores de idades. Não cabe ao Estado ditar as formas de estruturação das relações afetivas, sexuais e familiares, mas sim proteger a pluralidade intrínseca a esta dimensão da vida em sociedade.
Diante desse cenário, diversas universidades por todo o país realizarão, entre os dias 28 de setembro e 2 de outubro, o Ciclo Nacional de Debates “Qual Estatuto da Família? Em defesa dos direitos e da pluralidade”. Confira quando ocorrerá este debate em sua cidade e ajude na mobilização contra o PL 6583/2013, que sonega direito a milhões de cidadãos em nosso país.
Abaixo, o link da página do Facebook do ciclo nacional:
https://www.facebook.com/portodasasfamilias?fref=ts