Vão deixar o Presidente da República lutar na lama?
(Foto: Reprodução/YouTube)
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A coisa toda começou com uma entrevista de Lula para a TV 247, o canal audiovisual do portal de notícias Brasil 247, concedida aos jornalistas Leonardo Attuch, que também é seu editor, Helena Chagas, Tereza Cruvinel e Luís Costa Pinto. O presidente já demonstrou várias vezes que, com auditórios muito amigáveis, costuma ficar muito à vontade, à vontade demais. Com isso, tende a baixar a guarda, ser mais desinibido, emotivo e pessoal. Os jornalistas no caso são competentes e reconhecidos, não há dúvida, mas formou-se na entrevista um clima de simpática camaradagem, visitado por risos e exclamação de aprovação, umas vezes, e por comoção compartilhada noutras.
A questão é que não era uma conversa íntima entre bons amigos, mas uma entrevista para um canal digital. E aí começam os problemas.
Lá pelas tantas, um Lula emocionado rememora os seus 580 dias de cárcere, toda a épica da trama judicial-política que o colocou na cadeia, o papel do juiz político que fez dele sua causa, presa e troféu (palavras minhas, não dele) e, então, deixa escapar uma confidência sobre os sentimentos que nutria no período inicial de sua vida na prisão: “De vez em quando um procurador entrava lá de sábado, ou de semana, para visitar (…). Entravam 3 ou 4 procuradores e perguntavam ‘Tá tudo bem?’. Eu falava ‘Não está tudo bem. Só vai estar bem quando eu foder esse Moro’”.
O sentimento humano manifestado seria compreensível em qualquer pessoa enfiada numa cadeia, humilhada e privada de sua vida normal, ainda mais quando se julga injustiçada. Mas a expressão desse sentimento e do linguajar chulo numa live, quando o entrevistado acabou de ser eleito Presidência da República, não é compreensível nem aceitável.
Mesmo diante do riso simpático dos entrevistadores, Lula tem um lapso de lucidez e faz uma demanda em confiança: “Vocês cortam a palavra foder aí…”. Não só não a cortaram – por impossível, visto tratar-se de entrevista transmitida ao vivo -, como foi isso o que, depurado de duas horas de conversa, foi levado ao centro da atenção pública e transformado na memória digital condensada do evento (meme).
Principalmente porque, para azar dos envolvidos, no dia seguinte explode a notícia de que a Polícia Federal havia descoberto um plano do principal grupo criminoso do país, o PCC, para sequestrar e assassinar alguns servidores públicos e autoridades, dentre eles o próprio Moro a quem Lula se referiu, hoje já um político sem toga.
Enquanto rolava o noticiário sobre prisões de criminosos e a população ficava ao corrente de detalhes do plano, o bolsonarismo e o morismo acenderam a sua forja de relatos para distribuição digital e passaram a preencher o debate público com três mensagens:
- O presidente tinha usado um palavrão vulgar para materializar seu desejo de vingança de Moro, coisa que em geral se condenava em Bolsonaro, mas que seletivamente não se condena no atual presidente. O verbo chulo usado e a vontade expressa de se vingar foram destacados o dia inteiro com a clara intenção de desmoralizar o presidente.
- A recordação confidenciada por Lula faz parte de um dos gêneros narrativos da sua predileção, algo como uma espécie de narrativa de superação. Lula, sabe-se, é um mestre na arte de narrar a própria trajetória como uma história de superação que lhe deu, pelo sofrimento passado, habilidades particulares na compreensão das dores e dificuldades dos outros. Ultimamente, conta uma épica em que ele passa da condição de vítima de uma enorme injustiça – o que lhe daria todo o direito de cultivar mágoas e desejos de retribuição, aos quais por um momento sucumbe, uma vez que é humano – para a condição de uma pessoa que usa a iniquidade sofrida para se tornar uma pessoa melhor e mais sábia, capaz de deixar para trás o ressentimento e conduzir o país rumo ao futuro. Note-se que a confidência feita se refere à primeira parte da odisseia de superação, eram os sentimentos cultivados no passado, em 2018, mas que teriam sido depurados no curso do tempo, quando um Lula livre e restaurado em sua inocência tornou-se uma pessoa melhor. Dessa vez, contudo, a narrativa saiu do controle do narrador, pois a oficina de comunicação do bolsonarismo e do morismo retirou o tempo verbal passado da história e a transformou em uma declaração sobre o presente: Lula quer ferrar Sergio Moro.
- A terceira mensagem veio na forma de uma teoria do complô, típico da oficina do diabo de Carluxo. Pega-se dois relatos factuais independentes – Lula cultiva sonhos de vingança contra Moro e PF prende membros de grupo criminoso que planeja matar Sergio Moro –, junta-se os dois em uma história e eis uma bela teoria da conspiração. O script já estava pronto desde 2018. Foi só requentar o “Quem mandou Adélio matar Bolsonaro?” e se obtém o “Quem mandou o PCC matar Sergio Moro?”, sugerindo como resposta óbvia que há de ter sido quem disse no dia anterior que queria “ferrar” com ele. O próprio Moro, notando a janela de oportunidade de sair da condição de minguante sub-bolsonarista a que estava reduzido até ontem, já está reforçando o argumento de que se algo lhe acontecer ou à sua família, a culpa será de Lula, seu arqui-inimigo.
Desastre acontecido, corre-se às tentativas de contenção. Flávio Dino foi o primeiro a tentar mudar o foco da narrativa principal. Não, diz ele, uma história nada tem a ver com a outra e o que se deveria estar prestando atenção é no fato que a investigação da PF “é tão séria que foi feita em defesa da vida e da integridade de um senador de oposição ao nosso governo”.
Nisso se agarrou o lulismo para, por sua vez, tentar inundar a conversa nacional com a ideia de que a polícia de Lula teria salvado a vida de Sergio Moro. Felipe Neto deu o mote em dois tweets: “Quem mandou matar Sergio Moro eu não sei, mas eu sei quem prendeu os responsáveis antes do crime acontecer: a Polícia Federal sob a gestão de Lula com Flávio Dino” e “A maior dor do Sergio Moro vai ter q ser conviver com o fato de q hoje ele só está vivo e seguro graças ao trabalho das pessoas q ele perseguiu e tentou arruinar de todas as formas possíveis”.
Podia ter parado aí. Afinal, o lulismo, o bolsonarismo, e este sub-bolsonarismo, que é o morismo, ganham todos com essas colisões. O lulismo é um antibolsonarismo e o bolsonarismo, assim como o morismo, são antilulismos, e cada ataque recebido, cada acusação vinda do outro lado pode ser contabilizada como lucro: o grupo fica mais compacto, a identidade é reconfirmada pelo ódio do inimigo e pelo reconhecimento de que somos o seu oposto. A condição de inimigo mor de Lula é um ativo disputadíssimo entre bolsonaristas e moristas, por isso Moro e o seu eterno Sancho Pança, Dallagnol, correram para recolher os louros decorrentes desse imbróglio de comunicação.
O fato é que não parou. Nesta quinta-feira (23), bem no meio do conflito de interpretações entre a versão “quem mandou matar Moro” e “Lula salvou Moro”, um Lula incontrolável declara a um jornalista, sobre a operação de quarta-feira da Polícia Federal, que acha “que é mais uma armação do Moro”. O presidente ressalva que não tem ainda todas as informações, que quer ser cauteloso, que vai descobrir o que aconteceu. Mas quem ainda estava prestando atenção depois que o presidente da República declarou acreditar em uma conspiração, urdida justamente por Moro, apresentado no dia anterior por Flávio Dino como objeto de um plano criminoso felizmente desbaratado pela Polícia Federal?
Em suma, enquanto os defensores de Lula lutavam pela narrativa de que Moro só estava vivo por causa do governo, o presidente abate em pleno voo a melhor história em seu favor para trocá-la por uma improvável teoria da conspiração.
Impossível prever nesta quinta-feira, quando escrevo esta coluna, como essa história e as suas interpretações irão terminar. Mas o fato é que é tudo tão desastrado que parece incrível que algo assim ainda esteja acontecendo na comunicação política governamental.
O que pensar disso tudo?
Lula já deveria ter entendido que não existe nem pode existir algo como jornalismo bróder. Por mais simpatia e admiração que expressem os jornalistas diante dele, há que se considerar duas coisas. Antes de tudo, que uma entrevista não é uma conversa entre amigos e que o jornalismo faz perguntas e registra respostas. Relaxar, fazer confidências e dizer palavrões numa entrevista como se estivesse num barzinho ou num jantar íntimo com amigos do peito é um erro incompreensível. Por mais bróder que seja o jornalismo, ele não tem o condão de proteger o entrevistado do público que vai receber a entrevista.
Nesse sentido, todo o esforço de Attuch e do 247 para denunciar que “grupos de extrema direita e veículos da mídia corporativa estão viralizando, sem contextualização, trecho de uma declaração do presidente” parece mais uma tentativa de dizer ao presidente que eles não tiveram culpa, e que é tudo decorrente da maldade da “imprensa associada ao projeto de destruição do Brasil” e dos bolsonaristas, como se eles e o presidente não tivessem a obrigação de conhecer as regras do jogo do jornalismo digital.
Além disso, no mundo digital, aquelas quatro paredes que abraçam e protegem as pessoas reunidas são pura ilusão, ainda mais quando se trata de uma transmissão online direta. No mundo da informação digital, paredes, espaços de reserva e segredo não existem mais: todo mundo pode ver tudo. Para completar o drama, registros digitais, uma vez que estiveram online, nunca mais perecem, não são contidos em arquivos, não podem ser empurrados para o fundo da gaveta, apagados e limitados à edição que lhe é dada inicialmente. Duas horas de conversa podem ser resumidas em uma frase e atravessar o mundo duas vezes antes que o presidente consiga dizer “por favor, cortem a palavra foder”.
Como já cansei de anotar desde o início do ano, o fato é que a comunicação política presidencial continua amadora, improvisada, aleatória e desastrada: e eu considero seriamente cada um desses adjetivos. Em um regime normal de comunicação política coordenada por alguma estratégia, Lula não confessaria o que confessou numa entrevista ao vivo nem tentaria improvisar, no calor da hora e no dia seguinte, uma teoria da conspiração em desfavor de seu adversário.
Onde, quem cuida da comunicação presidencial e o próprio presidente, andam com a cabeça? O presidente desceu para lutar na lama com os seus adversários, com menos de cem dias de governo e no auge do seu capital político, o que me parece uma receita para a tragédia. Até Felipe Neto reconheceu isso em um tweet no final da noite. Algum adulto do ramo precisa assumir a comunicação presidencial. Para ontem.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)