Punk na moda

Punk na moda

“Repugnante”, “ultrajante”, “infame”, “podre”. Esses são alguns dos adjetivos que foram usados pela mídia para descrever a fauna humana que circulava pela King’s Road em Londres, no final da década de 1970.

 

Com seus cabelos espetados, descoloridos ou tingidos em cores berrantes, a maquiagem extravagante e coleiras de cachorro no pescoço, coberta por taxas pontiagudas, essa tribo exótica agredia, com seu visual rude e grotesco, a sociedade inglesa apoiada nas tradições da monarquia e nas utopias comunitárias dos hippies, que a essa altura já davam sinais de decadência.

Tudo no visual punk antagonizava os padrões vigentes, numa inversão total de valores. Se os hippies usavam cabelos soltos e longos, os punks apostavam em cabelos curtíssimos ou espetados, pintados de cores fluorescentes. Onde imperava o conforto, o orgânico e o natural, os punks traziam o sintético, o artificial, o pontiagudo. Às flores do flower power e ao smile (o ícone da carinha amarela sorridente), opunham-se tachas, correntes e giletes, abraçando a dor como forma de expressão.

A sensação de dormência era profunda e a sociedade inglesa valoriza de tal maneira o individualismo que só mesmo uma intervenção radical e, de certa forma, escandalosa seria capaz de abalar as estruturas, chamando a atenção das pessoas para retirá-las do marasmo, da zona de conforto em que se encontravam.

Como são comuns aos movimentos urbanos, os punks usavam as ruas, o espaço público como palco para se afirmarem enquanto grupo. Por meio das roupas espalhafatosas e do comportamento desagradável, garantiam a visibilidade, promovendo a divulgação de sua ideologia niilista, e, ao mesmo tempo, serviam de espelho para uma sociedade em crise, que não dava voz à sua juventude.

De maneira criativa e original criavam uma colagem inusitada de referências visuais, aproveitando aquilo que tinham à mão, na lógica do “do it yourself” (faça você mesmo).

Recolhiam e transformavam o que existia de mais prosaico em adorno bizarro. Alfinetes de segurança – que são usados para fechar fraldas ou as tradicionais saias escocesas – eram espetados no nariz ou na face, ligados às orelhas por correntes usadas em privadas, numa alusão às tribos primitivas e, sobretudo, como aviltamento das tradições e dos costumes, antecipando a moda do piercing.

Lingeries baratas, roupas de borracha, calças de bondage, cadeados e correntes traziam para o claro do dia a estética do sadomasoquismo. Os casacos militares das sobras de guerra, as jaquetas de couro de brechó e os coturnos de exército faziam alusão ao fetichismo e à violência das guerras. As roupas velhas e rasgadas, as camisetas giletadas e pichadas mostravam o escárnio com que tratavam o consumo.

O que valia nesse momento era uma expressão pessoal que se revelava, por meio da indumentária, e criava laços com seus semelhantes, ao mesmo tempo em que os separava violentamente dos “outros”. Essa postura separatista e o visual agressivo dão à vestimenta um caráter combativo e travam, no campo da moda, um diálogo ideológico. O grupo de punk não queria apenas se expressar, queria também incomodar e abalar as estruturas vigentes.  

Como conta o antropólogo anglo-americano Ted Polhemus em seu livro Street style (Thames & Hudson, 1994), em que descreve a trajetória das tribos urbanas, foi em 1976 no Louise Nightclub, um bar na Poland Street, no Soho londrino, que começaram a se reunir os primeiros elementos punks.

Tratava-se de um clube freqüentado por lésbicas e por um grupo heterogêneo que tinha em comum uma maneira diferente e criativa de se vestir. Blazers escolares, gravatas soltas, cabelos e maquiagens com referências tribais, freirinhas e prostitutas futuristas, marcianos malucos junto com roupas tipo lingerie e de borracha de informação fetichista eram alguns dos estilos que mais tarde sedimentaram o que se conhece hoje como o estilo punk.

Jovens de diferentes grupos socioeconômicos, diferentes origens e diferentes países se identificaram imediatamente com o movimento, como forma de negação e de revolta. Burgueses do subúrbio, desempregados, alunos das escolas de arte, lésbicas, músicos e agregados sentiam a necessidade de diferenciação, de romper com o tédio, chamando atenção pela ironia e pelo grotesco.

Como não se sentiam pertencentes àquele mundo mainstream, da cultura estabelecida, aderiram à anarquia e criaram uma estética peculiar que funcionava segundo suas próprias leis, em que os padrões de beleza eram alterados e tudo o que parecia exagerado, rude e grosseiro passou a ser desejável. O mau comportamento se tornou referência e o ultraje, a regra. 

A música e a moda foram veículos fundamentais de difusão e de formatação do movimento punk. As duas linguagens estão interligadas desde o começo. Em 1971, Vivienne Westwood e seu marido Malcolm McLaren abriram no final da Kings Road, em Londres, a loja Let It Rock, que vendia objetos e roupas do tipo rock and roll dos anos 1950, estilo que viria a inspirar o punk.

Em 1972, a loja mudou de nome para Too Fast to Live, Too Young to Die e passou a vender criações de Vivienne como camisetas com estampas pornográficas e roupas de couro, de influência fetichista. Por ser muito ousada, a loja teve problemas com a justiça e mudou de nome novamente. Em 1975, ostentava em sua fachada um grande letreiro em plástico pink: SEX.

A loja, segundo Polhemus, era nova, autêntica e alternativa e vendia, além das peças criativas de Vivienne, artigos de sex shop, nada comum para a época. Malcolm McLaren, para divulgar a loja, inventa uma banda de rock: os Sex Pistols.

O nome da banda, além da alusão sexual explícita, também se refere à loja Sex. A banda Sex Pistols vai se tornar não apenas a grande divulgadora do estilo da Sex como uma das maiores bandas da história do rock, sedimentando o punk como um movimento cultural e estético que vai influenciar a contemporaneidade.

Ao mesmo tempo, do outro lado do Oceano Atlântico, o movimento punk americano também eclodia. Tendo como base o clube CBGB’s, em Nova Iorque, onde se apresentavam as novas bandas, o estilo punk americano apresentou, na moda, um estilo mais bruto e seco, não tão colorido quanto o da Inglaterra.

Calcado no binômio jeans e camiseta, tinha também as calças e as jaquetas de couro pretas, sempre ajustadas no corpo, as camisetas básicas de banda e os tênis como peças fundamentais do guarda-roupa dos homens. Já o figurino das mulheres era mais suavizado, com pitadas do estilo glam, como em Joan Jett (cantora e guitarrista das Runaways) ou Debbie Harry (cantora do Blondie).

Pela força dos acontecimentos, é possível que o movimento tivesse acontecido mesmo sem a participação de Vivienne Westwood e Malcolm McLaren e da banda Sex Pistols. No entanto, não podemos deixar de considerar a importância desses personagens e imaginar que eles próprios não tinham como imaginar as conseqüências do que estava por acontecer.

O movimento punk, em poucos anos,  passou de manifestação alternativa de um grupo de jovens para um movimento mundial, que iria determinar o estilo da próxima década, assim como antecipar o pensamento pós-moderno e a noção de esgotamento das ideologias.

Com influência de grupos como os rockers, os skinheads e os psychedelics, segundo Polhemus, o punk mudou o mundo mais do que qualquer outro estilo, reunindo de maneira caótica e sem lógica influências estéticas diversificadas e influenciando uma grande quantidade de tribos que vieram depois: skaters, grunges, riot grrrls, indie kids,  góticos, new romantics, pervs,  ciberpunks e os psychobillies.

Polhemus defende ainda que, ao mesmo tempo em que elegia os símbolos do punk e os divulgava, a imprensa mundial ajudava a moldar a sua estética, criando estereótipos que iriam se espalhar, influenciando o visual de jovens do mundo todo.  Com isso, em vez da diversidade de estilos, das misturas criativas, selvagens e imprevisíveis do início do movimento, o estilo punk ficou estereotipado e homogeneizado e foi deglutido pela própria máquina que eles tanto combatiam.

No âmbito da moda, traficando elementos do punk para as passarelas, estilistas como Jean-Paul Gaultier e Zandra Rhodes foram os primeiros a se utilizarem da rebeldia punk das ruas, incorporando ao seu produto de moda conceitos intrínsecos ao movimento e agregando a ele valores positivos, como a energia, a ousadia e a ironia adolescente, certamente deixando de lado facetas fundamentais, como o escárnio, a degradação e o ultraje, desconsiderando sua proposta revolucionária.

Ao longo das últimas décadas, o punk foi absorvido e utilizado pelo mercado do luxo, na sua diluição ideológica e estética, sempre servindo para incorporar às coleções uma suave rebeldia, sem, no entanto, abalar os princípios do belo e do bom-mocismo, como discute Malcolm Barnard em seu livro Moda e comunicação (Rocco, 2003):

“O curioso é que a moda também pode ser usada como forma de contestar e criticar as identidades. Foi o que fez o movimento punk, com suas peças de roupa detonadas e chocantes, feitas para provocar a burguesia. Mas a moda sai ganhando, pois se alimenta de qualquer uso que se faça dela. Tanto que a estética punk passou de contestação a artigo de luxo, explorada e banalizada por diversas grifes até se tornar uma velharia sem valor, encontrada em qualquer camelô do mundo.”

Grandes estilistas e marcas como Versace, Dolce & Gabanna, Thierry Mugler, Yves Saint-Laurent – assim como marcas mais populares como C&A, Colcci e Triton, aqui mesmo no Brasil – de tempos em tempos retiram do baú das referências o movimento punk, imprimindo jovialidade e rebeldia diluída em tons de cor-de-rosa.

Segundo Patrice Bollon, em A moral da máscara (Rocco, 1996), Londres voltou a ser a capital alternativa da moda, rivalizando com a moda burguesa de Paris. Até hoje fornece grandes nomes da vanguarda das passarelas, como Alexander McQueen e John Galliano. Vivienne Westwood, a grande feiticeira do punk, tornou-se uma das mais criativas e importantes estilistas do mundo, elaborando cada vez mais seu estilo, sempre calcado na ousadia, ironizando os cânones da cultura inglesa.

De movimento a cartão-postal da Inglaterra

Os punks transformaram a estética construindo uma visualidade que marcou para sempre a moda e o vestuário. A figura do punk, que um dia foi o símbolo de agressão e desconforto, tornou-se o cartão-postal de Londres, ajudando a divulgar a “marca” Inglaterra.

Hoje em dia, no mundo todo podemos ver nas vitrines dos maiores shopping centers os elementos que um dia causaram repugnância e medo incorporados às imagens de beleza e de pertencimento: camisetas de banda rasgadas e puídas, calças jeans “detonadas” e lixadas e mesmo o piercing, que os punks traziam em seu visual de maneira grosseira, hoje estão bastante desenvolvidos em modelos e técnicas de aplicação.

Mariana Rocha
é consultora de moda e estilista. É professora de Estilismo na Faculdade Santa Marcelina e de Estética e Linguagem da Moda no MBA IBModa. É consultora de moda do site UOL e de empresas e revistas de moda

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