Prefácio de GOLPE: Antologia-Manifesto

Prefácio de GOLPE: Antologia-Manifesto

por Marcia Tiburi

Não existe poesia depois do golpe. Não existe poesia atrás do golpe. Não há poesia que vá à frente do golpe. Não há poesia que nos proteja do golpe.

A poesia não entra na fila do golpe como um pagador de contas atrasadas, a poesia não carrega o caixão da democracia num féretro infeliz puxado pelo golpe. A poesia não é uma oração pelo golpe. A poesia não é o cortejo, não é como flores no velório para tornar menos feia a morte. Não é ostentação, não é choro, não é conforto, não é jeito. E o golpe não é a morte.

Por que a morte é mais digna que o golpe.

A poesia não é sobre o golpe. A poesia não é sob o golpe. A poesia não faz explicar o golpe. Não é para suportar o golpe. A poesia não é o bálsamo que conforta os pés queimados do golpe sobre as brasas apagadas da democracia.

Não existe poesia que ligue um cidadão ao golpe. Não existe poesia que permita pensar o golpe. Não há poesia para dialogar com o golpe.O golpe não é mensurável, o golpe não é incomensurável. A poesia não é uma medida do golpe.

Nenhuma teoria da poesia é capaz de dar conta do golpe. Não é possível uma teoria do conhecimento do golpe. Uma filosofia política do golpe. Uma estética do golpe. O golpe não se explica na ciência, na medicina ou na botânica, na antropologia ou na psicologia, na geologia ou na física quântica, na cartomancia ou na leitura das mãos dos golpeados ou dos golpistas. A poesia não é a expressão que sobrevive ao golpe porque a ciência falhou em impedir o infarto, em ver a anatomia do golpe.

É que a poesia não tem nada a ver com o golpe. O golpe não vê a poesia. O golpe aparece quando a poesia desaparece.

O golpe está onde a poesia não se deu.

É onde não há nudez.

Não há poesia onde há golpe. A poesia não conversa com o golpe, a poesia não concorda, a poesia não sucumbe. A poesia não se perde, não se entrega, não se impõe, não entra em trabalho de parto pelo golpe. Não dá a mão em cumprimento amigável com o golpe. A poesia não morre por um golpe. Por quantos golpes o golpe seja capaz de produzir. A poesia persiste e nos dá a mão com que escrevemos o texto, um texto que se lança como pedra contra as vidraças transparentes do golpe sempre pronto a impedir a vida para dar lugar a espectros.

Não existe uma poética do golpe. Nenhuma elaboração do golpe é suficiente, nunca entenderemos o golpe, por mais que o golpe seja contra todos, seja contra nós, seja contra cada um. Sentimos o golpe sem saber onde ele se deu. Em que parte de nosso corpo a picada venenosa, que parede, a encosta, a pedra, que teto, que coice, que facada, que tiro, que soco intransponível.

O golpe é grande, o golpe pode ser gigante. O tamanho do golpe é o da tristeza que ele causa. Mesmo que o golpe venha de fora, venha de baixo, venha de cima, venha pelas costas, o golpe atinge é dentro de cada um. No lugar onde somos, onde corpo e espírito nunca foram diferentes. A poesia pode ter apenas uma relação com o golpe. Não importa o tempo, não importa como, a relação que a poesia tem com o golpe é única: a poesia é contra o golpe.

Não existe poesia depois do golpe. O que existe é a poesia contra o golpe. O golpe surge, a poesia se insurge. A poesia contra o golpe é o cuspe, a pedrada, o soco, o ponta pé, o pneu em chamas, as vias impedidas, a greve geral.

A poesia é o fora do texto para onde o texto olha a abrir com as armas perigosas da palavra a passagem para a vida revolucionária.

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