Prelúdio de uma tragédia inconclusa

Prelúdio de uma tragédia inconclusa
O Juiz Sérgio Moro determinou nesta quinta (5) a prisão do ex-presidente Lula (Arte Andreia Freire/Foto Rovena Rosa)

 

Na primeira noite eles apareceram para tomar a presidência, na manha ou na marra, da presidente recém-eleita. Disseram que era por crime de responsabilidade e, se isso não bastasse, era porque o Brasil estava em crise econômica, a presidente não sabia falar, era feia, provavelmente lésbica, e porque o PT era o partido mais corrupto da história. Eu até achava que mandatos obtidos em eleições limpas eram intocáveis, mas não era petista, estava preocupado com a crise, não gostava de corrupção nem de políticos, não me importava demais com sutilezas democráticas e quando dei por mim já havia envergado uma camisa da CBF, seguia um pato amarelo e gritava “fora, Dilma e leva o PT junto”.

Na segunda noite eles reapareceram e decidiram que os serviços públicos brasileiros seriam congelados no estado pavoroso em que se encontram – e isto por vinte anos. Não importa o crescimento, o envelhecimento e o empobrecimento da população, o Estado só gastará em serviços para o cidadão o que gasta hoje – e que já nem de longe é suficiente – nas próximas duas décadas. Coincidentemente, é o mesmo intervalo de tempo que durou o governo militar. Mas eu já pago a escola dos filhos e o plano de saúde da minha família, fui convencido por Meirelles de que governar o país é como ser dona de casa, de forma que até achei que exageraram, mas deixei para lá.

Na terceira noite eles vieram e decidiram que se aposentar é feio, deselegante com a pátria e coisa de gente de Terceiro Mundo. Que os brasileiros, portanto, bem merecem sair de um atrasado Estado de Bem-Estar Social para se encaminhar Primeiro Mundo de um Estado Neoliberal, se não no PIB per capita, pois disso não nos ocupamos, pelo menos no que tange à Previdência Social. Achei puxadíssimo, mas se é para salvar o Brasil do “estado gastador” do PT eles devem ter razão.

Na quarta noite eles vieram e decidiram que o presidente Lula precisava ser amaldiçoado, pelo que se sabia, pelo que se imaginava e até pelo que não se sabia, mas que era certo que fez, pois se escondeu é porque só pode ter sido errado. E não se importaram sequer em disfarçar dizendo que outros também seriam amaldiçoados, condenados, proscritos ou acorrentados, disseram que Lula podia vicariamente representar todos os outros como ele e que, uma vez sacrificado o bode, tudo na vida pública seria purificado e, enfim, se implantaria o Ano Santo do Senhor.

Achei curioso que penas prescrevessem à direita e a esquerda, que organizações criminosas continuassem reinando na República, que o Judiciário parecesse confuso, trêfego, político, que o Legislativo continuasse um valhacouto de sujeitos da pior catadura, mas que para Lula a Justiça viesse rápida, certa e severa. Entretanto, como me garantiram que com a desgraça de Lula seria reparada cada injustiça, cada sofrimento, cada dor dos homens de bem, lá estava eu, nas praças e nas redes, rogando que fossem poucos os seus dias, se tornassem órfãos e pedintes os seus filhos, que desaparecesse a sua posteridade, que o seu nome fosse apagado na seguinte geração, tudo como ensina o salmo.

Não sei o que acontecerá nas noites seguintes. Como não faço baderna, não sou comunista e sou uma pessoa de bem, acho que estou garantido. O problema é que não sei se já estão saciados depois que os vencedores das quatro últimas eleições presidenciais foram, enfim, derrotados por outros meios que não aqueles que passam pela vontade popular.

E já não sei a quem se poderia recorrer, uma vez que não há Poder da República sobre o qual não incumbe severas suspeitas de que antes que servir ao povo e à Constituição, acomodem, quando lhe convém, as obrigações que os atam à democracia a interesses obscuros, incontrolados e inconfessáveis. E uma vez que o jornalismo atravessa um ciclo de falta de credibilidade tão grande, no qual para que se confunda notícia com com fake news é suficiente não mais que uns truques de diagramação e uma simulação de discurso factual. E, enfim, uma vez que a esfera do debate público brasileira, online e off-line, está envenenada pelo ódio político que nós próprios nos inoculamos, numa espiral crescente de insanidade e autodestruição. Quando voltarem – e eles voltarão -, o que faremos?

(9) Comentários

  1. Na hora que Lula for para a cadeia, o fedor de cachaça que empesteia o país desde 2002 cessará e os porteiros voltaram ao seu lugar e o nosso voto sempre ficará à mira de alguém para corrigir nossos enganos.

    Also: first!

  2. O que será de Nós, povo brasileiro, Que nuvem negra paira pelo nosso solo.?Não há ninguém para conseguir acabar com esta insanidade. ?Sentimos impotentes, pés e mãos atadas . So Deus para salvar o nosso brasil destes covardes insamos. Tenhamos fé. E o que nos resta.

  3. Brilhante, como sempre são os texto de Wilson Gomes. Esse é o retrato do cidadão de bem. Os bem intencionados, bem entendido.

  4. Wilson Gomes, obrigada pelo texto límpido com que nos brinda num momento tão turvo.
    Fato é que o horizonte assusta pela perspectiva que o processo engendrador desse presente nos indica.
    É preciso arrancar leite a pedra, juntar os cacos e buscar forças pra romper esse ciclo de sucessivas desgraças antes que consideremos o dia de hoje ameno ante uma tragédia ainda maior.
    Mais uma vez, obrigada.

  5. Não se pode prever o que acontecerá mas a radiografia do que acomete a nação está aí bem clara pelo autor do texto.

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