Por uma crítica das razões mestiças

Por uma crítica das razões mestiças
O historiador e filósofo Achille Mbembe (Divulgação)

 

A recente publicação em 2013 do livro Crítica da razão negra, de Achille Mbembe, possui, entre tantos outros méritos, uma significativa importância para o pensamento ético-político contemporâneo por denunciar a vinculação estreita entre a racionalidade neutra e universal e um modo específico de se fazer filosofia, o europeu. Nesse sentido, a referência à célebre Crítica da razão pura, de Imannuel Kant, possivelmente um dos mais importantes livros da tradição ocidental, denuncia essa busca pela “pureza” em sua inevitável relação com a “brancura”, ou seja, como imperativo de uma certa cultura.

Essa forma de pensar que tem data e local de nascimento – a Grécia da Antiguidade –, e que tem como pressuposto a ideia de que a verdade é alcançada por meio de um pensamento neutro e universal, não passaria, nos termos do filósofo Jacques Derrida, nascido na Argélia, de uma “Mitologia Branca”, ou seja, de uma forma europeia de mito, que teria sua crença devotada à ideia de verdade e suas derivações, como, por exemplo, fundamento, origem, unidade e totalidade. Contudo, o principal problema e desafio para um pensamento ético-político de nossos dias seria questionar em que medida essa mitologia branca não seria nem ingênua nem inocente, frente à exclusão daquilo que não corresponda às suas exigências, deixando de fora as experiências radicais de pensamento existentes em outras culturas, como as do Oriente Médio, Extremo Oriente, África e das Américas.

No que diz respeito especificamente aos cenários africano e ameríndio, devido à situação colonial, isso fica muito mais grave, pois o processo de imposição filosófica, aliado à subordinação política, acaba promovendo uma espécie de colonização do pensamento, em que as experiências filosóficas seriam paulatinamente substituídas pelas do colonizador, ou seja, embranquecidas, gerando o que alguns especialistas chamam de epistemicídio, um etnocídio na esfera do pensamento.

No entanto, aqui em nossas terras, já em 1977, a publicação de Crítica da razão tupiniquim, de Roberto Gomes, apresentava essa mesma denúncia que sublinhamos na obra de Mbembe, mas com um tom alegre e inteligente de reagir ao processo colonial, colocando-se a questão de como pensar o que seria uma Razão Brasileira, uma vez que isso jamais poderia ser pensado senão na esfera da ficção. O brilhantismo do livro parte desse pressuposto genial e que rompe de todas as maneiras possíveis não apenas com a ideia de brancura, mas, sobretudo, com todo movimento típico dessa mitologia sem cor: a denúncia da neutralidade e da universalidade não poderia, de modo algum, apostar em uma outra origem, mas sim denunciar isso que é a própria invenção do Ocidente, a determinação de um começo, de um início e, portanto, de um lugar puro, um ponto zero do pensamento.

Tupiniquim, nesse livro, é apenas uma metáfora disso que não existe (aliás, como o é o próprio nome “tupiniquim”, dado aos índios brasileiros pelos portugueses, que de modo algum fora uma autodeterminação identitária indígena, e que acabou, na época, servindo de sinônimo para brasileiro). Nossa “origem” estranha, misturada, miscigenada, sincretizada e que, de tal modo única e singular – como toda origem –, estampa em suas cores múltiplas, que incluem certamente também a branquidão, a impossibilidade de uma unidade: isso seria um possível nome para o que ali se chama de “Brasilidade”.

Assim, nem mais “negro”, nem “ameríndio”, nem “branco”, pois mesmo esse tripé de nossa cultura é, ele também, ficcional: são muitas as raízes brancas, negras e indígenas presentes em nossa “constituição”. E, nesse sentido, as razões que esplendem em nós, mais do que uma crítica, deveriam partir de uma certa autocrítica, exigindo-nos uma outra forma de olhar e de pensar a partir desses outros.

Foi a partir dessa linha que aqui se pretendeu reunir os seguintes textos, para pensar esse grande pilar que nos constitui e que vem epistemologicamente sendo redescoberto e desvarrido de debaixo do tapete, inspirados em tantas críticas possíveis e assombrados pela autocrítica fundamental ao pensamento. Não para fundar uma outra origem, mas para denunciar o epistemicídio e trazer ao escopo da filosofia de nossa cultura elementos que podem e devem abrir novas experiências de pensamento.

Nosso dossiê, assim, começa com a apresentação feita por Gustavo de Andrade Durão do debate filosófico ocorrido no início do século 20 em torno do conceito de négritude, talvez o primeiro palco do encontro filosófico de pensadores engajados na “questão negra”. O artigo seguinte, de Renato Noguera, o primeiro filósofo a se dedicar sistematicamente ao estudo do pensamento africano em nosso país, concentra-se no questionamento justamente dessa origem grega da filosofia, mostrando como experiências de pensamento egípcias são renegadas na construção de uma história da filosofia Ocidental. A professora Elizia Ferreira, em seu artigo, traz o debate entre filosofia africana e filosofia da ancestralidade, mostrando em que medida é esta última que poderia abrigar o que se pode chamar de uma filosofia afro-brasileira. Por fim, o texto de Rodrigo dos Santos tem como ponto de partida a ideia central de sua dissertação de mestrado (aliás, a primeira pesquisa de mestrado em filosofia africana, orgulhosamente orientada por mim): aquilo que nomeou de “baraperspectivismo”, conceito que parte da perspectiva de Exu, orixá Iorubá que é o rei do corpo.

Do conceito de négritude à perspectiva do corpo, passando pelos egípcios e pelos ancestrais, esta reunião de textos e pensadores pretende apenas mostrar a significativa expressão filosófica que constitui nossa mestiçagem. Ao contrário, então, de escondê-la, devemos afirmá-la. Em nome de novas experiências de pensamento.


Rafael Haddock-Lobo é doutor em Filosofia pela PUC-Rio, professor da UFRJ e coordenador do Laboratório KHORA de Filosofia da Alteridade.


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