Sobre a privacidade em Masud Khan
Masud Khan no final da década de 1980 (Foto: Reprodução / Agradecimentos a Linda Hopkins)
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“O paciente chegou, pediu que eu apagasse uma das lâmpadas, o que escureceu consideravelmente a sala, deitou-se e, pouco depois, ouvi que ele chorava. Chorou todo o tempo da sessão; em seguida, foi-se controlando, sentou-se, agradeceu-me por não ter interrompido sua experiência, e disse que, tanto quanto conseguia lembrar-se, era a primeira vez que ele se sentira como alguém vivendo um estado emocional particular, para o qual não tinha nenhuma pista, mas que, apesar disso, aguentara não tentar consertá-lo mentalmente.” (Masud Khan, em Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos, 1969).
A penumbra, o choro sem palavras, a não comunicação, o não compreendido. Não lançar luz, não organizar, não explicar, não interpretar. Aceitar o que ainda é incognoscível e admitir o risco de que assim permaneça. Suportar o informe. O silêncio. Esperar.
Esperar, ensinava Winnicott, pressupõe a confiança de que algo será encontrado, de que algo pode ser criado. Esta confiança, por sua vez, é herdeira da alternância ritmada e previsível entre a presença e a ausência do outro: cada reencontro fornece substrato para tolerar a espera seguinte. Aos poucos a internalização da relação confiável estabelece um sentido de esperança dentro de si e, então, intervalos crescentes de ausência podem ser tolerados. Eis o paradoxo: é preciso abrigar o outro confiável dentro de si para ser capaz de esperar e ficar só enquanto se espera. O espaço que se abre entre mim e o outro a partir de suas ritmadas ausências será a área da potencialidade do encontro, que poderá (ou não) ser colorida pela imaginação e criatividade do sujeito, conferindo à espera, à solidão e à privacidade o estatuto de uma “possessão preciosa” e pessoalizada, nos dizeres de Winnicott. Em suma, imergir na própria privacidade e fazer dela um experimento pessoal é uma capacidade que depende de muitos pressupostos.
A vinheta clínica acima narra a experiência de profunda privacidade vivida por aquele paciente e sustentada pela presença de seu analista, Masud Khan. O paciente pôde, enfim, suportar estar intimamente consigo, sem precisar monitorar ansiosamente o que ali se passava ou remeter-se ao analista. Privacidade, para Khan, diz respeito a isto: à possibilidade de habitar e fruir a própria intimidade emocional. É a capacidade de estar consigo de forma despropositada.
O paciente de Khan tinha sérias dificuldades de estar consigo sem ceder aos propósitos da racionalização. Ele havia procurado análise para tratar a “insaciável tagarelice” que se passava dentro de sua cabeça. Sentia-se refém de uma tendência a buscar obsessivamente compreensão e significados para tudo que sentia. Não podia esperar na experiência para então encontrar/criar seu sentido. Era um homem muitíssimo inteligente, compulsivamente produtivo e que consolidara uma carreira brilhante. Mas sentia que não se relacionava verdadeiramente com ninguém, nem mesmo consigo. Chegava às sessões com o material previamente selecionado e interpretado, e ia embora com a sensação de total inutilidade. Não podia silenciar sua mente e se entregar à associação livre.
Ora, o furor compreensivo incide contra o próprio método psicanalítico, fundamentado no par complementar composto pela associação livre do paciente e a escuta livremente flutuante do analista. É preciso suspender a atenção conscientemente intencional para flanar pela livre e despropositada associação. Adam Phillips – ex-paciente de Khan – em seu belo livro Attention seeking nos lembra da originalidade da criação de Freud: um tratamento baseado na desatenção, no não foco, no que está fora do alvo. Seu enunciado é: suspenda a atenção e a concentração deliberada, espere e permita ao sentido tomar seu tempo para emergir. Os vazios de atenção abrem fendas nos nossos velhos “já sabidos” e são, portanto, a precondição do novo. Com efeito, Winnicott dizia que o objetivo da análise é possibilitar ao paciente ser surpreendido por si mesmo.
Voltando ao paciente de Khan. Que ele tenha podido enfim suportar um estado emocional incompreensível sem apressar seu sentido representou algo verdadeiramente novo: poder passar do conhecer-se para o experienciar-se. Ou seja, em lugar de se defender da angústia de não entender o que sentia, ele pôde estar consigo e experimentar o que sentia. A ênfase já não estava no possível significado do choro, mas sim na experiência emocional, ela mesma, como algo potencialmente significativo. A quietude ali vivida contrasta com o ruidoso estado anterior de “tagarelice mental”. Ainda que o paciente estivesse em prantos, o que ali havia era, finalmente, o silêncio: o silêncio das defesas, a placidez de poder não fazer nada além de continuar a ser si mesmo.
Esta capacidade de quietude, de não comunicação e privacidade esteve no centro dos interesses de Masud Khan. Não à toa, um de seus mais importantes livros tem o sugestivo título “The privacy of the self”. Não à toa também, no polêmico e controverso caso Sr. Luís, em que Khan explicita seu antissemitismo, ele diz que seu desprezo pelo paciente teria a ver com o fato de não encontrar em Sr. Luís nenhuma privacidade ou estima por ela: “É que você é uma pessoa que tem muito pouco senso de privacidade… E não consigo me relacionar com uma pessoa se não existe nela alguma capacidade ou necessidade de privacidade”. Lembremos que na condução deste caso Khan se expôs violenta e irremediavelmente. Talvez se possa pensar aquela folie à deux a partir da problemática da privacidade, insustentável para ambos naquela relação.
Se não foram poucas as demonstrações de indiscrição por parte de Khan, é preciso reconhecer também as amostras de seu apreço pela privacidade e de sua capacidade de sustentá-la em si e em seus pacientes. Um exemplo é sua conduta diante do comportamento de uma paciente que há meses vinha silenciosamente deixando toda semana algum objeto em sua sala de espera. Como ele não disse nada, nenhuma interpretação, a paciente pergunta o porquê: “Porque você mesma nunca tinha me contado, então eu respeitei a sua brincadeira secreta na minha sala de espera”.
O sagrado direito ao próprio segredo, a não ser conhecido ou explicado. Khan diz que uma pessoa não tem um segredo; ela é um segredo. Privacidade e segredo precisam ser invioláveis. Nisto firmado, ele não interpreta a paciente, não lhe dá explicações elaboradas para provar sua competência como analista. Ao contrário, acolhe e respeita seu direito à privacidade. Aposta que há algo valioso naquela brincadeira secreta e, então, sustenta o jogo, brinca.
Aqui, a interpretação explicativa, que esquadrinha e explicita, seria uma violação do sentido do segredo. Sobretudo, por centrar-se nos significados, a interpretação poderia representar uma recusa por parte do analista em participar da experiência junto à paciente. Interpretar interromperia a brincadeira. E brincar, já dizia Winnicott, tem mais valor para a saúde do que a interpretação do significado da brincadeira. Ou, nos termos de Khan, a capacidade de sonhar e seguir sonhando importa mais do que chegar ao significado do sonho. Isto não quer dizer que o trabalho interpretativo é dispensável. Pelo contrário, reforça Khan, é necessário um longo caminho até chegar ao clímax da interpretação, que vem a ser, paradoxalmente, a não interpretação, ele diz. Quer dizer, conhecer-se graças ao trabalho interpretativo tem o grande potencial de conduzir um paciente para fora de sua doença, o que já é tanto! Mas isso é diferente de ser sustentado em seu continuar a ser. A ausência de neurose pode ser saúde, mas não é a vida, lembra Winnicott.
A vida é esta experiência cheia de acontecimentos, que não esperam a nossa compreensão. O nosso inconsciente, tampouco. Tememos, com razão, a complexidade da vida e do nosso psiquismo. A complexidade de suportar o desconhecido do não-eu e também o do eu-mesmo. De nutrir o desejo e a curiosidade por ambos. Tudo isso requer algo mais do que entender: trata-se de sustentar o continuar a ser, isto é, a capacidade mais e mais ampliada de manter em marcha a processualidade da existência humana, fortalecer os trabalhos generativos inconscientes (brincar, sonhar, rir, fazer lutos), confiar neles e lidar com seus restos irreparáveis. Continuar sendo e, na medida do possível, sendo si mesmo, acontecendo, sonhando, sentindo, criando, abrindo fendas para o novo… “transcorrendo, transformando”.
Por fim, recorro a um dos mais belos textos de Khan, “On lying fallow” (1983), no qual ele alude aos trabalhos silenciosos e misteriosos da terra para evocar este inconsciente generativo. Deixar a terra descansar diz respeito ao necessário período de intervalo entre uma colheita e o novo cultivo, para que o solo se recupere e, neste descanso, nutra sua própria capacidade de fecundar. Entregar-se à privacidade da experiência do inconsciente, e esperar, pode ser metaforizado por esta imagem da terra que descansa e nutre misteriosamente sua própria capacidade criadora. Por outro lado, também os usos exploratórios do solo e a agricultura predatória, intensificados nestes nossos tempos, se parecem com nossa grande dificuldade de parar, estar e esperar consigo, alerta Khan. Sob o imperativo de uma “fazeção” ininterrupta, a exigência é de trabalhar mais, saber mais, produzir mais, performar e divertir-se maniacamente, expor-se ao máximo, ainda que isto custe a nossa privacidade e o nosso repouso restaurador. Ironicamente, a ameaça sempre presente é a apatia e a falta de sentido.
Mas, afinal, qual seria o benefício deste repouso? O que ele pode nos dar? Um bom negócio e nada, responde Khan, nada! Este estado de desatenção e de entrega, transicional e preparatório, é um nutriente para o nosso ser. É o que provê substrato para a nossa criatividade e o nosso sonhar. Suportar habitar o próprio mistério… para nada. Que despropósito. Pois “o valor de uma coisa profana está naquilo que ela faz de útil; o valor de uma coisa sagrada reside naquilo que ela é” (W. H. Auden, citado por Khan).
Maíra Mamud Godoi é psicóloga e psicanalista, com especialização no Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP.