Qual o futuro da democracia no Brasil?

Qual o futuro da democracia no Brasil?
(Foto: Robert Polidori)

 

 

Se, com base no passado e no presente, fizermos uma projeção pessimista, é muito provável que mesmo os brasileiros que perceberam o golpe político sofrido pelo mandato de Dilma Rousseff, esqueçam logo dele. Assim como os golpes anteriores foram esquecidos, entraram na vala comum da história cada vez mais soterrada e menos escavada e estudada, esse golpe será apagado dos lugares onde ele foi em algum momento gravado. Um livro aqui, outro ali, análises bem feitas e, no entanto, sempre precárias perto do poder da realidade, deixam claro que podemos pouco em relação aos acontecimentos e a chance de reverter qualquer quadro antidemocrático é nenhuma se não avaliarmos as condições coloniais que estruturam a nossa história e o nosso presente mais imediato.

Uma máquina autoritária foi acionada. Ela é racista, classista, misógina, ela é elitista, branca, fisiologista e rentista, ela é partidária, ela é religiosa, ela é estética, ela é moralista. É uma máquina total que não deixa nenhum naco da carne humana de fora do seu poder triturador.

Desculpe-me o leitor pela metáfora tão feia e tão comum, mas sabemos que, desde sempre, o capitalismo atua sobre os corpos. Digo isso pensando que um trabalhador é seu corpo, uma mulher, uma criança, um doente, um preso, um índio, um telespectador, todos são corpos vivos aos quais é negado o direito de desenvolvimento integral, livre e pleno. O capital, na forma de dinheiro ou imagem, de Deus ou linguagem, é um mecanismo de opressão, repressão e, ao mesmo tempo, de sedução. Corpos humilhados pelo capitalismo, cuja marca colonizadora é um dos fatores mais negados em nossas análises, são produzidos pelo capitalismo. Temos que nos voltar, antes que seja tarde, a análise desse aspecto.

No enfrentamento dessa questão é que devemos pensar a democracia possível no Brasil de hoje.

A qualidade “autopoiética” da democracia

Antes de seguir, é preciso definir um conceito de democracia. A palavra é utilizada nos mais diversos sentidos, inclusive como cortina de fumaça que acoberta autoritarismos de todo tipo. Desde que a democracia foi inventada, faz-se as piores coisas em nome dela. Inclusive o golpe de 2016 usou-a como fachada. Nesse cenário é que podemos nos perguntar sobre a qualidade da democracia que podemos desejar e propor.

Nesse sentido, pensemos em uma democracia radical, uma democracia realmente envolvida com todos e produzida por cada um. Uma democracia que tem na participação popular – no diálogo – a sua forma essencial. Uma democracia em que a representação é necessária, devido ao tamanho imenso de nosso país, mas uma democracia que integra com seriedade a dimensão comunitária sem a qual qualquer democracia é precária. Pensemos que essa democracia radical é uma democracia produzida com os mais próximos, aqueles com quem partilhamos espaço, tempo, hábitos, costumes, leis. Uma democracia na qual todos os grupos representativos tem lugar no parlamento.

A dimensão comunitária da democracia precisa ser levada a sério. Uma reforma política que contemplasse essa dimensão seria capaz de acionar uma nova politização no país. Uma politização que devolvesse a democracia às pessoas, ao povo. Que permitisse ver e experimentar a democracia como um processo, que levasse os cidadãos a responsabilizarem-se pelo que vivem em termos institucionais e públicos. Uma democracia que ajudasse ao mesmo tempo a reconstruir a dimensão pública. Uma democracia autopoiética, que recriasse a si mesma.

A democracia é um processo que precisa ser construído desde dentro, desde o mais miúdo cotidiano, desde a estrutura das instituições, mas também desde as subjetividades comprometidas com a sua construção, aquelas subjetividades preparadas para a dimensão social da vida.

Falando assim, a democracia nos surge de um modo praticamente utópico. As condições para seu desenvolvimento parecem as piores. É claro que o imaginário democrático dos brasileiros vai mal, um investimento no que podemos chamar de desejo de democracia talvez nos fizesse retomar o processo democrático, mas precisaríamos da colaboração das instituições, tais como a escola e os meios de comunicação de massa, bem como das igrejas que, nesse momento, agem em nome de um deslavado neoliberalismo aniquilador da subjetividade livre. Nesse sentido, tendo em vista o crescimento da questão neopentecostal e da influência dos meios de comunicação de massa na mentalidade do Brasil atual, não podemos esquecer do modo como as pessoas vem vivendo em termos subjetivos e objetivos, do modo como se organizam para a luta diária, das soluções que tem procurado em suas classes sociais para sobreviver e suportar o peso da vida. Não podemos esquecer da dimensão do sofrimento em termos de classe, de raça, de gênero, de cada grupo que hoje se manifesta por meio de uma identidade, na formação de uma cultura política. Precisaríamos, nesse sentido, investir muito em sociologia e psicanálise, em educação, em mídias livres e arte para melhorar o cenário político de nosso tempo. A democracia sob as botas do neoliberalismo que, além de tudo, usa sua imagem fantasmática como fachada, tem o mesmo futuro que a fumaça que desaparece com o tempo.

O poder de mover afetos das instituições controladoras dos discursos é fora do comum. Nesse sentido, sem um projeto de educação, sem a regulamentação da mídia, sem que as igrejas também sejam regulamentadas, é bem difícil que possamos retomar a democracia em qualquer sentido mais sincero. Além disso, é preciso rever o funcionamento da burocracia estatal que, associada ao que chamamos de grande capital, opera a seu próprio favor desconsiderando a soberania popular que, mesmo que precária, ainda é exposta nas eleições. Talvez não tenhamos mais eleições diretas e talvez o povo nem venha a se importar com isso em 2018. Vide a quantidade de votos nulos e brancos nas últimas eleições municipais. Eles são um sinal sério do esvaziamneto da política, mas também de como as pessoas não estão confiando no modelo representativo que temos.

A democracia e o golpe

Estamos falando de democracia agora, nesse momento em que um governo ilegítimo – dos políticos sem voto a ocupar o poder – causa estragos imensuráveis na política e em todos os setores. Nossa tarefa é difícil. É um chamado a pensar quando o pensamento questionador está em baixa. Quando conquistas sociais alcançadas por um projeto democrático são destituídas de lugar e, da educação à saúde, verifica-se a tática de terra arrasada, não é possível falar de democracia sem que sejam levadas em conta as condições em que essa democracia e essa fala sobre ela se estabelecem. Nesse momento, não podemos falar de democracia senão sob a perspectiva de um golpe vivido. Isso obriga a levar em conta os golpes passados (legais ou não), mas sobretudo, as condições que levam a golpes. Pois se o golpe se torna uma prática contumaz, como erva daninha que cresce sem limites, há que se prestar atenção no solo onde ela cresce. No enraizamento, nas sementes, que criam a cultura política conhecida de todos e vista de uma maneira naturalizada como se não houvessem bases históricas e sociais para o que se dá hoje.

Nessa linha, me parece que – em que pese que os golpes no Brasil configuram praticamente um “habitus político” – 1964 é o que pesa com força redobrada sobre a democracia no Brasil atual, e nos toca diretamente, no tempo presente.

Recente em termos históricos, a distância entre 1964 e 2016 tem o tempo de uma vida humana. Ora, são as vidas humanas que estão em jogo em termos históricos. São as vidas humanas, daqueles que lutam por direitos, mas também daqueles que lutam por sobrevivência, o que está em jogo nos momentos não democráticos quando o poder transforma-se em biopoder e tanatopoder (para usar os termos de Foucault sobre os cálculos que o poder faz sobre a vida e sobre a morte). As vidas em luta política ou em mera luta por sobrevivência, sejam individualidades lúcidas ou iludidas, são elas que estão envolvidas, consciente ou inconscientemente, e assim submetidas ao golpe como desmontagem da democracia. As instituições servem a poucos e nos tempos de golpe servem a ele também, pois todo golpe é da elite política e econômica. Para as demais pessoas, para os meros cidadãos, a democracia perdida pesará sobre seus corpos, como mais trabalho, como mais penas e sofrimento, como menos direitos.

Por isso, um golpe político, um golpe contra as conquistas sociais, um golpe contra a democracia (por mais abstrato que isso soe para alguns) é uma questão imensa que não poderia ser esquecida, mas que será esquecida, como todos os golpes são, e não dirá mais nada a ninguém.

O golpe em condições democráticas

Um golpe dado em condições democráticas, coloca a gravidade ainda maior da questão. Nos perguntamos “como esse golpe foi possível?”. Muitas pessoas, inclusive ativistas e estudiosos, ficaram e se mantém perplexos com o golpe, mesmo aqueles que sabem que a história política do Brasil poderia ser contada como história dos golpes. A pergunta “como esse golpe foi possível?” só pode ser respondida se, em vez de pensarmos no golpe como um gesto político impossível que surgiu quase que por acaso, tornando-se um possível à revela da democracia, se nos dermos conta do sentido profundo dessa possibilidade justamente em uma democracia. Nesse sentido, está em jogo analisar a própria qualidade da democracia brasileira e o que realmente vivemos no período democrático brasileiro de 1984 a 2016.

O golpe de 64 relaciona-se diretamente com o golpe desse momento, ainda que, retirada a questão militar, seu estilo, sua própria feição tenha mudado. Em relação ao golpe de 1964 e de 2016, a democracia talvez tenha sido apenas um hiato. Nesse sentido, podemos dizer que o tipo de autoritarismo que surge é sempre mediado pela democracia em vigência, e vice-versa. Veremos ainda sinais de democracia enquanto as pessoas puderem manifestar-se, enquanto ainda existir expressão livre e crítica, mas com o tempo, a tendência é que isso se apague e todos entrem no acordo tácito da tendência dominante. Até porque a luta por sobrevivência costuma suplantar a luta política.

O golpe de 2016 é mais um golpe neoliberal como foi o de 64. Um golpe em que o capital continuará nas mãos de uns poucos que se veem sempre ameaçados pela democracia, ela mesma, quando radical, um regime econômico de partilha.

A cena – em seu sentido estético e político – do golpe de 2016 é bem outra em relação à necessidade de um regime militar. Nesse momento, os militares são desnecessários. A polícia faz bem o seu papel no contexto em que o poder dos sem voto, logo sem legitimidade, estabelece-se pela violência física e simbólica. O programa bem construído pelo neoliberalismo descarta o uso de forças desnecessárias. Se é possível fazer um golpe apenas com o judiciário, o legislativo e a televisão, para que chamar os militares, ainda mais quando se tem a polícia para conter os incomodados que vão às ruas?

A cênica desse momento é, de certo modo clean, tudo parece legal, daí que alguns chamem o golpe de golpe branco, golpe brando, golpe silencioso, ainda que tenha a ver, em nosso caso, com a narrativa do filme de terror b, vide os personagens abjetos, semi-monstruosos, semi-políticos que fazem parte dele. Contudo, talvez com o armamentismo que vem por aí, os militares voltem a fazer sentido e toda uma estética militar, de guerra, de frieza e austeridade, passe a construir a sensibilidade pública a partir de controles publicitários da percepção e das emoções. Sinais de um desejo pela encenação militar surgiram nas ruas de vez em quando desde o projeto do golpe, mas não chegaram a assustar demais as mentes democráticas e abertas ao outro devido ao seu caráter caricatural. No entanto, com o projeto de rearmamento da sociedade com vistas ao mercado da segurança, ele mesmo um mercado das armas, talvez os militares voltem a ser interessantes como uma nova onda estética de mercado.

Nessa linha é que devemos pensar no esquecimento do golpe que não será natural, mas já está desde sempre programado inclusive por meio do uso desse tipo de estética em que cidadãos de verde e amarelo, programados para odiar tudo e todos, vão às ruas, pedem a volta da ditadura, o fim dos direitos e posam para fotos com heróis fascistas ultrapassados ou contemporâneos.

O golpe faz parte do programa neoliberal – ele mesmo bio e tanatopolítico – e já vem com o seu apagamento pré-projetado na própria repetição de seus mecanismos. É um dispositivo que precisaria ser interrompido de modo veemente. Mas a democracia que vivemos até aqui e que poderia combater esse dispositivo, colocando-se em seu lugar, tem sido confundida com afrouxamento das leis, dos limites e das regras de convivência dentro da sociedade. A constituição seria um dispositivo democrático que sustentaria as relações humanas e é ela que o golpe, espertamente, desmonta. Que a Constituição de 1988 esteja nesse momento sendo rasgada a cada ato judicial, legislativo e policial, faz parte da ação de apagamento dos golpes pelo apagamento, ao mesmo tempo, da democracia.

Como criar um dispositivo democrático que seja capaz de combater o dispositivo neoliberal, me parece ser a questão urgente nesse momento. O operador “como” não deveria ser apenas a fonte de uma angústia, mas de uma nova criação política. A resposta, contudo, deve ser construída coletivamente.

(2) Comentários

  1. Magnífico texto, esclarecedor até mesmo para pessoas como eu, que não tem capacidade intelectual para textos acadêmicos, rebuscados. Meu muito obrigado, filósofa, Márcia Tiburi e à todos que fazem a revista Cult.

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