Rapper e arte-educadora, Preta Rara faz do desconforto seu motor criativo
A rapper e arte-educadora Preta Rara, 32 (Juh Guedes/Divulgação)
Joyce Fernandes virou Preta Rara há doze anos. Adotou como nome artístico o apelido que ganhou da mãe por gostar de coisas “diferentes” das outras meninas: jogar futebol, escalar muros, escrever rimas. Aos 32 anos, a rapper e arte-educadora já se acostumou a ouvir por aí que a sua fala “incomoda”. Faz sentido. Foram anos de silêncio e outros tantos de desabafo só com a caneta e o papel.
“Por muito tempo eu escutava as coisas e me calava”, conta, na sala do apartamento para o qual se mudou recentemente, no centro de São Paulo. Durante a infância e boa parte da adolescência, Preta Rara se calou, por exemplo, ao ouvir que estava “predestinada” a ser empregada doméstica, ou que tinha um rosto “exótico”, ou que estava proibida de brincar com as filhas das patroas de sua mãe. Quando decidiu falar, tinha muito a dizer.
Nascida e criada na cidade de Santos, ela “se deu ao luxo” de morar durante um ano na capital para tentar viver exclusivamente dos seus projetos artísticos, que envolvem o rap, a moda e também a literatura. É por meio deles que, hoje, fala sobre racismo, machismo, gordofobia e feminismo sem medir o tamanho do “incômodo” que pode provocar em seus interlocutores. Na verdade, quanto maior o desconforto, melhor.
“As pessoas me falam: ‘nossa, Preta, você é muito pesada quando fala, vai lá no fundo mesmo’. E desde criança escuto minha mãe dizer que sou muito agressiva”, diz. Foi primeiro no rap que Preta Rara encontrou um meio de dar vazão ao turbilhão: menina negra, gorda, zoada na escola, filha de trabalhadoras domésticas, colocava tudo no papel.
A mãe dizia que a menina tinha mais coisas escritas do que desenhadas na infância – mesmo quando não sabia escrever muito bem. O pai observou que os textos da filha, aos 14 anos, eram rimados, e explicou para ela o que era rap, sublinhando que o gênero não combinava muito com a voz “aguda” das mulheres. “Por isso eu tenho essa voz grossa”, ri.
Seis anos mais tarde, ela criou um dos primeiros grupos femininos de rap de Santos, o Tarja Preta. Foi aí que se tornou a Preta Rara, mas fora dos palcos, no dia a dia da labuta, ainda era Joyce. A essa altura, já trabalhava como empregada doméstica há pelo menos dois anos, e repetia a trajetória de quase todas as mulheres da sua família.
“Eu não conseguia emprego em Santos. Demorei muito para entender que currículo com foto e boa aparência nunca é personificado numa pessoa preta. Quando contei para a minha mãe que tinha arranjado serviço em uma casa, ela começou a chorar. Disse que não queria isso para mim, mas eu fui. Foram os piores sete anos da minha vida”, conta.
Foram muitas as situações de abuso pelas quais passou durante quase uma década trabalhando em casas de classe média na baixada santista. Lembra principalmente de quando foi proibida de comer da própria comida que preparava, todos os dias, para uma das famílias. Ou de quando a impediram de usar o banheiro principal de uma das casas porque o “banheiro das empregadas” estava entupido.
Um episódio em específico a marcou. Uma das famílias, a mais rica para a qual já trabalhou, estava de viagem marcada para um sítio. Quando chegaram em casa com as compras e não encontraram espaço nos armários e na geladeira, pediram a Joyce que buscasse dois sacos de lixo. Despejaram ali bandejas de carne, frango, peixe, linguiça. “Ela amarrou e deu pra mim. Cheguei em casa com muita raiva, abri o saco, joguei tudo no meio da sala e falei para o meu ex-marido que a gente ia jantar o lixo da casa das minhas patroas.”
Só no ano passado Preta Rara conseguiu dividir essas experiências com outras pessoas – até então não havia dito a ninguém. “Todas as mulheres da minha família, as mais velhas do que eu, foram empregadas e eu passei a infância ouvindo elas reclamarem. Não podia chegar para minha madrinha ou para a minha mãe e dizer que tinha sido maltratada”.
Decidiu expor os casos na internet, por meio da página “Eu, empregada doméstica”, que hoje já tem mais de 140 mil curtidas, projeção internacional e centenas de histórias de mulheres de todo o país. “A gente recebe cada relato. Tem uma senhora, trabalhadora doméstica, que deixa um pote de margarina para poder urinar na área de serviço, dentro do potinho.” Dados de 2014 da Organização Internacional do Trabalho mostram que 60% das trabalhadoras domésticas do Brasil são negras.
“É uma opção que não é uma opção. Hoje, mesmo formada e tendo inúmeras possibilidades de trabalho, o meu maior medo é ter que voltar a ser doméstica”, conta. “Eu queria estudar e uma das patroas falava que se a minha mãe e minha avó foram [domésticas], eu tinha que ser feliz com aquilo. Não acredito nisso, mas o medo ainda toma conta em alguns momentos.”
Contrariando a previsão da ex-patroa, Preta Rara se formou em História pela Universidade Católica de Santos em 2011 e lecionou nos seis anos seguintes em um colégio particular de periferia da cidade. Dividia-se entre os palcos e a sala de aula – só ela tomava conta de oito turmas de alunos entre 12 e 16 anos. “Eles falavam que os amigos não acreditavam que eu era a professora deles. Na saída da escola sempre tinha um primo, um amigo que ia lá para ver se era verdade”, lembra. A falta que sente do contato diário com os adolescentes é suprida pelas oficinas de rima que ministra em Fábricas de Cultura e em unidades da Fundação Casa.
Neste ano, a artista espera consolidar uma agenda de shows na capital – seu primeiro disco solo, Audácia, foi lançado em outubro de 2015. Além disso, quer continuar o projeto do livro Eu, empregada doméstica, no qual pretende misturar suas histórias pessoais com as de sua avó, sua mãe e os relatos que recebe por meio da página. Também estuda lançar, de forma independente, uma marca de roupas plus size, e promover uma Ocupação GGG (encontro de mulheres gordas) na capital. Agora, as energias estão voltadas para a websérie Nossa voz ecoa, cujo lançamento acontece nesta terça (29), na Matilha Cultural, região central de São Paulo.
Com tantos projetos, a intenção de Preta Rara é “colocar o dedo na ferida”. “A partir do momento em que as pretas conseguem ingressar na universidade e publicar na internet que não é normal a amiga te chamar de macaquinha ou uma pessoa branca encostar no seu cabelo e te chamar de exótica, houve um boom”, afirma. “Hoje fico feliz de ver meninas de 13 anos já falando de cabelo, de racismo reverso, de aceitação. Nessa idade eu estava chorando, com raiva das pessoas que me julgavam pela minha cor, pelo meu peso.”
Preta Rara integra uma nova geração de mulheres negras que faz barulho – na internet, nos palcos e nas ruas – diante de qualquer ranço de preconceito, seja de gênero, raça ou classe. É o que ela chama de geração incômodo: gente que está ali para incomodar com a sua fala, com seu estilo, com seu jeito de pensar, de se vestir, e com isso provocar algum tipo de mudança, por menor que seja, na cabeça das pessoas. “O incômodo é por onde eu passo: quando estou com o cabelo azul, vermelho, nas minhas ideias, no meu rap, no meu jeito de mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser”, diz. “Mas eu falo e jogo o incômodo de volta. Não fica mais comigo.”
Matéria atualizada no dia 28/08/2017