Nilma Lino Gomes: Tenho como referência a luta dos meus ancestrais
Nilma Lino Gomes: 'Extinção do Ministério é expressão de como o governo golpista compreende as pautas das minorias (Foto: Divulgação/UFMG)
Primeira e última ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes está mais acostumada a abrir portas do que a fechá-las. Faz menos de um mês que a professora Nilma Lino Gomes retomou suas aulas no curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). À frente do Ministério desde o fim do ano passado, ela foi afastada em maio, junto com a presidente Dilma Rousseff.
“O semestre mal começou e tem esse gosto estranho de retomar a vida acadêmica em um contexto em que a luta ainda não acabou. Eu não estou entre os derrotistas que acham que o golpe já foi deflagrado, ele ainda está em curso”, afirma a pedagoga, poucos dias antes de o Senado votar o julgamento final da presidente.
Foram menos de oito meses na pasta que acabara de ser criada para unir as secretarias de Políticas para as Mulheres, Igualdade Racial, Direitos Humanos e parte das atribuições da Secretaria-Geral. Antes disso, Gomes foi ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, cargo que ocupou desde o início do segundo mandato da presidente.
Ao assumir o lugar de Rousseff, uma das primeiras ações do presidente interino Michel Temer foi reduzir o número de ministérios, que passaram de 32 para 24. A pasta de Gomes foi uma das que sofreram corte. Os temas de que ela tratava, como políticas públicas voltadas à inclusão de minorias, foram concentrados no recém-criado Ministério da Justiça e Cidadania, chefiado pelo ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Alexandre de Moraes, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
“A extinção do Ministério, com o rebaixamento de todas essas pastas e sua perda de orçamento, é a expressão de como o governo golpista compreende as pautas das minorias”, diz Gomes. “Incluir direitos humanos em um Ministério da Justiça e ainda colocar pessoas com um histórico de repressão e criminalização dos movimentos sociais para cuidar disso mostra como essas questões passam a ser compreendidas como assuntos de segurança pública”, afirma a pedagoga.
Vida acadêmica
Filha de uma bordadeira e de um ferroviário de Belo Horizonte, Gomes, hoje com 52 anos, foi a primeira mulher negra a chefiar uma universidade federal brasileira, quando nomeada reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Ceará. Caçula de uma família de três irmãos – um porteiro de escola, um professor de filosofia e uma enfermeira aposentada –, sua trajetória está associada ao movimento negro universitário e a questões da educação básica, da qual foi professora desde os 17 anos.
Gomes cursou o magistério no Instituto de Educação de Minas Gerais (IEMG) em 1981, quando começa a dar aulas em uma creche na Vila São Vicente, no bairro de Carlos Prates, na periferia de Belo Horizonte. Em 1984, passa em um concurso da prefeitura e se torna professora em uma escola pública da Urca, no centro da cidade. No ano seguinte, passa a dar aulas também em uma escola privada, onde trabalhava com crianças de seis a dez anos.
Em 1988, formou-se em Pedagogia pela UFMG, onde seguiu para o mestrado em Educação, concluído em 1994. Em 1995, se torna professora de Pedagogia da UFMG e lança o livro A mulher negra que vi de perto, publicado pela Mazza Edições, baseado em sua dissertação. O tema era a trajetória das professoras negras de Belo Horizonte.
Para isso, entrevistou docentes da educação básica. “Eu queria entender o percurso delas até a sala de aula. Em geral, eram mulheres que estavam quebrando um ciclo de trabalho braçal, eram as primeiras da família a desempenharem uma atividade intelectual”, conta ela, que se identificava com suas entrevistadas. “Eram mulheres que tinham um histórico de abusos racistas em sua própria formação e que agora viam esse racismo prejudicar o desempenho de crianças negras”.
Entre 1993 e 1996, dá aulas no Curso de Aperfeiçoamento de Professores do projeto Escola Plural, implementado por uma gestão petista da prefeitura de Belo Horizonte. “Era um projeto muito inovador, que rompia a lógica das séries e trabalhava com ciclos, acabando com a reprovação”, explica Gomes.
Em 2002, termina o doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), onde estudou como os salões de beleza voltados para o público afro funcionavam como espaços de construção do movimento negro. “Escolhi alguns salões de Belo Horizonte e pesquisei sua dinâmica. Não eram meros pontos comerciais, eram lugares de debate e militância. A questão do corpo é muito cara aos negros, porque são de um lado resumidos ao corpo, à força, à sexualidade, de outro, levados a não aceitar esse corpo, por meio de padrões de beleza”, diz.
Entre 2004 e 2006, preside a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), da qual foi cofundadora. Em seguida, faz um pós-doutorado na Universidade de Coimbra, em Portugal, com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos.
De 2010 a 2014, Gomes integrou a Câmara de Educação Básica (CED) do Conselho Nacional de Educação (CNE), onde participou da comissão responsável por auxiliar e fiscalizar o ensino de temas afro-brasileiros nas escolas. Na mesma época, foi relatora das diretrizes curriculares nacionais para educação escolar quilombola.
Foi nesse trabalho na Câmara que Gomes se envolveu em uma polêmica com o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, quando um professor contestou por que o livro, que era utilizado em escolas, trazia uma nota explicativa em uma cena em que os personagens saiam para caçar uma onça, dizendo que aquilo ocorria “num tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Ibama, nem a onça era espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje”, mas nada era dito em cenas em que personagens negros eram retratados como inferiores.
Gomes emitiu um parecer dizendo que o livro de fato era “estereotipado em relação ao negro e ao universo africano” e que, se as escolas quisessem trabalhar com ele, as edições deveriam incluir uma nota explicativa semelhante àquela da onça. “Tudo o que queríamos é que a evolução dos direitos dos negros fosse reconhecida, do mesmo modo como aconteceu com o direito das onças. Mas isso foi o bastante para dizerem que eu queria censurar o livro. Era a negra fechadora de bibliotecas, na visão dos jornais”, afirma Gomes. A polêmica chegou ao Supremo Tribunal Federal, que arquivou o caso, e foi tema de diversos trabalhos acadêmicos sobre os limites da questão racial no Brasil.
Em 2013, Gomes foi indicada pelo Ministério da Educação para ocupar o cargo de reitora da Unilab, inaugurada poucos meses antes.
Militância
Sem histórico de militância partidária, Gomes começou a se envolver com o movimento negro durante a graduação. “Na época, era difícil achar professores dispostos a orientar trabalhos com temáticas voltadas aos negros. O meu mestrado, por exemplo, foi o primeiro a trabalhar a questão das professoras negras, que é um tema tão rico”, conta.
Com colegas da Pedagogia e de outros cursos, Gomes fundou um grupo interdisciplinar de estudos afrodescendentes na UFMG, que concentrava alunos interessados no tema e professores dispostos a orientá-los. Em 1999, participou do I Seminário de Universitários Negros, em Salvador, e em 2000 participou do I Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, em Recife. Em 2002, foi uma das fundadoras da ABPN.
“Sempre fui simpatizante do Partido dos Trabalhadores (PT), mas nunca tive ligação com o partido. A minha militância se deu no movimento negro acadêmico, em busca de espaço para os pesquisadores negros e para as temáticas da comunidade”, conta.
Para ela, medidas como a inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo escolar obrigatório e a aplicação de cotas para negros nas universidades e em concursos públicos federais mudaram a situação dos alunos negros. “Quando se fala em debate racial hoje, poucos falam em superação do racismo porque isso é quase utópico no nosso horizonte histórico, mas sem dúvidas as políticas públicas da última década mudaram o lugar do negro na escola”, afirma.
Para ela, é mais fácil lidar com racismo em um contexto em que a escola ensina cultura africana. “Hoje há mais professores negros, os alunos negros têm perspectivas de ingressar no Ensino Superior e de ocupar posições de saber. O racismo continua, mas pelo menos no ambiente escolar eu posso dizer que ele foi bastante desarmado”, conta.
Nilma considera que sua experiência no Ministério tenha sido o mo-
mento mais gratificante de sua vida profissional. “É uma coisa que eu nunca imaginei, ser ministra em um governo da primeira presidente mulher, de uma mulher que eu admiro enormemente”, afirma. Ela ressalta que não entende a sua trajetória como algo individual, mas sim coletiva. “Tenho como referência a luta dos meus ancestrais, africanos e africanas escravizados e trazidos à força para o Brasil, a minha família, e o movimento negro.”
Questionada se lamenta a duração da temporada, Gomes diz que cargos vão e vêm. “O duro é sair debaixo de golpe. Eu sempre tive muito orgulho das coisas na minha vida que fui a primeira a fazer, dos espaços que ocupei primeiro como mulher negra. Se esse golpe vingar, ser a primeira e última ministra de Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos vai ser uma lembrança agridoce”, diz.